O CONVALESCENTE
I
Uma manhã, pouco
tempo depois do regresso à sua caverna, Zaratustra saltou do leito como um
louco: começou a gritar com voz terrível, gesticulando como se alguma pessoa
deitada ainda se não quisesse levantar; e a voz de Zaratustra troava em termos
tais, que os seus animais se lhe aproximaram espantados e de todos os
esconderijos próximos da caverna de Zaratustra todos os animais fugiram,
voando, revoando, arrastando-se e saltando, consoante tinham patas ou asas.
Zaratustra, porém, pronunciou estas palavras:
“Sobe, pensamento
vertiginoso, sai da minha profundidade”! Eu sou o teu galo e o teu crepúsculo
matutino, adormecido verme! Levanta-te!
A minha voz acabará
por te despertar!
Escuta! Que eu
quero ouvir-te! Levanta-te!
Varre dos teus
olhos o sono e tudo o que é míope e cego! Escuta-me também com os teus olhos: a
minha voz é um remédio até para os cegos de nascença.
E quando chegares a
acordar, acordado ficarás eternamente. Eu não costumo despertar dorminhocos
para que tornem a adormecer.
Moves-te, e espreguiças-te? Levanta-te! Hás de me falar! É Zaratustra que te chama,
Zaratustra o ímpio!
Eu, Zaratustra, o
afirmador da vida, o afirmador da dor, o afirmador do círculo, chamo-te a ti, o
mais profundo dos meus pensamentos!
Ditoso de mim!
Vens... ouço-te. O meu abismo fala. Tornei à luz a minha última profundidade!
Ditoso de mim! Vem!
Dá-me a mão!... Deixa! Ah! Ah!... Horror! Horror!... Infeliz de mim!
II
Ditas estas
palavras, Zaratustra caiu no chão como morto e assim permaneceu longo tempo. Ao
tornar a si estava pálido e trêmulo, e continuou caído, sem querer comer nem
beber durante muito tempo. Durou isto sete dias; mas os seus animais o não
abandonaram nem de dia nem de noite, a não ser quando a águia percorria os ares
em busca de alimento; e a ave depositava no leito de Zaratustra tudo o que
encontrava e conseguia apanhar: de forma que Zaratustra acabou por estar
deitado entre bagas amarelas e vermelhas, raízes, maçãs, ervas aromáticas e
pinhas. A seus pés, contudo, estavam estendidas duas ovelhas que a águia
roubara afanosamente aos seus pastores.
Ao fim de sete
dias, Zaratustra reanimou-se, pegou uma pinha, pôs-se a cheirá-la e agradou-lhe
o cheiro. Então os animais julgaram chegado o momento de lhe falar.
“Zaratustra —
disseram eles — já há sete dias que estás aí estendido com os olhos pesados;
não queres, enfim, pôr-te a pé”?
Sai da caverna; o
mundo aguarda-te como um vergel. O vento brinca com os fortes perfumes que
querem vir ao teu encontro, e todos os regatos quereriam correr atrás de ti.
Por ti suspiram
todas as coisas, ao verem que ficaste sozinho durante sete dias. Sai da
caverna! Todas as coisas querem ser teus médicos.
Surpreendeu-te
alguma nova certeza, amarga e pesada? Caíste aí como uma massa que fermenta; a
tua alma crescia e transbordava por todos os lados”.
“Animais meus —
respondeu Zaratustra — prossegui falando assim e deixai-me escutar”. A vossa
palestra reanima-me: onde se fala, o mundo parece dilatar-se ante mim como um
vergel.
Como é agradável
ouvir palavras e sons! Não serão as palavras e os sons os arco-íris e as pontes
ilusórias entre as coisas eternamente separadas?
A cada alma
pertence um mundo diferente; para cada alma, toda outra alma é um além-mundo.
Entre as coisas
mais semelhantes é onde é mais bela a ilusão: porque é sobre o abismo pequeno
que se torna difícil lançar uma ponte.
Para mim... como
poderia haver qualquer coisa fora de mim? Não há exterior! Todos os sons,
porém, nos fazem esquecer isso. Como é agradável podermos esquecer!
Não foram os nomes
e os sons dados às coisas para o homem se recrear com elas? Falar é uma bela
loucura: falando, baila o homem sobre todas as coisas.
Como toda a palavra
é doce! Como parecem doces todas as mentiras dos sons! “Os sons fazem bailar o
nosso amor em variado arco-íris”.
Então os animais
disseram: “Zaratustra, para os que pensam como nós, todas as coisas bailam;
vão, dão-se as mãos, riem, fogem”... e tornam.
Tudo vai, tudo
torna; a roda da existência gira eternamente. Tudo morre; tudo torna a
florescer; correm eternamente as estações da existência.
Tudo se destrói,
tudo se reconstrói, eternamente se edifica a mesma casa da existência. Tudo se
separa, tudo se saúda outra vez; o anel da existência conserva-se eternamente
fiel a si mesmo.
A todos os momentos
a existência principia; em torno de cada aqui, gira a bola acolá.
O Centro está em toda a parte. A senda da eternidade é tortuosa”.
“Ah! astutos
órgãozinhos! — respondeu Zaratustra tornando a sorrir. — Como sabíeis bem o que
se devia cumprir em sete dias!
E como aquele
monstro se me introduziu na garganta a fim de me afogar! Mas de uma dentada
cortei-lhe a cabeça e cuspi-a para longe de mim!
E vós já tínheis
tirado disto um estribilho! Eu, contudo, estou aqui estendido, fatigado de ter
mordido e cuspido, ainda doente da minha própria libertação.
E vós fosteis
espectadores de tudo isto! Ó! animais meus! Também vós sois
cruéis?
Quisesteis
contemplar a minha grande dor, como fazem os homens? Que o homem é o mais cruel
de todos os animais.
Até agora, como se
tem sentido mais satisfeito na terra, é assistindo a tragédias, a lides de
touros e a crucificações; e quando inventou o inferno, foi esse o seu céu na
terra.
Quando o grande
homem clama, logo acorre o pequeno com a língua pendente de ânsia.
A isto, porém,
chama ele, a sua “compaixão”.
Vede o homem
pequeno, especialmente o poeta... O ardor com que as suas palavras acusam a
vida! Escutai-o, mas não vos esqueçais de ouvir o prazer que há em toda a
acusação.
A estes acusadores
da vida deixa a vida atados num abrir e fechar de olhos.
“Amas-me”? — diz a
impertinente.
“Espera um bocado,
ainda não tenho tempo para ti”.
O homem é o animal
mais cruel para consigo; e sempre que ouvirdes alguém chamar-se “pecador” ou
“penitente”, ou falar da “sua cruz”, não vos esqueçais de ouvir a
voluptuosidade que respiram essas queixas e essas acusações.
E até eu... acaso
quererei ser com isto acusador do homem? Ai, animais meus! O maior mal é
necessário para o maior bem do homem;
é a única coisa que
até agora tenho aprendido.
O maior mal é a
melhor força do homem, a pedra mais dura para o mais alto criador; é
mister que o homem se torne melhor e mais mau.
Eu não só me não vi
cravado nesta cruz — saber que o homem é mau — mas também gritei como
ninguém gritou ainda:
“Ah! como é pequeno
o pior dele! Ah! como é pequeno o melhor dele.”
O que me afogava e
se me atravessava na garganta era o grande tédio do homem; e também o que
predissera o adivinho: “Tudo é igual; nada merece a pena; o saber asfixia”.
Na minha frente
arrastava-se um longo crepúsculo, uma mortal tristeza ébria e fatigada que
falava bocejando.
“O homem de que
estás enfastiado torna eternamente, o homem pequeno”. Assim bocejava a minha
tristeza, arrastando os pés sem poder adormecer.
A terra humana
transformava-se para mim em caverna; o meu peito fundia-se; tudo quanto vivia
era para mim podridão, ossos humanos e passado ruinoso.
Os meus suspiros
repousavam em todas as sepulturas humanas, e não podiam tornar a erguer-se; os
meus suspiros e as minhas perguntas gemiam, afogavam-se, consumiam-se e lamentavam-se
noite e dia.
“Ai, o homem torna
eternamente! O homem pequeno torna eternamente!”
Noutro tempo vi-os
nus, o maior e o mais pequeno dos homens; demasiado parecidos um com o
outro!... Demasiado humanos; mesmo o maior!
É demasiado
pequeno, o maior! — Era este o meu tédio pelo homem! E o eterno regresso, e
ainda do mais pequeno! — Isso então era o tédio da minha existência inteira!
“Ai! tédio! tédio!
tédio!” Assim falava Zaratustra, suspirando e estremecendo, porque se lembrava
da sua doença. Os seus animais, porém, não o deixaram prosseguir.
“Não fales mais,
convalescente”! — lhe responderam. — Sai daqui; vem para onde o mundo te espera
como um vergel.
Anda para o lado
das roseiras, das abelhas e dos bandos de pombas! E especialmente para o lado
das aves cantoras, para lhes aprenderes o canto!
Que o canto é o que
convém a convalescentes: diga-o aquele que fruiu saúde. “E se o que fruiu saúde
quer cantos, hão de ser diferentes dos do convalescente”.
“Ah astutos
órgãozinhos, calai-vos! — respondeu Zaratustra, rindo-se dos seus animais. —
Como conheceis bem o consolo que inventei em sete dias!
Ter que cantar de
novo: é este o consolo que inventei para mim; eis a minha cura.
Também quereis tirar disto um estribilho?”
“Cessa de falar —
tornaram os animais: — prepara uma lira, convalescente, uma lira nova”!
Olha, Zaratustra,
para os teus novos cantos é preciso uma lira nova.
Canta e distrai-te,
Zaratustra; cura a tua alma com cantos novos, para poderes sustentar o teu
grande destino, que ainda não foi destino de ninguém.
Que os teus animais
bem sabem quem és, Zaratustra, e o que deves chegar a ser: tu és o mestre do
eterno regresso das coisas, é este agora o teu destino!
Que tu hás de ser o
primeiro a ensinar esta doutrina: como não há de ser esse grande destino também
o teu maior perigo e a tua enfermidade!?
Olha: nós sabemos o
que ensinas: que todas as coisas tornam eternamente e nós com elas; que nós
temos já existido uma infinidade de vezes, e todas as coisas conosco.
Ensinas que há um
grande ano do acontecer (do sobre-vir), um ano monstruoso que, à semelhança de
um relógio de areia, tem sempre que se voltar novamente para correr e se
esvaziar outra vez.
De forma que todos
esses grandes anos são iguais a si mesmos, em ponto grande e pequeno; de forma que nós em todo o grande ano somos
iguais a nós mesmos, em ponto grande e pequeno.
E se tu agora
quisesses morrer, Zaratustra, também sabemos como falarias a ti mesmo; mas os
teus animais te suplicam: não morras ainda.
Falarias sem
tremer, e antes respirarias alegria, porque tu, o mais paciente, te verias
livre de um grande peso.
“Agora morro e
desapareço — dirias — e daqui a um instante já nada serei”. As almas são tão
mortais como os corpos.
O nó das causas em
que me encontro enlaçado torna... tornará a criar-me!
Eu próprio formo
parte das causas do eterno regresso das coisas.
Regressarei como
este sol, como esta terra, como esta águia, com esta serpente, não para
uma vida nova ou para uma vida melhor ou análoga.
Tornarei
eternamente para esta mesma vida, igual em ponto grande e também em pequeno, a
fim de ensinar outra vez o eterno regresso das coisas, a fim de repetir mais
uma vez as palavras do grande meio-dia, da terra e dos homens, a fim de
instruir novamente os homens sobre o Super-Homem.
Disse a minha
palavra, e por ela sucumbo.
Assim o quer o meu
destino eterno: desapareço como anunciador!
Chegou a hora: a
hora em que o que desaparece se abençoa a si mesmo.
Assim... acaba “o
caso de Zaratustra”.
Depois de
pronunciarem estas palavras, os animais calaram-se, esperando que Zaratustra
dissesse alguma coisa; mas Zaratustra não deu por isso. Estava deitado
tranqüilamente, com os olhos cerrados, como se dormisse; mas não dormia:
conversava com a sua alma.
Vendo-o tão
silencioso, a águia e a serpente respeitaram o grande silêncio que o rodeava, e
retiraram-se com precaução.
DO GRANDE ANELO
“Alma minha,
ensinei-te a dizer “hoje”, como “um dia” e “noutro tempo” e a passar dançando
por cima de tudo aqui, acolá e além”.
Alma minha,
livrei-te de todos os recantos; afastei de ti o pó, as aranhas e a obscuridade.
Alma minha,
lavei-te do mesquinho pudor e da virtude meticulosa, e habituei-te a estar nua
ante os olhos do sol.
Com a tempestade
que se chama “espírito” soprei sobre o teu mar revolto e expulsei dele todas as
nuvens e até estrangulei o estrangulador que se chama “pecado”.
Alma minha, dei-te
o direito de dizer “não” como a tempestade, e de dizer “sim” como o céu
límpido: agora estás serena como a luz e passas através das tempestades.
Alma minha,
restituí-te a liberdade sobre o que está criado e por criar; e quem como tu
conhece a volutuosidade do futuro?
Alma minha,
ensinei-te o desprezo que não vem como o caruncho, o grande desprezo amante que
onde mais despreza mais ama.
Alma minha,
ensinei-te a persuadir de tal modo; que as próprias coisas se te rendem: tal
como o sol que persuade o próprio mar a erguer-se à sua altura.
Alma minha, afastei
de ti toda a obediência, toda a genuflexão e todo o servilismo; eu mesmo te dei
o nome de “trégua de misérias” e de “destino”.
Alma minha, dei-te
nomes novos e vistosos brinquedos, chamei-te “destino” e “circunferência das
circunferências”, e “centro do tempo” e “abóbada cerúlea”.
Alma minha, dei a
beber ao teu domínio terrestre toda a sabedoria, já os vinhos novos, já os mais
raros e fortes da sabedoria, os de tempo imemorial.
Alma minha,
derramei em ti todo o sol e toda a noite, todos os silêncios e todos os anelos:
cresceste então para mim como uma vida.
Alma minha, agora
estás aí, repleta e pesada, como vide de cheios úberes, de dourados cachos
exuberantes; exuberante e oprimida de ventura, esperando entre a abundância e
envergonhada da sua expectação.
Alma minha, agora
já não há em parte alguma alma mais amante, mais ampla e compreensiva! Onde
estariam o futuro e o passado mais perto um do outro do que em ti?
Alma minha, dei-te
tudo, por ti esvaziei as mãos... e agora! Agora dizes-me sorrindo, cheia de
melancolia: “Qual de nós dois deve agradecer?”
Não é o doador que
deve estar agradecido àquele que houve por bem aceitar?
Não será uma
necessidade o dar? Não será... pena aceitar?
Alma minha,
compreendo o sorriso da tua melancolia: a tua exuberância estende agora as mãos
anelantes!
A tua plenitude
dirige os seus olhares aos mares rugidores, busca e aguarda: o desejo infinito
da plenitude lança um olhar através do céu sorridente dos teus olhos!
E na verdade, alma
minha, quem te veria o sorriso sem se desfazer em lágrimas?
Os próprios anjos
prorrompem em pranto vendo a excessiva bondade do teu sorriso.
A tua bondade, a
tua bondade demasiado grande, não se quer lastimar nem chorar, e, contudo, alma
minha, o teu sorriso deseja as lágrimas, e a tua trêmula boca os soluços.
“Não será todo o
pranto uma queixa, e toda a queixa uma acusação?” Assim dizes contigo, e por
isso preferes sorrir, alma minha, a derramar a tua pena, a derramar em
torrentes de lágrimas toda a pena que te causa a tua plenitude e toda a
ansiedade que faz que a vinha suspire pelo vindimador e pelo podão do
vindimador.
Se não queres
chorar, porém, chorar até o fim a tua purpúrea melancolia, precisas cantar,
alma minha. — Já vês: eu, que predico isto, eu mesmo sorrio. — Precisas cantar
com voz dolente, até os mares ficarem silenciosos para escutar o teu grande
anelo.
Até que em
anelantes e silenciosos mares se balouce o barco, a dourada maravilha, em torno
de cujo ouro se agitam todas as coisas boas, más e maravilhosas, e muitos
animais grandes e pequenos, e tudo quanto possui pernas leves e maravilhosas
para poder correr por caminhos de violetas até à áurea maravilha, até à barca
voluntária e até ao seu dono.
Ele é, porém, o
grande vindimador que espera com a sua podadeira de diamante, o teu grande
libertador, alma minha, o inefável... para quem só os cantos do futuro sabem
encontrar nomes. E na verdade, já o teu hálito tem o perfume dos cantos do
futuro, já ardes e sonhas, já a tua sede bebe em todos os poços consoladores de
graves ecos, já a tua melancolia descansa na beatitude dos cantos do futuro!
Alma minha, dei-te
tudo, até o meu último bem, e as minhas mãos por ti se esvaziaram: ter-te
dito que cantasses foi o meu último dom.
Disse-te que
cantasses. Fala, portanto, fala: qual de nós dois deve agora agradecer?
Mas não; canta para mim, canta, alma minha! E deixa-me agradecer-te!”
Assim falava
Zaratustra.
O OUTRO CANTO DE BAILE
“Acabo de te olhar
nos olhos, vida; vi reluzir ouro nos teus olhos noturnos, e essa volutuosidade
paralisou-me o coração: vi brilhar uma barca dourada que se submergia em águas
noturnas, uma barca dourada que se submergia e reaparecia fazendo sinais”!
Tu dirigias um
olhar aos meus pés, doidos por dançar, um olhar acariciador, terno, risonho e
interrogador,
Duas vezes apenas
agitaste com as mãos as tuas castanholas, e já os pés me pulavam, ébrios.
Os calcanhares
erguiam-se; os dedos escutavam para te compreender; não tem o dançarino os
ouvidos nos dedos dos pés?
Saltei ao teu
encontro; tu retrocedeste ao meu impulso, e até a mim serpeava a tua voadora e
fugidia cabeleira.
Num pulo me afastei
de ti e das tuas serpentes: já tu te erguias com os olhos cheios de desejos.
Com lânguidos
olhares me mostras sendas tortuosas; por tortuosas sendas aprende astúcias o
meu pé.
Receio-te quando te
aproximas, amo-te quando estás longe; a tua fuga atrai-me; as tuas diligências
detêm-me. Sofro; mas, por ti, que não sofreria eu?
Ó! tu, cuja
frialdade incendeia, cujo ódio seduz, cuja fuga prende, cujos enganos comovem!
Quem te não odiará,
grande carcereira, sedutora, esquadrinhadora e descobridora! Quem te não amará,
inocente, impaciente, arrebatadora pecadora de olhos infantis!
Aonde me arrastas
agora, indômito prodígio? E já me tornas a fugir, doce esquiva, doce ingrata!
Dançando sigo as
tuas menores pisadas. Onde estás? Dá-me a mão! Ou um dedo sequer!
Há por aí cavernas
e bosques; extraviar-nos-emos. Pára! Detém-te! Não vês revoarem corujas e
morcegos?
Eh! lá, coruja!
Morcego! Quereis brincar comigo? Onde estamos? Com os cães aprendestes a uivar
e a rosnar.
Mostravas-me
graciosamente os brandos dentes, e os teus malvados olhos asseteavam-me por
entre as frisadas madeixas.
Que correria por
montes e vales! Eu sou o caçador; queres tu ser o meu cão?
Agora, a meu lado!
e depressa, invejável solitária! Acima agora! Ó! Ao voltar, caí.
Olha como estou
aqui estendido! Olha, altaneira, como imploro o teu socorro! Quereria continuar
contigo... por caminhos mais agradáveis! pelos caminhos do amor, através de
esmaltados bosques! Ou pelos que marginam o lago, onde nadam e saltam dourados
peixes!
Estás cansada,
agora? Ali em baixo há ovelhas e vespertinos arrebóis. Não é tão bom adormecer
ao som da flauta dos pastores?
Então, estás assim
cansada? Vou-te levar lá; ao menos deixa pender os braços. E tens sede?...
Poderia dar-te qualquer coisa... Mas a tua boca não quer beber.
Que maldita
serpente esta! feiticeira fugidia, veloz e ágil. Aonde te meteste? Sinto na
cara dois sinais da tua mão, dois sinais vermelhos!
Estou deveras farto
de te seguir sempre como ingênuo cordeirinho! Feiticeira, até agora cantei para
ti: agora, para mim deves tu... gritar!
Deves dançar e
gritar ao compasso de meu látego!
Esquecê-lo-ia eu?
Não!”
II
Eis o que então
respondeu a vida;, tapando os delicados ouvidos:
“Ó! Zaratustra! Não
vibres tão espantosamente o látego! Bem sabes que o ruído assassina os
pensamentos... e assaltam-me agora pensamentos tão ternos!
Nós não somos bons
nem maus para nada! Além do bem e do mal encontrámos a nossa ilha e o nosso
verde prado: só nos dois o encontrámos! Por isso nos devemos amar um ao outro!
E conquanto nos não
amemos de todo o coração, será caso para nos enfadarmos? Enfadam-se as pessoas
por não se amarem de todo o coração?
É que eu te amo, te
amo muitas vezes com excesso, sabe-lo demais, a razão é que estou ciosa da tua
sabedoria. Ah! que velha louca é a sabedoria!!
“Se alguma vez a
tua sabedoria te deixasse, também logo o meu amor te deixaria.”
Então a vida olhou
pensativa para trás e em torno de si, e disse em voz baixa: “Ó! Zaratustra, não
me és bastante fiel!
Ainda falta muito
para me teres o amor que dizes; sei que pensas deixar-me breve.
Há um velho bordão
pesado, pesadíssimo, que ressoa de noite até lá acima, à tua caverna; quando
ouves esse sino dar a meia-noite, pensas — bem o sei, Zaratustra — pensas
deixar-me breve!”
“Assim é — respondi
titubeando; — mas tu também sabes...” E disse-lhe uma coisa ao ouvido, colado à
sua emaranhada cabeleira, às suas douradas e revoltas madeixas. “Tu sabes isso,
Zaratustra? Ninguém sabe isso...
Olhamo-nos, e
dirigimos o nosso olhar para o verde prado por onde corria a frescura da tarde,
e choramos juntos. “Mas então a vida era para mim mais cara do que jamais o foi
toda a minha sabedoria”.
Assim falava
Zaratustra.
III
Uma!
Alerta, homem!
Duas!
Que diz a
meia-noite profunda?
Três!
“Tenho dormido,
tenho dormido”...
Quatro!
“De um profundo
sono despertei”.
Cinco!
“O mundo é
profundo”...
Seis!
“E mais profundo do
que o dia julgava”.
Sete!
“Profunda é a sua
dor”...
Oito!
“E a alegria”...
Mais profunda que a aflição.
Nove!
“A dor diz: Passa”!
Dez!
“Mas toda alegria
quer a eternidade”...
Onze!
“Quer profunda eternidade”!
Doze!
....................................
OS SETE SELOS
I
Se sou um adivinho,
cheio desse espírito adivinhatório que caminha por uma alta crista entre dois
mares, que caminha entre o passado e o futuro como uma densa nuvem inimiga de
todos os lugares baixos, de tudo quanto está fatigado e não pode morrer nem
viver; disposta a rasgar o seu obscuro seio, como o relâmpago, disposta a
fulminar o raio de claridade redentora, cheia de relâmpagos que dizem sim!
Que riem sim! pronta a exalações adivinhadoras — mas, ditoso do que está assim
cheio! e, na verdade, forçoso é cingir-se ao cume como pesada tormenta aquele
que deve acender um dia luz do futuro! — se eu sou assim, como não hei de estar
anelante pela eternidade, anelante pelo nupcial anel dos anéis, o anel do
regresso das coisas?
Ainda não encontrei
mulher de quem quisesse ter filhos, senão esta mulher a quem amo: porque te
amo, eternidade!
Por que te amo,
eternidade!
II
Se alguma vez a
minha cólera profanou sepulturas, removeu barreiras e precipitou velhas tábuas
partidas em escarpadas profundezas; se a minha zombaria varreu alguma vez as
palavras apodrecidas; se fui como uma escova para as aranhas e um vento
purificador para velhas e bolorentas cavernas sepulcrais; se alguma vez estive
sentado, cheio de alegria, no sítio onde jazem deuses antigos, abençoando e
amando o mundo ao lado dos monumentos de antigos caluniadores; do inundo —
porque até as igrejas e os túmulos dos deuses eu amo, contanto que o céu
espreite
serenamente através
das suas rendilhadas abóbadas; que eu gosto de repousar sobre as igrejas
arruinadas, como a erva e as vermelhas papoulas — como não estaria anelante da
eternidade, anelante do nupcial anel dos anéis, o anel do regresso?
Nunca encontrei
mulher de quem quisesse ter filhos senão esta mulher que amo: porque te amo,
eternidade!
Porque te amo,
eternidade!
III
Se alguma vez
chegou até mim um sopro do sopro criador e dessa necessidade divina que até os
azares obriga a dançar as danças das estrelas; se alguma vez me ri com o riso
do relâmpago criador, ao qual se segue resmungando, mas obediente, o prolongado
troar da ação; se alguma vez joguei os dados com deuses, na mesa divina da
terra, fazendo que a terra tremesse e se rasgasse, despedindo rios de chamas —
porque a terra é uma mesa divina que treme com novas palavras criadoras e com
um ruído de dados divinos — como não hei de eu estar anelante da eternidade,
anelante do nupcial anel dos anéis, o anel do regresso?
Nunca encontrei
mulher de quem quisesse ter filhos senão esta mulher que amo: porque te amo,
eternidade!
Porque te amo,
eternidade!
IV
Se alguma vez bebi
um longo trago desse cântaro espumoso de espécies e misturas, onde estão bem
misturadas todas as coisas; se a minha mão alguma vez misturou o mais remoto
com o mais próximo e o fogo com o engenho, e a alegria com a pena e as coisas
piores com as melhores; se eu mesmo sou um grão desse sal redentor que faz que
todas as coisas se misturem bem ao cântaro das misturas — para que exista o bem
e o mal, e até o pior é digno de servir de espécie e de fazer que transborde a
espuma do cântaro — como não hei de estar anelante da eternidade, anelante do
nupcial anel dos anéis, o anel do regresso?
Nunca encontrei
mulher de quem quisesse ter filhos senão esta mulher que amo: porque te amo,
eternidade!
Porque te amo,
eternidade!
V
Se eu amo o mar, e
tudo quanto ao mar se assemelha, e sobretudo quando me contradiz fogoso;
se existe em mim
essa paixão investigadora que impele a vela para o desconhecido; se há na minha
paixão um tanto da paixão do navegante;
se alguma vez
exclamei com alegria: Se há na minha paixão um tanto da paixão do navegante; se
alguma vez exclamei como medida:
“Desapareceram as
costas: caiu agora a minha última cadeia; em meu redor agita-se a imensidade
sem limites; longe de mim cintilam o tempo e o espaço; vamos! A caminho, velho
coração!”
Como não hei de
estar anelante da eternidade, anelante do nupcial anel dos anéis, do anel do
acontecer e do regresso?
Nunca encontrei
mulher de quem quisesse ter filhos senão esta mulher que amo: porque te amo,
eternidade!
Porque te amo,
eternidade!
VI
Se a minha virtude
é virtude de bailarino, se muitas vezes pulei entre arroubamentos de ouro e de
esmeralda; se a minha maldade é uma maldade risonha que se acha em seu centro
entre ramadas de rosas e sebes de açucenas, porque no riso se reúne tudo o que
é mau, mas santificado e absolvido pela sua própria beatitude; e se o meu alfa
e ômega é tornar leve tudo quanto é pesado, todo o corpo dançarino, todo o
espírito ave: e, na verdade, assim é o meu alfa e ômega.
Como não hei de
estar anelante pela eternidade, anelante pelo nupcial anel dos anéis, pelo anel
do regresso das coisas?
Nunca encontrei
mulher de quem quisesse ter filhos senão esta mulher que amo: porque te amo,
eternidade!
Porque te amo, eternidade!
VII
Se alguma vez
descobri céus tranqüilos sobre mim voando com as minhas próprias asas no meu
próprio céu; se nadei, brincando, em profundos lagos de luz; se a alada
sabedoria da minha liberdade me veio dizer: “Olha! Nem para cima, nem para
baixo! Lança-te à roda, para diante, para trás, leve como és! Canta! Não fales
mais! Não estão as palavras feitas para os que são pesados? Não mentem todas as
palavras ao que é leve? Canta! Não fales mais!”
Como não hei de
estar anelante pela eternidade, anelante pelo nupcial anel dos anéis, pelo anel
do sucesso e do regresso?
Nunca encontrei
mulher de quem quisesse ter filhos senão esta mulher que amo: porque te amo,
eternidade!
Porque te amo,
eternidade!
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