sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

TERCEIRA PARTE: ASSIM FALAVA ZARATUSTRA


                                                        O CONVALESCENTE
                                                                         I
Uma manhã, pouco tempo depois do regresso à sua caverna, Zaratustra saltou do leito como um louco: começou a gritar com voz terrível, gesticulando como se alguma pessoa deitada ainda se não quisesse levantar; e a voz de Zaratustra troava em termos tais, que os seus animais se lhe aproximaram espantados e de todos os esconderijos próximos da caverna de Zaratustra todos os animais fugiram, voando, revoando, arrastando-se e saltando, consoante tinham patas ou asas. Zaratustra, porém, pronunciou estas palavras:
“Sobe, pensamento vertiginoso, sai da minha profundidade”! Eu sou o teu galo e o teu crepúsculo matutino, adormecido verme! Levanta-te!
A minha voz acabará por te despertar!
Escuta! Que eu quero ouvir-te! Levanta-te!
Varre dos teus olhos o sono e tudo o que é míope e cego! Escuta-me também com os teus olhos: a minha voz é um remédio até para os cegos de nascença.
E quando chegares a acordar, acordado ficarás eternamente. Eu não costumo despertar dorminhocos para que tornem a adormecer.
Moves-te, e espreguiças-te? Levanta-te! Hás de me falar! É Zaratustra que te chama, Zaratustra o ímpio!
Eu, Zaratustra, o afirmador da vida, o afirmador da dor, o afirmador do círculo, chamo-te a ti, o mais profundo dos meus pensamentos!
Ditoso de mim! Vens... ouço-te. O meu abismo fala. Tornei à luz a minha última profundidade!
Ditoso de mim! Vem! Dá-me a mão!... Deixa! Ah! Ah!... Horror! Horror!... Infeliz de mim!

                                                                 II
Ditas estas palavras, Zaratustra caiu no chão como morto e assim permaneceu longo tempo. Ao tornar a si estava pálido e trêmulo, e continuou caído, sem querer comer nem beber durante muito tempo. Durou isto sete dias; mas os seus animais o não abandonaram nem de dia nem de noite, a não ser quando a águia percorria os ares em busca de alimento; e a ave depositava no leito de Zaratustra tudo o que encontrava e conseguia apanhar: de forma que Zaratustra acabou por estar deitado entre bagas amarelas e vermelhas, raízes, maçãs, ervas aromáticas e pinhas. A seus pés, contudo, estavam estendidas duas ovelhas que a águia roubara afanosamente aos seus pastores.
Ao fim de sete dias, Zaratustra reanimou-se, pegou uma pinha, pôs-se a cheirá-la e agradou-lhe o cheiro. Então os animais julgaram chegado o momento de lhe falar.
“Zaratustra — disseram eles — já há sete dias que estás aí estendido com os olhos pesados; não queres, enfim, pôr-te a pé”?
Sai da caverna; o mundo aguarda-te como um vergel. O vento brinca com os fortes perfumes que querem vir ao teu encontro, e todos os regatos quereriam correr atrás de ti.
Por ti suspiram todas as coisas, ao verem que ficaste sozinho durante sete dias. Sai da caverna! Todas as coisas querem ser teus médicos.
Surpreendeu-te alguma nova certeza, amarga e pesada? Caíste aí como uma massa que fermenta; a tua alma crescia e transbordava por todos os lados”.
“Animais meus — respondeu Zaratustra — prossegui falando assim e deixai-me escutar”. A vossa palestra reanima-me: onde se fala, o mundo parece dilatar-se ante mim como um vergel.
Como é agradável ouvir palavras e sons! Não serão as palavras e os sons os arco-íris e as pontes ilusórias entre as coisas eternamente separadas?
A cada alma pertence um mundo diferente; para cada alma, toda outra alma é um além-mundo.
Entre as coisas mais semelhantes é onde é mais bela a ilusão: porque é sobre o abismo pequeno que se torna difícil lançar uma ponte.
Para mim... como poderia haver qualquer coisa fora de mim? Não há exterior! Todos os sons, porém, nos fazem esquecer isso. Como é agradável podermos esquecer!
Não foram os nomes e os sons dados às coisas para o homem se recrear com elas? Falar é uma bela loucura: falando, baila o homem sobre todas as coisas.
Como toda a palavra é doce! Como parecem doces todas as mentiras dos sons! “Os sons fazem bailar o nosso amor em variado arco-íris”.
Então os animais disseram: “Zaratustra, para os que pensam como nós, todas as coisas bailam; vão, dão-se as mãos, riem, fogem”... e tornam.
Tudo vai, tudo torna; a roda da existência gira eternamente. Tudo morre; tudo torna a florescer; correm eternamente as estações da existência.
Tudo se destrói, tudo se reconstrói, eternamente se edifica a mesma casa da existência. Tudo se separa, tudo se saúda outra vez; o anel da existência conserva-se eternamente fiel a si mesmo.
A todos os momentos a existência principia; em torno de cada aqui, gira a bola acolá. O Centro está em toda a parte. A senda da eternidade é tortuosa”.
“Ah! astutos órgãozinhos! — respondeu Zaratustra tornando a sorrir. — Como sabíeis bem o que se devia cumprir em sete dias!
E como aquele monstro se me introduziu na garganta a fim de me afogar! Mas de uma dentada cortei-lhe a cabeça e cuspi-a para longe de mim!
E vós já tínheis tirado disto um estribilho! Eu, contudo, estou aqui estendido, fatigado de ter mordido e cuspido, ainda doente da minha própria libertação.
E vós fosteis espectadores de tudo isto! Ó! animais meus! Também vós sois cruéis?
Quisesteis contemplar a minha grande dor, como fazem os homens? Que o homem é o mais cruel de todos os animais.
Até agora, como se tem sentido mais satisfeito na terra, é assistindo a tragédias, a lides de touros e a crucificações; e quando inventou o inferno, foi esse o seu céu na terra.
Quando o grande homem clama, logo acorre o pequeno com a língua pendente de ânsia.
A isto, porém, chama ele, a sua “compaixão”.
Vede o homem pequeno, especialmente o poeta... O ardor com que as suas palavras acusam a vida! Escutai-o, mas não vos esqueçais de ouvir o prazer que há em toda a acusação.
A estes acusadores da vida deixa a vida atados num abrir e fechar de olhos.
“Amas-me”? — diz a impertinente.
“Espera um bocado, ainda não tenho tempo para ti”.
O homem é o animal mais cruel para consigo; e sempre que ouvirdes alguém chamar-se “pecador” ou “penitente”, ou falar da “sua cruz”, não vos esqueçais de ouvir a voluptuosidade que respiram essas queixas e essas acusações.
E até eu... acaso quererei ser com isto acusador do homem? Ai, animais meus! O maior mal é necessário para o maior bem do homem;
é a única coisa que até agora tenho aprendido.
O maior mal é a melhor força do homem, a pedra mais dura para o mais alto criador; é mister que o homem se torne melhor e mais mau.
Eu não só me não vi cravado nesta cruz — saber que o homem é mau — mas também gritei como ninguém gritou ainda:
“Ah! como é pequeno o pior dele! Ah! como é pequeno o melhor dele.”
O que me afogava e se me atravessava na garganta era o grande tédio do homem; e também o que predissera o adivinho: “Tudo é igual; nada merece a pena; o saber asfixia”.
Na minha frente arrastava-se um longo crepúsculo, uma mortal tristeza ébria e fatigada que falava bocejando.
“O homem de que estás enfastiado torna eternamente, o homem pequeno”. Assim bocejava a minha tristeza, arrastando os pés sem poder adormecer.
A terra humana transformava-se para mim em caverna; o meu peito fundia-se; tudo quanto vivia era para mim podridão, ossos humanos e passado ruinoso.
Os meus suspiros repousavam em todas as sepulturas humanas, e não podiam tornar a erguer-se; os meus suspiros e as minhas perguntas gemiam, afogavam-se, consumiam-se e lamentavam-se noite e dia.
“Ai, o homem torna eternamente! O homem pequeno torna eternamente!”
Noutro tempo vi-os nus, o maior e o mais pequeno dos homens; demasiado parecidos um com o outro!... Demasiado humanos; mesmo o maior!
É demasiado pequeno, o maior! — Era este o meu tédio pelo homem! E o eterno regresso, e ainda do mais pequeno! — Isso então era o tédio da minha existência inteira!
“Ai! tédio! tédio! tédio!” Assim falava Zaratustra, suspirando e estremecendo, porque se lembrava da sua doença. Os seus animais, porém, não o deixaram prosseguir.
“Não fales mais, convalescente”! — lhe responderam. — Sai daqui; vem para onde o mundo te espera como um vergel.
Anda para o lado das roseiras, das abelhas e dos bandos de pombas! E especialmente para o lado das aves cantoras, para lhes aprenderes o canto!
Que o canto é o que convém a convalescentes: diga-o aquele que fruiu saúde. “E se o que fruiu saúde quer cantos, hão de ser diferentes dos do convalescente”.
“Ah astutos órgãozinhos, calai-vos! — respondeu Zaratustra, rindo-se dos seus animais. — Como conheceis bem o consolo que inventei em sete dias!
Ter que cantar de novo: é este o consolo que inventei para mim; eis a minha cura. Também quereis tirar disto um estribilho?”
“Cessa de falar — tornaram os animais: — prepara uma lira, convalescente, uma lira nova”!
Olha, Zaratustra, para os teus novos cantos é preciso uma lira nova.
Canta e distrai-te, Zaratustra; cura a tua alma com cantos novos, para poderes sustentar o teu grande destino, que ainda não foi destino de ninguém.
Que os teus animais bem sabem quem és, Zaratustra, e o que deves chegar a ser: tu és o mestre do eterno regresso das coisas, é este agora o teu destino!
Que tu hás de ser o primeiro a ensinar esta doutrina: como não há de ser esse grande destino também o teu maior perigo e a tua enfermidade!?
Olha: nós sabemos o que ensinas: que todas as coisas tornam eternamente e nós com elas; que nós temos já existido uma infinidade de vezes, e todas as coisas conosco.
Ensinas que há um grande ano do acontecer (do sobre-vir), um ano monstruoso que, à semelhança de um relógio de areia, tem sempre que se voltar novamente para correr e se esvaziar outra vez.
De forma que todos esses grandes anos são iguais a si mesmos, em ponto grande e pequeno; de  forma que nós em todo o grande ano somos iguais a nós mesmos, em ponto grande e pequeno.
E se tu agora quisesses morrer, Zaratustra, também sabemos como falarias a ti mesmo; mas os teus animais te suplicam: não morras ainda.
Falarias sem tremer, e antes respirarias alegria, porque tu, o mais paciente, te verias livre de um grande peso.
“Agora morro e desapareço — dirias — e daqui a um instante já nada serei”. As almas são tão mortais como os corpos.
O nó das causas em que me encontro enlaçado torna... tornará a criar-me!
Eu próprio formo parte das causas do eterno regresso das coisas.
Regressarei como este sol, como esta terra, como esta águia, com esta serpente, não para uma vida nova ou para uma vida melhor ou análoga.
Tornarei eternamente para esta mesma vida, igual em ponto grande e também em pequeno, a fim de ensinar outra vez o eterno regresso das coisas, a fim de repetir mais uma vez as palavras do grande meio-dia, da terra e dos homens, a fim de instruir novamente os homens sobre o Super-Homem.
Disse a minha palavra, e por ela sucumbo.
Assim o quer o meu destino eterno: desapareço como anunciador!
Chegou a hora: a hora em que o que desaparece se abençoa a si mesmo.
Assim... acaba “o caso de Zaratustra”.
Depois de pronunciarem estas palavras, os animais calaram-se, esperando que Zaratustra dissesse alguma coisa; mas Zaratustra não deu por isso. Estava deitado tranqüilamente, com os olhos cerrados, como se dormisse; mas não dormia: conversava com a sua alma.
Vendo-o tão silencioso, a águia e a serpente respeitaram o grande silêncio que o rodeava, e retiraram-se com precaução.
                      
                                                                       DO GRANDE ANELO

“Alma minha, ensinei-te a dizer “hoje”, como “um dia” e “noutro tempo” e a passar dançando por cima de tudo aqui, acolá e além”.
Alma minha, livrei-te de todos os recantos; afastei de ti o pó, as aranhas e a obscuridade.
Alma minha, lavei-te do mesquinho pudor e da virtude meticulosa, e habituei-te a estar nua ante os olhos do sol.
Com a tempestade que se chama “espírito” soprei sobre o teu mar revolto e expulsei dele todas as nuvens e até estrangulei o estrangulador que se chama “pecado”.
Alma minha, dei-te o direito de dizer “não” como a tempestade, e de dizer “sim” como o céu límpido: agora estás serena como a luz e passas através das tempestades.
Alma minha, restituí-te a liberdade sobre o que está criado e por criar; e quem como tu conhece a volutuosidade do futuro?
Alma minha, ensinei-te o desprezo que não vem como o caruncho, o grande desprezo amante que onde mais despreza mais ama.
Alma minha, ensinei-te a persuadir de tal modo; que as próprias coisas se te rendem: tal como o sol que persuade o próprio mar a erguer-se à sua altura.
Alma minha, afastei de ti toda a obediência, toda a genuflexão e todo o servilismo; eu mesmo te dei o nome de “trégua de misérias” e de “destino”.
Alma minha, dei-te nomes novos e vistosos brinquedos, chamei-te “destino” e “circunferência das circunferências”, e “centro do tempo” e “abóbada cerúlea”.
Alma minha, dei a beber ao teu domínio terrestre toda a sabedoria, já os vinhos novos, já os mais raros e fortes da sabedoria, os de tempo imemorial.
Alma minha, derramei em ti todo o sol e toda a noite, todos os silêncios e todos os anelos: cresceste então para mim como uma vida.
Alma minha, agora estás aí, repleta e pesada, como vide de cheios úberes, de dourados cachos exuberantes; exuberante e oprimida de ventura, esperando entre a abundância e envergonhada da sua expectação.
Alma minha, agora já não há em parte alguma alma mais amante, mais ampla e compreensiva! Onde estariam o futuro e o passado mais perto um do outro do que em ti?
Alma minha, dei-te tudo, por ti esvaziei as mãos... e agora! Agora dizes-me sorrindo, cheia de melancolia: “Qual de nós dois deve agradecer?”
Não é o doador que deve estar agradecido àquele que houve por bem aceitar?
Não será uma necessidade o dar? Não será... pena aceitar?
Alma minha, compreendo o sorriso da tua melancolia: a tua exuberância estende agora as mãos anelantes!
A tua plenitude dirige os seus olhares aos mares rugidores, busca e aguarda: o desejo infinito da plenitude lança um olhar através do céu sorridente dos teus olhos!
E na verdade, alma minha, quem te veria o sorriso sem se desfazer em lágrimas?
Os próprios anjos prorrompem em pranto vendo a excessiva bondade do teu sorriso.
A tua bondade, a tua bondade demasiado grande, não se quer lastimar nem chorar, e, contudo, alma minha, o teu sorriso deseja as lágrimas, e a tua trêmula boca os soluços.
“Não será todo o pranto uma queixa, e toda a queixa uma acusação?” Assim dizes contigo, e por isso preferes sorrir, alma minha, a derramar a tua pena, a derramar em torrentes de lágrimas toda a pena que te causa a tua plenitude e toda a ansiedade que faz que a vinha suspire pelo vindimador e pelo podão do vindimador.
Se não queres chorar, porém, chorar até o fim a tua purpúrea melancolia, precisas cantar, alma minha. — Já vês: eu, que predico isto, eu mesmo sorrio. — Precisas cantar com voz dolente, até os mares ficarem silenciosos para escutar o teu grande anelo.
Até que em anelantes e silenciosos mares se balouce o barco, a dourada maravilha, em torno de cujo ouro se agitam todas as coisas boas, más e maravilhosas, e muitos animais grandes e pequenos, e tudo quanto possui pernas leves e maravilhosas para poder correr por caminhos de violetas até à áurea maravilha, até à barca voluntária e até ao seu dono.
Ele é, porém, o grande vindimador que espera com a sua podadeira de diamante, o teu grande libertador, alma minha, o inefável... para quem só os cantos do futuro sabem encontrar nomes. E na verdade, já o teu hálito tem o perfume dos cantos do futuro, já ardes e sonhas, já a tua sede bebe em todos os poços consoladores de graves ecos, já a tua melancolia descansa na beatitude dos cantos do futuro!
Alma minha, dei-te tudo, até o meu último bem, e as minhas mãos por ti se esvaziaram: ter-te dito que cantasses foi o meu último dom.
Disse-te que cantasses. Fala, portanto, fala: qual de nós dois deve agora agradecer? Mas não; canta para mim, canta, alma minha! E deixa-me agradecer-te!”
Assim falava Zaratustra.
                  
                                                                       O OUTRO CANTO DE BAILE

“Acabo de te olhar nos olhos, vida; vi reluzir ouro nos teus olhos noturnos, e essa volutuosidade paralisou-me o coração: vi brilhar uma barca dourada que se submergia em águas noturnas, uma barca dourada que se submergia e reaparecia fazendo sinais”!
Tu dirigias um olhar aos meus pés, doidos por dançar, um olhar acariciador, terno, risonho e interrogador,
Duas vezes apenas agitaste com as mãos as tuas castanholas, e já os pés me pulavam, ébrios.
Os calcanhares erguiam-se; os dedos escutavam para te compreender; não tem o dançarino os ouvidos nos dedos dos pés?
Saltei ao teu encontro; tu retrocedeste ao meu impulso, e até a mim serpeava a tua voadora e fugidia cabeleira.
Num pulo me afastei de ti e das tuas serpentes: já tu te erguias com os olhos cheios de desejos.
Com lânguidos olhares me mostras sendas tortuosas; por tortuosas sendas aprende astúcias o meu pé.
Receio-te quando te aproximas, amo-te quando estás longe; a tua fuga atrai-me; as tuas diligências detêm-me. Sofro; mas, por ti, que não sofreria eu?
Ó! tu, cuja frialdade incendeia, cujo ódio seduz, cuja fuga prende, cujos enganos comovem!
Quem te não odiará, grande carcereira, sedutora, esquadrinhadora e descobridora! Quem te não amará, inocente, impaciente, arrebatadora pecadora de olhos infantis!
Aonde me arrastas agora, indômito prodígio? E já me tornas a fugir, doce esquiva, doce ingrata!
Dançando sigo as tuas menores pisadas. Onde estás? Dá-me a mão! Ou um dedo sequer!
Há por aí cavernas e bosques; extraviar-nos-emos. Pára! Detém-te! Não vês revoarem corujas e morcegos?
Eh! lá, coruja! Morcego! Quereis brincar comigo? Onde estamos? Com os cães aprendestes a uivar e a rosnar.
Mostravas-me graciosamente os brandos dentes, e os teus malvados olhos asseteavam-me por entre as frisadas madeixas.
Que correria por montes e vales! Eu sou o caçador; queres tu ser o meu cão?
Agora, a meu lado! e depressa, invejável solitária! Acima agora! Ó! Ao voltar, caí.
Olha como estou aqui estendido! Olha, altaneira, como imploro o teu socorro! Quereria continuar contigo... por caminhos mais agradáveis! pelos caminhos do amor, através de esmaltados bosques! Ou pelos que marginam o lago, onde nadam e saltam dourados peixes!
Estás cansada, agora? Ali em baixo há ovelhas e vespertinos arrebóis. Não é tão bom adormecer ao som da flauta dos pastores?
Então, estás assim cansada? Vou-te levar lá; ao menos deixa pender os braços. E tens sede?... Poderia dar-te qualquer coisa... Mas a tua boca não quer beber.
Que maldita serpente esta! feiticeira fugidia, veloz e ágil. Aonde te meteste? Sinto na cara dois sinais da tua mão, dois sinais vermelhos!
Estou deveras farto de te seguir sempre como ingênuo cordeirinho! Feiticeira, até agora cantei para ti: agora, para mim deves tu... gritar!
Deves dançar e gritar ao compasso de meu látego!
Esquecê-lo-ia eu? Não!”
                                                                                                II
Eis o que então respondeu a vida;, tapando os delicados ouvidos:
“Ó! Zaratustra! Não vibres tão espantosamente o látego! Bem sabes que o ruído assassina os pensamentos... e assaltam-me agora pensamentos tão ternos!
Nós não somos bons nem maus para nada! Além do bem e do mal encontrámos a nossa ilha e o nosso verde prado: só nos dois o encontrámos! Por isso nos devemos amar um ao outro!
E conquanto nos não amemos de todo o coração, será caso para nos enfadarmos? Enfadam-se as pessoas por não se amarem de todo o coração?
É que eu te amo, te amo muitas vezes com excesso, sabe-lo demais, a razão é que estou ciosa da tua sabedoria. Ah! que velha louca é a sabedoria!!
“Se alguma vez a tua sabedoria te deixasse, também logo o meu amor te deixaria.”
Então a vida olhou pensativa para trás e em torno de si, e disse em voz baixa: “Ó! Zaratustra, não me és bastante fiel!
Ainda falta muito para me teres o amor que dizes; sei que pensas deixar-me breve.
Há um velho bordão pesado, pesadíssimo, que ressoa de noite até lá acima, à tua caverna; quando ouves esse sino dar a meia-noite, pensas — bem o sei, Zaratustra — pensas deixar-me breve!”
“Assim é — respondi titubeando; — mas tu também sabes...” E disse-lhe uma coisa ao ouvido, colado à sua emaranhada cabeleira, às suas douradas e revoltas madeixas. “Tu sabes isso, Zaratustra? Ninguém sabe isso...
Olhamo-nos, e dirigimos o nosso olhar para o verde prado por onde corria a frescura da tarde, e choramos juntos. “Mas então a vida era para mim mais cara do que jamais o foi toda a minha sabedoria”.
Assim falava Zaratustra.
                                            
                                               III
Uma!
Alerta, homem!
Duas!
Que diz a meia-noite profunda?
Três!
“Tenho dormido, tenho dormido”...
Quatro!
“De um profundo sono despertei”.
Cinco!
“O mundo é profundo”...
Seis!
“E mais profundo do que o dia julgava”.
Sete!
“Profunda é a sua dor”...
Oito!
“E a alegria”... Mais profunda que a aflição.
Nove!
“A dor diz: Passa”!
Dez!
“Mas toda alegria quer a eternidade”...
Onze!
 “Quer profunda eternidade”!
Doze!
....................................




                                                                              OS SETE SELOS
                                                                                            I
Se sou um adivinho, cheio desse espírito adivinhatório que caminha por uma alta crista entre dois mares, que caminha entre o passado e o futuro como uma densa nuvem inimiga de todos os lugares baixos, de tudo quanto está fatigado e não pode morrer nem viver; disposta a rasgar o seu obscuro seio, como o relâmpago, disposta a fulminar o raio de claridade redentora, cheia de relâmpagos que dizem sim! Que riem sim! pronta a exalações adivinhadoras — mas, ditoso do que está assim cheio! e, na verdade, forçoso é cingir-se ao cume como pesada tormenta aquele que deve acender um dia luz do futuro! — se eu sou assim, como não hei de estar anelante pela eternidade, anelante pelo nupcial anel dos anéis, o anel do regresso das coisas?
Ainda não encontrei mulher de quem quisesse ter filhos, senão esta mulher a quem amo: porque te amo, eternidade!
Por que te amo, eternidade!
                                                                                           II
Se alguma vez a minha cólera profanou sepulturas, removeu barreiras e precipitou velhas tábuas partidas em escarpadas profundezas; se a minha zombaria varreu alguma vez as palavras apodrecidas; se fui como uma escova para as aranhas e um vento purificador para velhas e bolorentas cavernas sepulcrais; se alguma vez estive sentado, cheio de alegria, no sítio onde jazem deuses antigos, abençoando e amando o mundo ao lado dos monumentos de antigos caluniadores; do inundo — porque até as igrejas e os túmulos dos deuses eu amo, contanto que o céu espreite
serenamente através das suas rendilhadas abóbadas; que eu gosto de repousar sobre as igrejas arruinadas, como a erva e as vermelhas papoulas — como não estaria anelante da eternidade, anelante do nupcial anel dos anéis, o anel do regresso?
Nunca encontrei mulher de quem quisesse ter filhos senão esta mulher que amo: porque te amo, eternidade!
Porque te amo, eternidade!
                                                                                          III
Se alguma vez chegou até mim um sopro do sopro criador e dessa necessidade divina que até os azares obriga a dançar as danças das estrelas; se alguma vez me ri com o riso do relâmpago criador, ao qual se segue resmungando, mas obediente, o prolongado troar da ação; se alguma vez joguei os dados com deuses, na mesa divina da terra, fazendo que a terra tremesse e se rasgasse, despedindo rios de chamas — porque a terra é uma mesa divina que treme com novas palavras criadoras e com um ruído de dados divinos — como não hei de eu estar anelante da eternidade, anelante do nupcial anel dos anéis, o anel do regresso?
Nunca encontrei mulher de quem quisesse ter filhos senão esta mulher que amo: porque te amo, eternidade!
Porque te amo, eternidade!
                                                                                            IV
Se alguma vez bebi um longo trago desse cântaro espumoso de espécies e misturas, onde estão bem misturadas todas as coisas; se a minha mão alguma vez misturou o mais remoto com o mais próximo e o fogo com o engenho, e a alegria com a pena e as coisas piores com as melhores; se eu mesmo sou um grão desse sal redentor que faz que todas as coisas se misturem bem ao cântaro das misturas — para que exista o bem e o mal, e até o pior é digno de servir de espécie e de fazer que transborde a espuma do cântaro — como não hei de estar anelante da eternidade, anelante do nupcial anel dos anéis, o anel do regresso?
Nunca encontrei mulher de quem quisesse ter filhos senão esta mulher que amo: porque te amo, eternidade!
Porque te amo, eternidade!
                                                                                             V
Se eu amo o mar, e tudo quanto ao mar se assemelha, e sobretudo quando me contradiz fogoso;
se existe em mim essa paixão investigadora que impele a vela para o desconhecido; se há na minha paixão um tanto da paixão do navegante;
se alguma vez exclamei com alegria: Se há na minha paixão um tanto da paixão do navegante; se alguma vez exclamei como medida:
“Desapareceram as costas: caiu agora a minha última cadeia; em meu redor agita-se a imensidade sem limites; longe de mim cintilam o tempo e o espaço; vamos! A caminho, velho coração!”
Como não hei de estar anelante da eternidade, anelante do nupcial anel dos anéis, do anel do acontecer e do regresso?
Nunca encontrei mulher de quem quisesse ter filhos senão esta mulher que amo: porque te amo, eternidade!
Porque te amo, eternidade!
                                                                                             VI
Se a minha virtude é virtude de bailarino, se muitas vezes pulei entre arroubamentos de ouro e de esmeralda; se a minha maldade é uma maldade risonha que se acha em seu centro entre ramadas de rosas e sebes de açucenas, porque no riso se reúne tudo o que é mau, mas santificado e absolvido pela sua própria beatitude; e se o meu alfa e ômega é tornar leve tudo quanto é pesado, todo o corpo dançarino, todo o espírito ave: e, na verdade, assim é o meu alfa e ômega.
Como não hei de estar anelante pela eternidade, anelante pelo nupcial anel dos anéis, pelo anel do regresso das coisas?
Nunca encontrei mulher de quem quisesse ter filhos senão esta mulher que amo: porque te amo, eternidade!
Porque te amo, eternidade!
                                                                                             VII
Se alguma vez descobri céus tranqüilos sobre mim voando com as minhas próprias asas no meu próprio céu; se nadei, brincando, em profundos lagos de luz; se a alada sabedoria da minha liberdade me veio dizer: “Olha! Nem para cima, nem para baixo! Lança-te à roda, para diante, para trás, leve como és! Canta! Não fales mais! Não estão as palavras feitas para os que são pesados? Não mentem todas as palavras ao que é leve? Canta! Não fales mais!”
Como não hei de estar anelante pela eternidade, anelante pelo nupcial anel dos anéis, pelo anel do sucesso e do regresso?
Nunca encontrei mulher de quem quisesse ter filhos senão esta mulher que amo: porque te amo, eternidade!

Porque te amo, eternidade!

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