sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

QUARTA E ÚLTIMA PARTE: ASSIM FALAVA ZARATUSTRA


                                                                           A SAUDAÇÃO

Ia já a tarde muito alta quando Zaratustra, depois de inúteis correrias tornou à sua caverna. No momento, porém, em que apenas se encontrava a vinte passos da entrada sucedeu o que menos se podia esperar: tornou a ouvir o grande grito de angústia. E, coisa assombrosa, naquele instante o grito saía mesmo da sua caverna; mas era um grito prolongado, estranho e múltiplo, e Zaratustra distinguia nele perfeitamente muitas vozes, conquanto à distância parecesse provir de uma só boca.
Zaratustra precipitou-se para a caverna. Que espetáculo o esperava a seguir aquele concerto! Estavam ali reunidos todos os que encontrara durante o dia: o rei da direita e o rei da esquerda, o velho encantador, o Papa, o mendigo voluntário, a sombra, o consciencioso, o lúgubre adivinho e o jumento; o homem mais feio colocara uma coroa e cingira duas faixas de púrpura — porque gostava de se disfarçar e adornar como todos os feios. — No meio daquela triste reunião, a águia de Zaratustra estava de pé inquieta e com as penas eriçadas, porque tinha de responder a demasiadas coisas para que o seu orgulho não tinha resposta; e a astuta serpente enroscara-se- lhe em torno do pescoço.
Zaratustra olhou tudo aquilo com grande assombro; depois examinou cada um dos hóspedes de per si, com benévola curiosidade, lendo nas suas almas e tornando a assombrar-se. Enquanto ele assim fazia, os que estavam reunidos levantaram-se, aguardando respeitosamente que Zaratustra tomasse a palavra:
E Zaratustra falou assim:
“Homens singulares que desesperais! Foi pois o vosso grito de angústia que ouvi? E sei agora aonde hei de ir buscar o que hoje procurei em vão, o homem superior.
Está sentado na minha própria caverna! Para que me hei de admirar? Fui eu mesmo que o atrai com os meus oferecimentos de mel e com a maliciosa tentação da minha felicidade.
Mas vós, proferis gritos de angústia, parece-me que andais muito em desacordo; os vossos corações entristecem-se uns aos outros ao ver-vos aqui reunidos. Primeiro de tudo devia ter estado aqui alguém: que vos fizesse rir outra vez, um chistoso, um dançarino, um catavento, uma ventoinha, algum velho louco: que vos parece isto?
Perdoem-me os que desesperam empregar eu tão frívolas palavras, indignas, na verdade, de tais hóspedes! Mas não adivinhais o que me enche de petulância o coração.
Desculpai-me! Sois vós mesmos, e o espetáculo que me ofereceis. Que todo o que contempla um desesperado cobra ânimo. Para consolar um desesperado... qualquer se julga forte bastante.
A mim destes-me vós essa força — um dom precioso, hóspedes ilustres, um verdadeiro presente de hóspedes! — Pois bem; não vos enfadeis se por minha vez vos ofereço o meu.
Este é o meu reino e o meu domínio; mas o que me pertence deve ser vosso durante esta tarde e esta noite. Sirvam-vos os meus animais, e seja a minha caverna o vosso lugar de repouso!
Aqui albergados, nenhum de vós deve desesperar; eu protejo toda a gente contra os animais selvagens dos meus domínios. Segurança: eis a primeira coisa que vos ofereço!
A segunda é o meu dedo mínimo. E se vos dou o dedo mínimo, tomareis a mão inteira e o coração ao mesmo tempo. Sede bem-vindos aqui; saúde, hóspedes meus!”
Assim falava Zaratustra, com amável e malicioso sorriso. Depois daquela saudação os hóspedes tornaram a inclinar-se guardando respeitoso silêncio; mas o rei da direita respondeu em nome de todos:
“Na maneira de nos ofereceres a mão, e na tua saudação, Zaratustra, conhecemos quem és: Curvaste-te ante nós”.
Mas quem, como tu, saberia curvar-se com tal orgulho? Isto ergue-nos a nós, reconfortando-nos.
Só para contemplar tal coisa subiríamos de bom grado a montanhas mais altas do que esta. Porque viemos ávidos do espetáculo: queríamos ver o que aclara olhos turvos.
E agora acabaram-se todos os nossos gritos de angústia. Já estão abertos e extasiados os nossos sentidos e os nossos corações. Um pouco mais, e o nosso ânimo brilhará desenfadado.
Zaratustra, na terra nada cresce mais satisfatório do que uma elevada e firme vontade. Uma elevada e firme vontade é a planta mais bela da terra. Semelhante árvore anima uma paisagem inteira.
Eu comparo a um pinheiro Zaratustra aquele que, como tu, cresce esbelto, silencioso, duro, solitário, feito da maneira mais flexível, soberbo, querendo enfim tocar o seu senhorio com verdes e vigorosos ramos, dirigindo enérgicas perguntas aos ventos, às tempestades, a quanto é familiar às alturas, e respondendo mais energicamente ainda imperativo e vitorioso. Ah! Quem não subiria às alturas para contemplar semelhantes plantas?
A vista da tua árvore, Zaratustra, anima o triste e abatido e também serena o inquieto e cura o seu coração.
E, certamente, para a tua montanha e para a tua árvore dirigem-se hoje muitos olhares; há muitos que aprenderam a perguntar:
“Quem é Zaratustra?”
E todos aqueles em cujos ouvidos chegaste a destilar o teu mel e as tuas canções, todos os ocultos, todos os solitários disseram de repente ao seu coração:
“Ainda vive Zaratustra? Já não vale a pena viver; tudo é igual, tudo é vão, se não vivemos com Zaratustra!”
“Porque não chega o que se anunciou há tanto tempo”? — assim pergunta um grande número — devora-lo-ia a soledade? Ou nós é que teremos que o ir buscar?”
Agora até a própria soledade abranda e se quebra, como túmulo que se abre e já não pode reter os seus mortos. Por toda parte se vêm ressuscitados.
Agora as ondas sobem cada vez mais em torno da tua montanha, Zaratustra. E apesar da elevação da tua altura, é mister que muitas subam até ti; a tua barca já não deve permanecer muito tempo abrigada.
E termos vindo à tua caverna, nós, os que desesperamos, e já não desesperamos, não é senão um sinal e um presságio de que vêm a caminho outros melhores do que nós.
Porque a caminho para ti se encontra também o último resto de Deus entre os homens; quer dizer, todos os homens de grande anelo, do grande tédio, da grande sociedade. Todos os que não querem viver sem poder aprender a esperar novamente; a aprender contigo,
Zaratustra, a grande esperança!
Assim falou o rei da direita e pegou na mão de Zaratustra para lha beijar, mas Zaratustra substraiu-se à sua veneração e retrocedeu assombrado, silencioso e sumindo-se de repente, como muito ao longe. Passados instantes, todavia, voltou para o pé dos seus hóspedes, e olhando-os com olhos límpidos e prescrutadores, disse: “Hóspedes meus, homens superiores, quero-vos falar em alemão e claramente; não era a vós que eu esperava nas montanhas”.
“Em alemão e claramente”? Deus nos acuda! — disse então à parte o rei da esquerda. — Bem se vê que este sábio do Oriente não conhece estes bons alemães! Quererá dizer “em alemão e barbaramente”. Bom! Hoje ainda não é este o pior dos gostos!”
Zaratustra continuou:
“Pode ser que todos vós sejais superiores, mas para mim não sois bastante altos nem bastante fortes”.
“Para mim” significa o implacável que reside em mim, mas que não residirá sempre. E se me pertenceis, não é, todavia como meu braço direito.
Que o que anda com pernas doentes e fracas, como vós, primeiro que tudo quer — conscientemente ou não — que o contemplem.
Eu, porém, não guardo contemplações com os meus braços e as minhas pernas, eu não guardo contemplações com os meus guerreiros.
Como poderíeis ser bons para a minha guerra?
Convosco perderia todas as vitórias, e há alguns de vós que cairiam só ao ouvir o rufar dos meus tambores.
Também para mim não sois bastante belos nem bem nascidos. Para as minhas doutrinas preciso espelhos límpidos e polidos; na vossa superfície desnaturar-se-ia a minha própria imagem.
Sobre os vossos ombros pesam muitas cargas, muitas recordações; nos vossos recônditos estão sentados muitos anões maldosos.
Também em vós há populaça escondida.
E embora sejais elevados e de espécie superior, em vós encerram-se muitas coisas torcidas e disformes. Não há ferreiro no mundo capaz de vos reformar e endireitar.
Apenas sois pontes; passe sobre vós para o outro lado gente mais elevada! Representais degraus; não vos enfadeis, portanto, com aquele que suba por cima de vós até à sua altura.
Talvez da vossa semente nasça um dia para mim um verdadeiro filho, um herdeiro completo; mas esse ainda está afastado.
Vós, porém, não sois os seres a quem pertencem o meu nome e os meus bens deste mundo.
Não é a vós que espero nestas montanhas, não é convosco que tenho o direito de descer pela última vez.
Vós apenas sois sinais precursores, anúncios de que se encaminham para mim outros mais elevados; e não os homens do grande anelo, do grande tédio, da grande sociedade e aquilo a que chamastes “resto de Deus sobre a terra”.
Não, não! Mil vezes não! A outros espero nestas montanhas e sem eles não me arredo daqui; espero outros mais altos, mais fortes, mais vitoriosos, mais alegres, retangulares de corpo e alma. É preciso chegarem os leões risonhos!
Hóspedes meus, homens singulares, ainda não ouvistes falar dos meus filhos? Não ouvistes dizer que se encaminham para aqui?
Falai dos meus jardins, das minhas Ilhas Bem-aventuradas, da minha bela e nova espécie. Por que me não falais disso?
Da vossa estima imploro esta fineza: falai-me de meus filhos. Para isso sou rico, para isso me empobreci. Quanto dei!
E quanto daria para ter uma coisa: esses filhos, essas plantações vivas, essas árvores da vida da minha vontade e da minha mais alta esperança!”
Assim falava Zaratustra, mas interrompeu de súbito o discurso porque o assaltou o seu grande desejo, e cerrou os olhos e a boca, tal era a agitação do seu peito.
E todos os hóspedes guardaram silêncio também e permaneceram imóveis e confusos, a não ser o velho feiticeiro, que acenava com as mãos e contraía o semblante.

                                                                                          A CEIA

Que neste ponto o feiticeiro interrompeu a saudação de Zaratustra e dos hóspedes, adiantou-se pressuroso como quem não tem tempo a perder, pegou na mão de Zaratustra e exclamou: “Mas, Zaratustra!, Umas coisas são mais necessárias do que outras, segundo tu mesmo dizes. Pois bem! Agora, há uma coisa que para mim é mais necessária de que todas as outras.
O prometido é devido; não me convidaste para uma refeição? Estão aqui muitos que deram longas caminhadas, e é de supor que os não queiras satisfazer com palavras.
“Já a todos falaste demasiado de morrer de frio, de se afogarem, asfixiarem e de outras fraquezas do corpo; mas ainda ninguém se lembrou da minha fraqueza: o receio de morrer de fome”.
Assim falou o adivinho; mas ao ouvir estas palavras, os animais de Zaratustra fugiram espantados, pois viram que o que tinham trazido durante o dia não chegava nem para o adivinho só.
“Ninguém se lembra do receio de morrer de fome — prosseguiu o adivinho”. — E conquanto ouça correr a água abundante e infatigavelmente, como os discursos da sabedoria, eu, pela minha parte, quero vinho!
Nem todos são, como Zaratustra, bebedores natos de água, a água também não é boa para gente cansada e prostrada; nós precisamos de vinho, só o vinho cura rapidamente e dá saúde repentina!
Neste somenos, enquanto o adivinho pedia vinho, o rei da esquerda, o silencioso, tomou também a palavra dizendo: “Do vinho nos encarregaremos nós, eu e o meu irmão, o rei da direita; vinho temos bastante — uma carga completa de burro. — Não falta, portanto, senão pão”.
“Pão — exclamou Zaratustra, rindo”. — Pão positivamente, não têm os solitários. Mas o homem não se alimenta só de pão, mas também de boa carne de cordeiros, e eu tenho dois.
É esquartejá-los depressa e aromatizá-los com sálvia, que é assim que me agrada a carne de cordeiro. E não nos faltam raízes nem frutos que até contentariam gastrónomos e paladares delicados, nem nozes e outros enigmas que partir.
Vamos, pois, fazer já boa refeição. Mas quem quiser comer conosco tem que deitar mãos à obra, inclusive os reis.
“Que nos domínios de Zaratustra até um rei pode ser cozinheiro”.
A proposta agradava a todos; o mendigo voluntário era o único que se opunha à carne, ao vinho e às espécies.
“Olhem o glutão do Zaratustra”! — disse em ar de zombaria. — Vêm-se então para as cavernas e para as altas montanhas a fim de celebrar semelhantes festins?
Agora compreendo o que ele nos predicou noutra ocasião: “Bendita seja a pequena pobreza!” “É porque quer suprimir os mendigos”.
“Tem bom humor como eu — respondeu Zaratustra”. — Conserva os teus hábitos, bom homem! — Mastiga o teu grão, bebe a tua água, gaba a tua cozinha, de forma que te contentes.
Eu apenas sou lei para os meus, não sou uma lei para toda gente. Mas aquele que pertencer ao número dos meus tem que ter ossos fortes e pernas ágeis; há de ser animado para as guerras e festins; nem sombrio nem sonhador; disposto para as coisas mais difíceis como para uma festa; são e robusto.
O melhor que existe pertence-nos, a mim e aos meus, e se não no-lo derem, tomamo-lo: o melhor alimento, o céu mais puro, os pensamentos mais fortes, a mulheres mais formosas!”
Assim falava Zaratustra; e o rei da direita respondeu: “É singular! Nunca se ouviram coisas tão judiciosas na boca de um sábio.
“E ainda mais singular por se tratar de um sábio que é, todavia, inteligente, nada tem de asno”.
Assim falou admirado o rei da direita, e o jumento concluiu maliciosamente com um I. A.
E foi este o princípio da longa refeição que se chama “a ceia” nos livros de histórias. Durante essa refeição só se falou do homem superior.

                        
                                                              O “HOMEM SUPERIOR”
                                                                            I
Quando pela primeira vez estive com os homens cometi a loucura do solitário, a grande loucura: fui para a praça pública.
E como falava a todos, não falava a ninguém: e de noite tinha por companheiros volatins e cadáveres; eu próprio era quase um cadáver!
A nova manhã trouxe-me uma nova verdade: aprendi então a dizer: “Que me importam a praça pública e a populaça e as orelha compridas da populaça?”
Homens superiores, aprendei isto comigo: na praça pública ninguém acredita no homem superior. E se teimais em falar lá, a populaça diz: “Todos somos iguais”.
“Homens superiores — assim diz a populaça: — não há homens superiores: todos somos iguais; perante Deus um homem não é mais do que outro: todos somos iguais!”
Perante Deus! Mas agora esse Deus morreu; e perante a populaça nós não queremos ser iguais. Homens superiores, fugi da praça pública!
                                                                          II
Perante Deus! Mas agora esse Deus morreu! Homens superiores, esse Deus foi o vosso maior perigo.
Ressucitastes desde que ele jaz na sepultura. Só agora torna o Grande Meio-Dia; agora torna-se senhor o homem superior.
Coompreendeis esta palavra, meus irmãos? Assustai-vos: apodera-se-vos do coração a vertigem? Abre-se aqui para vós o abismo?
Ladra-vos o cão do inferno?
Homens superiores! Só agora vai dar à luz a montanha do futuro humano. Deus morreu: agora nós queremos que viva o Super-Homem.
                                                                           III
Os mais preocupados perguntam hoje: “Como se conserva o homem?” Mas Zaratustra pergunta — e é o primeiro e único a fazê-lo: —
“Como será o homem superado?”
O Super-homem é que me preocupa; para mim é ele o primeiro e o único, e não o homem: não o próximo, o mais pobre, nem o mais aflito, nem o melhor.
Meus irmãos, o que eu posso amar no homem é ele ser uma transição e um fim. E em vós também há muitas coisas que me fazem amar e esperar.
Desprezastes, homens superiores: é isso que me faz esperar: porque os grandes desprezadores são também os grandes reverenciadores.
Desesperaste, coisa que merece grande respeito; porque não aprendeste a render-vos, nem aprendeste a ser prudentes.
Hoje, os pequenos tornaram-se senhores: todos pregam a resignação e a modéstia e a prudência, e a aplicação, e as considerações, e as virtudes pacatas.
O que é que de espécie feminil, o que procede de servil condição, e mormente a turba plebéia, é o que quer agora assenhorear-se do destino humano. Horror! Horror! Horror!
Esse pergunta uma e outra vez, sem se cansar: “Como se conservará o homem melhor, mais tempo e mais agradavelmente”? “Assim são hoje os senhores”.
Ó! meus irmãos! Subjugai-me esses senhores atuais, subjugai-me essa gentinha: é o maior perigo do Super-homem.
Homens superiores, dominai as virtudes enganosas, as considerações com os grãos de areia, o bulício de formigas, a ruim complacência, a “felicidade dos outros!”
A ter que vos renderdes preferi desesperar.
Amo-vos deveras, homens superiores, porque hoje não sabeis viver! Pois assim viveis... melhor!
                                                                        IV
Tendes valor, meus irmãos? Estais decididos? Não falo de valor, perante testemunhas, mas de valor, de solitários, valor de águias, do que não tem por espectador nenhum deus.
As almas frias, os cegos, os bêbados, não têm o que eu chamo coração. Coração tem aquele que conhece o medo, mas domina o medo; o que vê abismo, mas com arrogância.
O que vê o abismo, mas com olhos de águia; o que se prende ao abismo com garras de águia: é este o valoroso.
                                                                        V
“O homem é mau”. Assim falavam os outros sábios para consolo meu. Ai! Se isto fosse verdade ainda hoje! Que o mal é a melhor força do homem.
“O homem deve-se fazer melhor e pior”: é isso o que eu predico, pela minha parte! O maior mal é necessário para o maior bem do
Super-homem.
Padecer pelos pecados dos homens podia ser bom para o tal pregador dos humildes.
Eu, porém, rejubilo com o grande pecado como minha maior consolação.
Estas coisas não são ditas para a orelhas compridas; e nem toda a palavra convém a toda a boca. Isto são coisas sutis e afastadas: não as devem apanhar patas de carneiros.
                                                                     VI
Homens superiores: acreditais que estou aqui para fazer bem ao que vós fizestes mal?
Ou que quero daqui por diante deitar mais comodamente os que sofrem? Ou ensinar-vos, a vós, que andais errantes e extraviados e perdidos na montanha, caminhos mais fáceis?
Não! Não! Mil vezes não! É preciso que morram cada vez mais e os melhores da vossa espécie: porque é preciso que o vosso destino seja. cada vez mais rigoroso. Só assim...
Só assim cresce o homem até à altura em que o raio o fere e aniquila! Há suficiente altura para o raio!
A minha inteligência e o meu anelo tendem para o raio, para o durável, para o afastado: que me importaria a vossa mesquinha, comum e breve fraqueza?
Para mim ainda não sofreis bastante. Pois sofreis por vós; ainda não sofrestes pelo homem. Mentiríeis se dissesseis o contrário! Vós não sofreis pelo que eu sofri.
                                                                 VII
Não me basta que o raio já não prejudique.
Não quero desviá-lo; quero que aprenda a trabalhar para mim.
A minha sabedoria acumula-se há muito tempo como uma tempestade; cada vez se torna mais tranqüila e sombria. Assim faz toda a sabedoria que há de chegar a engendrar o raio.
Para estes homens de hoje não quero ser nem chamar-me luz. A estes... quero cegá-los. Raio da minha sabedoria, cega-os!
                                                                 VIII
Nada quereis superior às vossas forças: adoecem de deplorável hipocrisia os que querem coisas superiores às suas forças.
Mormente quando querem grandes coisas! Que esses moedeiros falsos, esses cômicos sutis despertam a desconfiança pelas grandes coisas, e acabam por serem falsos consigo mesmos, gente de olhar de revés, entes retrógrados, disfarçados com palavras solenes, de virtudes aparatosas, de obras vistosas.
Muito cuidado com eles, homens superiores!
Para mim nada é hoje mais precioso e raro do que a probidade.
Não pertence isto hoje à populaça? Pois a populaça não sabe o que é grande, o que é pequeno, o que é reto nem o que é honrado: é inocentemente tortuosa; mente sempre.
                                                                IX
Homens superiores! Homens animosos! Homens francos! Abri hoje uma salutar desconfiança! E conservai secretas as vossas razões; porque isto hoje pertence à populaça.
O que a populaça aprendeu a crer sem razão quem o poderia derrubar à sua vista com razão?
Na praça pública convence-se com gestos. As razões inspiram desconfiança à populaça.
E se alguma vez triunfa lá a verdade, perguntai a vós mesmos com salutar desconfiança? “Que grande erro lutaria em prol dela?”
Livrai-vos também dos doutos! Odeiam-vos porque são estéreis! Têm olhos frios e secos, aos quais todo o pássaro parece depenado.
Gabam-se de não mentir; mas a incapacidade de mentir está ainda muito longe do amor à verdade. Acautelai-vos!
A ausência de ardor difere muito do conhecimento. Eu não creio nos espíritos frios. O que pode mentir ignora o que é a verdade.
                                                                X
Se quereis subir, servi-vos das vossas pernas! Não vos deixeis levar ao alto, não vos senteis nas costas nem na cabeça de outrem!
Montastes a cavalo! Galopas agora em bom passo até o fim? Bem, meu amigo! Mas o teu pé coxo vai também a cavalo!
Quando chegares ao teu fim, quando desceres do cavalo, homem superior, tropeçarás precisamente na tua altura.
                                                                XI
Homens superiores, homens que criais! Não se concebe senão ao teu próprio filho.
Não vos deixeis induzir em erro! Quem é pois, o vosso próximo? E também fazeis as coisas “pelo próximo”! Não crieis, contudo, por ele.
Esquecei esse “por” vós todos que criais: a vossa virtude quer justamente que nada façais “por” nem “devido a” nem “porque”.
Precisais cerrar os ouvidos a essas palavras falsas.
O “pelo próximo” não passa de virtude dos pequenos, dos que dizem “assim como fizeres assim acharás” e “uma mão lava a outra”: tal gente não tem o direito nem a força do vosso egoísmo.
No vosso egoísmo, criadores, há a previsão e a precaução da mulher prenhe! O que ainda ninguém viu com os olhos, o fruto, é isso que o vosso amor protege, conserva e alimenta.
Onde está todo o vosso amor, no vosso filho, está também toda a vossa virtude! A vossa obra, a vossa vontade, eis o vosso próximo”: não vos deixeis induzir a falsos valores!
                                                               XII
Homens superiores, homens que criais! Quem quer que há de dar à luz está enfermo; mas o que deu à luz acha-se impuro.
Perguntais às mulheres: não se dá luz por gosto. A dor faz cacarejar as galinhas e os poetas.
Em vós, que criais, há muitas impurezas. É que tivestes que ser mães.
Um novo filho: ó! Quantas impurezas vieram ao mundo! Afastai-vos! O que dá à luz deve purificar a alma.
                                                              XIII
Não queirais ser mais virtuosos do que vo-lo consentem as próprias forças. E não exijais de vós coisa que seja inverossímil.
Segui as pisadas que deixou já a virtude de vossos pais. Como querereis subir tanto, se a virtude de vossos pais não subisse convosco?
Mas aquele que quiser ser o primeiro, livre-se bem de não ser o último. E não coloqueis a santidade onde estejam os vícios de vossos pais.
Que sucederia se aquele cujos progenitores foram afeiçoados às mulheres, aos vinhos fortes e aos javalís, exigisse de si castidade?
Seria loucura! Muito me parece isso para semelhante homem, se é homem de uma só mulher, ou de duas ou de três.
E se fundasse conventos, eu diria da mesma maneira: Para quê? É uma nova loucura.
Fundou para si mesmo uma casa de correção e um refúgio. Bom proveito! Eu, porém, não acredito nisso.
Na soledade cresce o que cada qual leva consigo, inclusive a besta inferior. Por isso a muitos é preciso afastá-los da soledade.
Terá havido até hoje na terra coisa mais impura do que um santo desterro?
                                                              XIV
Tímidos, envergonhados, encolhidos, como o tigre que falha uma investida, assim vos vi fugir amiúde, homens superiores. Errastes uma partida.
Mas isso que vos importa, jogadores de dados? Não aprendestes a jogar e a lograr-vos como se deve jogar e lograr? Não estamos sempre sentados a uma grande mesa de logro e de jogo?
E por se vos haverem malogrado grandes coisas, haveis de ser entes malogrados? E por vós o serdes, sê-lo-á por isso o homem?
Mas se o homem é um ser malogrado, então que importa?
                                                              XV
Quanto mais elevada no seu gênero é uma coisa, mais raro é o seu logro. Vós, homens superiores, que vos encontrais aqui, não sois todos seres malogrados?
Coragem! Isso que importa? Quantas coisas são ainda possíveis! Aprendei a rir-vos de vós mesmos; é mister rir!
Que se em muito que falais não acertardes mais que em metade, pois estais meio-truncados, nem por isso deixa de se agitar a resolver em vós outros o futuro do homem.
O mais remoto e profundo que há no homem, a sua altura estelar e a sua força imensa, todas estas coisas se chocam umas com as outras na vossa marmita em ebulição.
E muito mais de uma marmita rebenta! Aprendei a rir-vos de vós mesmos, como é preciso rir! Ó! Homens superiores! Quantas coisas são ainda possíveis!
E realmente, quantas coisas se alcançaram já!
Como esta terra é rica de coisas boas e perfeitas e afortunadas!
Rodeai-vos de coisas boas e perfeitas, homens superiores.
A sua dourada madureza cura o coração. As coisas perfeitas ensinam-nos a esperar.
                                       
                                                            XVI
Qual tem sido hoje, na terra, o maior pecado? Não foi a palavra daquele que disse: “Pobres dos que riem aqui”...?
Seria porque não encontrava na terra nenhum motivo de riso? Então procurou mal.
Até uma criança encontra aqui motivos.
Esse... não amava bastante, senão amar-nos-ia também a nós, risonhos! Mas anatematizava-nos e odiava-nos, prometendo-nos gemidos e ranger de dentes.
Por se não amar é logo maldizer? Isso é coisa de mau gosto. E foi o que fez aquele intolerante. Saira da populaça.
Ele é que não amava bastante; senão irritar-se-ia menos por não ser amado.
O grande amor não quer amor: quer mais.
Afastai-vos do caminho de todos esses intolerantes! É gente pobre, enferma, plebéia; olha esta vida malignamente, dão mau olhado à terra.
Afastai-vos do caminho de todos esses intolerantes! Pesam-lhes os pés e o coração; não sabem dançar. Como a terra há de ser leve para tal gente!
                                                         XVII
Todas as coisas boas se aproximam do seu fim por maneira tortuosa. Como os gatos, arqueiam o lombo e rosnam interiormente, recreando-se com a sua próxima felicidade; todas as coisas boas riem.
O modo de andar de uma pessoa revela o seu caminho. Vede-me andar a mim! Aquele que se aproxima do seu fim, dança.
E eu certamente não me converti em estátua nem me encontro postado como uma coluna, rígido, entumecido, petrificado; gosto da carreira veloz.
E embora haja na terra atoleiros e denso nevoeiro, aquele que tem os pés leve corre e dança por cima da lama como sobre gelo liso.
Elevai; elevai cada vez mais os vossos corações, meus irmãos! E não vos esqueçais das pernas também. Alçai também as pernas, bons bailarinos, e erguei também a cabeça!
                                                        XVIII
Esta coroa do risonho, esta coroa de rosas, eu mesmo a cingi, eu próprio canonizei o meu riso.
Ainda não encontrei ninguém capaz de fazer outro tanto.
Eu, Zaratustra, o dançarino, Zaratustra, o leve, o que agita as suas asas pronto a voar, acenando a todas as aves, ligeiro e ágil, divinamente leve e ágil; eu, Zaratustra, o adivinho, Zaratustra, o risonho, nem impaciente nem intolerante, afeiçoado aos saltos eu mesmo cingi esta coroa.
                                                      XIX
Elevai, elevai cada vez mais os vossos corações, meus irmãos! E não vos esqueçais também das pernas! Alçai as pernas, bons bailarinos, e suster-vos-eis até a cabeça.
Também animais pesados conhecem a ventura; há cambaios de nascimento que forcejam singularmente à maneira de um elefante que tentasse suster-se de cabeça.
Mas vale mais estar doido de alegria do que de tristeza; vale mais dançar pesadamente do que andar claudicando. Aprendei, pois, comigo a sabedoria: até a pior das coisas tem dois reversos, até a pior das coisas tem pernas para bailar; aprendei, pois, vós, homens superiores, a afirmar-vos sobre boas pernas.
Esquecei a melancolia e todas as tristezas da populaça. Como hoje me parecem tristes os arlequins plebeus. Mas isto hoje pertence à populaça.
                                                      XX
Fazei como o vento quando se precipita das cavernas montanhosas; quer dançar à sua vontade. Os mares tremem e saltam à sua passagem.
Louvado seja aquele que dá asas aos burros, e ordenha as leoas, esse espirito bom e indômito que chega como um furacão para tudo o que é de hoje, para toda a populaça!
Louvado seja o inimigo de todas as folhas murchas; esse espírito de tempestade, esse espírito selvagem, bom e livre que dança nos atoleiros como no meio de prados!
Bendito seja o que odeia os cães da populaça e a toda essa ralé malograda e sombria! Bendito seja esse espirito de todos os espíritos livres, a tempestade risonha que sopra o pó nos olhos de todos que vêm negro e estão ulcerados.
Homens superiores, o pior que tendes é não haver aprendido a dançar como é preciso dançar: a dançar por cima das vossas cabeças!
Que importa não terdes sido felizes?
Quantas coisas são ainda possíveis!
Aprendei, pois, a rir por cima de vós.
Elevai, elevai cada vez mais os vossos corações, bons bailarinos! E não esqueçais também o belo riso!
Esta coroa do risonho, esta coroa de rosas, lanço-vô-la eu, meus irmãos! Canonizei o riso; aprendei, pois, a rir, homens superiores!”

                  

                                                      O CANTO DA MELANCOLIA
                                                                          I
Quando Zaratustra pronunciou estes discursos, encontrava-se junto da entrada da sua caverna; mas, às últimas palavras, desapareceu de diante dos hóspedes e fugiu um instante para o ar livre.
— “Ó! aromas puros! — exclamou.
Ó! tranqüilidade benéfica! Mas onde estão os meus animais? Vinde, vinde, águia e serpente minhas!
Dizei-me, todos aqueles homens superiores... cheiram bem?
Ó! aromas puros! Só agora sei e sinto quanto vos amo, animais meus!”
E Zaratustra tornou a dizer: “Quanto vos amo, animais meus!” A águia e a serpente, por seu turno, juntaram-se-lhe quando ele pronunciou estas palavras, e lá puseram-se a olhá-lo. Ali fora era melhor o ar do que onde estavam os homens superiores.
                                                                         II
Apenas Zaratustra saiu da caverna, o velho feiticeiro ergueu-se, e, olhando maliciosamente, disse:
“Foi-se. E já, homens superiores, — permiti vos envaideça com este nome de elogio e lisonja como ele o fez, — já de mim se apodera o espírito maligno e falaz, o meu espírito feiticeiro, o demônio da melancolia, que é o adversário de Zaratustra: desculpai-o! Quer agora realizar os seus encantamentos na vossa presença; é positivamente a sua hora. Em vão luto com este espírito mau.
A todos vós, sejam os que querem as honras que vos pretendem adjudicar com palavras, — ora vos chameis “os espíritos livres”, ora “os verídicos”, já “os redentores do espírito”, já os “libertos” ou então “os do grande anelo”; — a todos os que, como eu estão atacados pelo “grande tédio”, para os quais morreu o antigo deus e para quem não existe ainda no berço, envolto em faixas, nenhum deus novo: a todos vós é propício o meu espírito maligno, o meu demônio encantador.
Conheço-vos, homens superiores, e conheço também este duende que estimo a meu pesar, este Zaratustra. As mais das vezes parece-me uma larva de santo.
Parece-me um como novo e estranho artifício, em que se compraz o meu espírito maligno, o demônio da melancolia; amiúde suponho amar Zaratustra por causa do meu espírito maligno.
Mas já se apodera de mim e me domina esse espirito maligno, esse espírito de melancolia, esse demônio do crepúsculo; e ainda o tenta...
Abri os olhos, homens superiores!... Dá-lhe tentações de vir, nu, não sei como homem ou mulher; mas vem, domina-me, infeliz de mim! Abri os vossos sentidos!
Extingue-se o dia para todas as coisas, mesmo para as melhores; chega o crepúsculo! Ouvi e vede, homens superiores, que demônio, homem ou mulher, é este espírito da melancolia do crepúsculo!”
Assim falou o velho feiticeiro; depois olhou maliciosamente ao derredor e pegou na harpa.
                                                                              III
“Na serena atmosfera, quando já o consolo do rocio desce à terra, invisível e silencioso — porque o rocio consolador veste delicadamente como todos os meigos consoladores, — então recordas tu, coração ardente, como estavas sedento de lágrimas divinas e gotas de orvalho, quando te sentias abrasado e fatigado, porque nos erbosos caminhos amarelos corriam em torno de ti através das
escuras árvores, maliciosos raios de sol poente, ardentes olhares de sol, deslumbrantes e malévolos.
“Pretendente da verdade”! tu? — Assim chasqueavam. — Não. Simples poeta. Um animal astuto e rasteiro que mente deliberadamente; um animal ansioso de presa, mascarado de cores vivas, máscara para si próprio, presa para si mesmo. Isto... pretendente da verdade?...
Um pobre louco! um simples poeta! um palrador pitoresco que perora por detrás de uma máscara de demente que anda vagueando por enganosas pontes de palavras, por ilusórios arco-íris; que anda errante e bamboleante de cá para lá em ilusórios zelos! Um louco, nada mais!
Isto... é que é ser pretendente da verdade?... Não! Nem silencioso, rígido e frio como uma imagem, como uma estátua divina; nem postado em frente dos templos como guarda dos umbrais de um deus, não! Inimigo destes monumentos de virtude, mais harmonizado com os desertos do que com os templos cheios de arteirices felinas, saltas por todas as janelas para te lançares em todas as aventuras, farejas todos os bosques virgens, e entre as carapintadas feras, rapace, astuto, embusteiro, corres com lábios sensuais fresco, corado e belo como o pecado soberanamente chasqueador, soberanamente infernal, soberanamente cruel.
Ou és como a águia que olha e torna a olhar fixamente o abismo, o seu abismo... ó! como desce, como cai, como se some, girando em profundidades cada vez mais fundas! E depois que maneira de se precipitar de súbito, faminta, ansiosa de cordeiros, cheia de furibunda aversão por tudo quanto tem aparências virtuosas, cortesia humilde, pêlo encrespado e aspecto sereno, como a meiga benevolência do cordeiro!
São assim as ânsias do poeta: como de pantera, como de águia. Assim são os teus anelos sob os teus artifícios, louco! Poeta! Tu, que és um homem, viste um Deus como um cordeiro... Separar o Deus do homem como o cordeiro do homem, e rir-se ao separá-lo;
Esta é que é a tua felicidade! A felicidade de uma pantera e de uma águia, a felicidade de um poeta e um louco!
Assim como na serena atmosfera, quando já a meia luz, inimiga do dia, desliza invejosa verdejante entre rubores purpurinos, empalidecem à sua passagem as rosas celestes até caírem e sumirem-se na noite: assim caí eu mesmo, noutro tempo, da minha loucura de verdade, dos meus anelos do dia, fatigado do dia, enfermo de luz; assim caí para o caso, para as sombras... abrasado pela sede de uma verdade. Recordas-te, coração ardente, como então estavas sedento? Esteja eu desterrado de toda a verdade! Mais do que um louco, não!
Tanto como um poeta!”

                                                                        DA CIÊNCIA

Assim cantava o feiticeiro, e todos os que estavam ali reunidos caíram como pássaros na rede da sua astuta e melancólica volutuosidade. O único que se não deixou apanhar foi o conscencioso que, arrebatando-lhe a harpa das mãos, gritou:
“Deixa entrar o ar puro! Mandei entrar Zaratustra! Infeccionas esta caverna e tornas a atmosfera sufocante, maligno feiticeiro!
Homem falso e ardiloso, a tua sedução conduz a desejos e a desertos desconhecidos! E, ai de nós, se homens como tu dão em falar da verdade com ares importantes!
Ai de todos os espíritos livres que não estejam precavidos contra semelhantes feiticeiros! Podem despedir-se da sua liberdade, porque tu predicas o regresso às prisões e a elas conduzes!
No teu lamento, demônio melancólico, percebe-se um reclamo: pareces-te com aqueles cujo elogio da castidade impele secretamente à volutuosidade!”
Assim falou o consciencioso, mas o velho feiticeiro olhava em seu derredor, gozando a sua vitória, e devido a isso suportava a cólera do consciencioso.
“Cala-te — disse com voz modesta: — as boas canções requerem bons ecos; depois de boas canções é preciso haver silêncio durante um bom espaço de tempo”.
Assim fazem todos os homens superiores.
Tu, porém, pouco compreendeste do meu canto, provavelmente! “Tens pouco espírito encantador”.
— “Honras-me — tornou o consciencioso — distinguindo-me assim. Mas, que vejo? — Vós ainda, continuas aí assentados com olhares ansiosos? Ó! almas livres! que foi feito então da vossa liberdade?
Creio que vos deveis parecer com aqueles que por muito tempo vêm bailar raparigas nuas — até as vossas próprias almas se põem a bailar!
Deve haver em vós, homens superiores, muito mais do que aquilo a que o feiticeiro chama o seu maligno espírito de encantamento e de fraude; de certo somos diferentes.
E na verdade, antes de Zaratustra tornar à sua caverna, falamos e pensamos juntos o suficiente para eu saber que somos diferentes.
Vós e eu buscamos também aqui em cima coisas diferentes. Pois eu procuro mais certeza: por isso me acerquei de Zaratustra, que é a torre e a vontade mais firme, hoje que tudo vacila e treme na terra.
Quanto a vós, porém, basta-me ver os olhos que fazeis para apostar que procurais antes incertezas, estremecimentos, perigos, tremores de terra.
Parece-me — desculpai-me a presunção, homens superiores — parece-me que desejais a vida mais lastimável e perigosa, a que a mim me inspira temor: a vida dos animais selvagens, os bosques, as cavernas, as montanhas abrutas e os labirintos.
E os que mais vos agradam não são os que conduzem para fora do perigo; mas os que levam para fora de todos os caminhos, os sedutores. Mas se tais anelos são verdadeiros em vós outros, a mim parecem-se-me de toda a maneira impossíveis.
Que o sentimento inato e primordial é o temor; pelo temor se explica tudo; o pecado original e a virtude original.
A minha própria virtude nasceu do temor; chama-se ciência.
E o temor que mais tem logrado no homem é o temor aos animais selvagens, incluso o animal que o homem oculta e receia em si, aquele a que Zaratustra chama “a besta interior”.
“Este estranho temor, por fim requintado e espiritualizado, parece-me que hoje se chama ciência”.
Assim falava o consciencioso; mas Zaratustra, que nesse mesmo instante tornava à caverna, e que ouvira e adivinhara a última parte do discurso, atirou ao consciencioso um punhado de rosas, rindo-se das suas “verdades”. — “Que”? — exclamou — que acabo de ouvir?
Parece-me que estás louco deveras, ou então que o estou eu; vou já virar a tua verdade de cima para baixo.
Que o temor é a nossa exceção.
Em compensação, o valor e a paixão pelas aventuras, pelo incerto, pelas coisas ainda não apontadas: o valor parece-me toda a história primitiva do homem.
Invejou e arrebatou aos animais mais selvagens e valorosos todas as suas virtudes: só assim se fez homem.
“Esse valor apurado e espiritualizado por fim, esse valor humano com asas de águia e astúcia de serpente, parece-me chamar-se hoje”.
Zaratustra! “— exclamaram simultaneamente todos os ali reunidos, soltando uma gargalhada; mas qualquer coisa se elevou deles que se assemelhava a uma nuvem negra. Também o feiticeiro se pôs a rir e disse maliciosamente: “Arre! Foi-se-me o espírito maligno!
Eu preveni-vos contra ele, quando vos dizia que era um impostor, um espírito mentiroso e fraudulento.
Sobretudo quando se mostra a nu. Que posso eu fazer, porém, contra seus ardis? Acaso fui eu que o criei e quem criou o mundo?
Vamos! Tornemos a ser bons e joviais! E conquanto Zaratustra franza o sobrolho — olhem-no! Tem-me aversão! — antes de chegar a noite aprenderá outra vez amar-me e a elogiar-me: não pode estar muito tempo sem fazer doidices destas...
Este ama os seus inimigos: dos que tenho encontrado é quem melhor conhece tal arte. Mas vinga-se deles... nos amigos!”
Assim falou o velho feiticeiro, e os homens superiores aclamaram-no; de forma que Zaratustra, rodeando, foi estreitando maliciosa e amoravelmente as mãos dos seus amigos, como quem tem de que se desculpar; mas quando chegou à porta da caverna, tornou a ansiar pelo ar puro de fora e a companhia dos seus animais, e quis sair.

                                                          ENTRE AS FILHAS DO DESERTO
                                                                                I
“Não te retires — disse então o viandante que se dizia a sombra de Zaratustra”. — Fica ao pé de nós, quando não poderia tornar a invadir-nos a antiga e esmagadora aflição.
Já o velho feiticeiro nos prodigalizou o melhor da sua colheita; e olha: o Papa, tão piedoso, tem os olhos inundados de lágrimas, e tornou a embarcar no mar da melancolia.
Estes reis ainda podiam mostrar boa cara diante de nós todos; porque são os que melhor aprenderam essa arte. Aposto que, se se não tivessem testemunhas, também lhes chegaria a má peça, a má peça das nuvens passageiras, da úmida melancolia, do céu nublado, dos sóis roubados, dos ventos de outono que zumbem: a má peça do nosso alarido e dos nossos gritos de angústia. Zaratustra, deixa-te estar conosco! Há aqui muita miséria oculta, muita noite, muitas nuvens, muito ar pesado!
Nutriste-nos de fortes alimentos viris e de máximas fortificantes; não permitas que para conclusão nos surpreendam novamente os espíritos da frouxidão, os espíritos efeminados!
Só tu sabes fortificar e purificar o ambiente que te rodeia! Acaso já encontrei na terra ar tão puro como na tua caverna e nos teus domínios?
E contudo, tenho visto muitos países; as minhas narinas aprenderam a examinar e a apreciar ares múltiplos; mas onde elas experimentam o seu maior deleite é a teu lado.
A não ser... a não ser... Ó! Perdoa-me uma antiga recordação! Perdoa-me um antigo canto de sobremesa que compus em tempos às filhas do deserto.
Que lá também havia ar puro e límpido de Oriente; foi onde estive mais longe da velha Europa, nebulosa, úmida e melancólica.
Então amava eu as filhas do Oriente e doutros reinos do céu azulado onde se não chocam nuvens nem pensamentos.
Nem imaginais as feiticeiras que lá se encontravam sentadas, quando não dançavam, profundas, mas sem pensamentos, como segredos, como enigmas engalanados, como nozes de sobremesa, coloridas e verdadeiramente singulares, mas sem nuvens: enigmas que se deixam adivinhar. “Em honra dessas donzelas inventei então um salmo de sobremesa”.
Assim falou o viandante que se dizia sombra de Zaratustra; e antes que alguém lho pudesse impedir, pegou na harpa do velho feiticeiro, cruzou as pernas e olhou tranqüilamente à sua roda, aspirando o ar pelo nariz com expressão interrogadora, como quem aprecia ar novo em novos países. Depois principiou a cantar com uma voz que parecia um rugido.

                                                                  O DESERTO CRESCE,
                                                     AI DAQUELE QUE OCULTA DESERTOS!

Solene! Digno princípio! Princípio de solenidade africana! Digno de um leão ou de um bramador moral... mas não de vós, arrebatadoras amigas, a cujos pés me é dado a mim europeu, sentar-me entre palmeiras.
Maravilhoso! Eis-me agora aqui, próximo do deserto, e já outra vez tão longe do deserto, absorto por este pequenino oásis; porque mesmo agora abriu ele a boca bocejando, a mais perfumada de todas as bocas, e eu lhe caí dentro, profundamente, entre vós, arrebatadoras amigas.
Bendita, bendita aquela baleia, que tão bondosa quis ser para o seu hóspede! Compreendeis a minha douta alusão?... Bendito o seu ventre, se foi tão grato vento de oásis como este! Coisa de que duvido, no entanto; porque venho da Europa, que é a mais incrédula de todas as esposas.
Deus a melhore! Amém!
Eis-me aqui, pois, agora, neste pequenino oásis, como uma tâmara, madura, açucarada, de áureo suco, ansiosa por boca redonda de donzela, mas ainda mais por virginais dentes incisivos acerados, frios como o gelo e brancos como neve, que por eles pena o ardente coração de todas as tâmaras.
Semelhante a esses frutos do Meio-dia, aqui estou cercado de alados insetos que dançam e folgam à roda de mim, assim como os desejos e pensamentos mais pequeninos, mais loucos e ainda mais maliciosos; aqui estou, bichinhas donzelas mudas e cheias de pressentimento.
Duda e Zuleika, assediado por vós, — esfingezado, para condensar numa palavra muitas significações (Perdoe-me Deus este pecado lingüístico!...); aqui estou aspirando o melhor dos ares, verdadeiro ar de paraíso, ar diáfano e tênue, raiado de ouro, ar tão bom como jamais caiu outro da lua. Seria casualidade ou presunção, como contam os antigos poetas? Eu, porém, cético, duvido, porque venho da Europa que é a mais incrédula de todas as esposas. Deus a melhore. Amém.
Saboreando este belo ar, com as narinas dilatadas, sem futuro, sem recordação assim estou aqui, arrebatadoras amigas, e vejo a palmeira arquear-se, dobrar-se e vergar-se — o que qualquer faz quando a contempla longo tempo — como uma bailarina que, a meu ver, se susteve já muito, muito, com perigosa insistência, sobre uma perna. Ao que parece, esqueceu a outra. Eu, pelo menos, debalde procurei a gêmea alfaia — quero dizer, a outra perna — nas santas imediações das suas graciosas e arrebatadoras saias, das suas saias enfeitadas, ondulantes como leques. É verdade, belas amigas, perdeu-a... Adeus! Foi-se, foi-se para sempre a outra perna. Ó! Pobre perna!
Aonde parará, abandonada e triste, essa perna solitária? Talvez prostrada por feroz leão monstruoso de ruivas guedelhas? E já roída, horror! horror! Miseravelmente dilacerada!
Ó! Não me choreis, ternos corações! Não me choreis, corações de tâmaras, seios de leite! Sé homem, Zuleika! Valor! Valor! Não chores mais, pálida Duda.
Ó! Ergue-te, dignidade! Sopra, sopra outra vez, fole da verdade! É bramar ainda, bramar moralmente, bramar como leão moral ante as filhas do deserto! Que os alaridos da virtude, arrebatadoras jovens, são, principalmente, a paixão ardente, a fome voraz do europeu. E
vede já em mim o europeu: não posso remediá-lo. Deus me valha! Amém!
O deserto cresce. Ai daquele que oculta desertos!”

                                                                          O DESPERTAR
                                                                                       I
Depois do canto do viandante e da sombra, a caverna encheu-se subitamente de risos e ruídos; e como todos os hóspedes falavam ao mesmo tempo e até o próprio jumento com tal animação não podia estar quieto, Zaratustra experimentou certo enfado e certo prurido zombeteiro contra as suas visitas, embora tal regozijo o satisfizesse por julgá-lo um sinal de cura. Escapou-se pois, para o exterior, para o ar livre, e falou aos seus animais.
“Para onde iria parar agora a tua angústia”? — disse, e já se lhe dissipava o enfado. “Parece terem esquecido na minha moradia os seus gritos de angústia, conquanto, desgraçadamente, não perdessem o costume de gritar”.
E Zaratustra tapou os ouvidos, porque nesse momento os I A do jumento e a algazarra dos homens superiores formavam um estranho concerto.
“Estão alegres — prosseguiu — e, quem sabe”? talvez à custa do seu hóspede; conquanto aprendessem a rir de mim, não foi o meu riso, todavia, que eles aprenderam.
Mas, que importa? São velhos; curam-se à sua maneira, riem a seu modo; os meus ouvidos já suportaram coisas piores.
Este dia foi uma vitória. Já retrocede, já foge o espírito do pesadume, meu antigo inimigo mortal. Como quer acabar bem este dia que tão mal e tão maliciosamente principiou!
E quer acabar. Chega o crepúsculo; atravessa a cavalo no mar, o bom corcel. Como se meneia o bem-aventurado, que torna na sua sela de púrpura.
O céu olha sereno; o mundo dilata-se profundamente; homens singulares, que vos aproximastes de mim, vale a pena viver ao pé de mim!”
Assim falava Zaratustra. E nesse somenos tornaram a sair da caverna os gritos e as risadas dos homens superiores. Então Zaratustra continuou:
“Excitam-se; o meu cevo faz o seu defeito; também deles foge o inimigo, o espírito do pesadume”. Já aprendem a rir de si mesmos: ouvirei bem?
As minhas saborosas e rigorosas máximas surtem efeito; e, na verdade, não os alimentei com legumes que incham, mas com um alimento de guerreiros, com um alimento de conquistadores: despertei novos desejos.
As suas pernas e os seus braços revelam novas esperanças; o coração dilata-se-lhes. Encontram novas palavras; breve o seu espírito respirará desenfado.
Compreendo que este alimento não seja para crianças, nem para mulheres lânguidas. São precisos outros meios para lhes convencer as entranhas: deles não sou médico nem mestre.
Foge o tédio desses homens superiores: eis a minha vitória. Sentem-se seguros no meu reino, perdem a imbecil vergonha, espraiam-se.
Espraiam os corações; para eles tornam os bons momentos: divertem-se e ruminam: tornam-se agradecidos.
Isso é que eu tenho como melhor sinal; tornam-se agradecidos. Não passará muito tempo que não inventem festas e erijam monumentos comemorativos às suas antigas alegrias. São convalescentes!”
Assim falava Zaratustra com íntimo júbilo e olhando para fora. Os animais encostaram-se a ele, honrando-lhe a felicidade e o silêncio.
                                                                                           II
De súbito, porém, sobressaltou-se o ouvido de Zaratustra, porque a caverna, até ali animada pela bulha e o riso, ficou de repente num silêncio sepulcral. Às narinas de Zaratustra chegou um odor agradável de fumo e de incenso, como se tivessem posto pinhas ao lume.
“Que sucedera? Que estarão à fazer?” — perguntou a si mesmo, aproximando-se da entrada para ver os convidados sem ser visto.
Mas, ó! Maravilhas das maravilhas! Que viram então os seus olhos?
“Tornaram-se todos religiosos”! Rezam! Estão doidos! — disse numa admiração sem limites.
E efetivamente, todos aqueles homens superiores — os dois reis, o ex-papa, o sinistro feiticeiro, o mendigo voluntário, o viandante e a sombra, o velho adivinho, o consciencioso e o homem mais feio — estavam prostrado de joelhos, como velhas beatas: estavam de joelhos a adorar o jumento!
E o mais feio dos homens começava a soprar, como se dele quisesse sair qualquer coisa inexprimível; mas, quando afinal se pôs a falar, salmodiava uma piedosa e singular ladainha em louvor do adorado e incensado burro. Eis qual era essa ladainha:
“Amém! E honra e estima e gratidão e louvores e forças sejam com o nosso deus, de eternidade em eternidade”.
E o burro zurrava: I A.
“Ele leva as nossas cargas; é pacifico e nunca diz não. E o ama o seu deus; castiga-o”.
— E o burro zurrava. I A.
“Não fala senão para dizer sim ao mundo que criou: assim canta louvores ao seu mundo”. “A sua astúcia não fala; por isso mesmo rara vez erra”.
E o burro zurrava: I A.
“Ignorado passa pelo mundo”. A cor do seu corpo, como que envolve a sua virtude, é parda. Se tem talento oculta-o; mas todos lhe vêm
as compridas orelhas”.
E o burro zurrava: I A.
“Que recôndita sabedoria é ter orelhas compridas e dizer sempre sim e nunca não”. Não criou ele o mundo à sua imagem? Isto é, o mais burro possível?”
E o burro zurrava: I A.
“Tu segues caminhos direitos e caminhos tortuosos; aquele a que os homens chamam direito ou torto, pouco te importa”. “O teu reino encontra-se além do bem e do mal. A tua inocência é não saber o que se chama inocência”.
E o burro zurrava: I A.
“Vê como tu não repeles ninguém, nem os mendigos, nem os reis”. “Deixas vir a ti as criancinhas, e se os velhacos te querem tentar dizes simplesmente: I A.”
E o burro zurrava: I A.
“Gostas das burras e dos figos frescos, e não és exigente com a comida”. Um caldo te satisfaz as entranhas quando tens fome. “Nisso reside a sabedoria de um deus”.
E o burro zurrava: I A.

                                                                              A FESTA DO BURRO
                                                                                                I
Neste ponto da ladainha, porém, Zaratustra não se pode conter mais. Gritou por sua vez I A, com voz ainda mais roufenha, do que a do jumento, e de um salto postou-se no centro dos seus enlouquecidos hospedes.
“Mas, que estais aí fazendo, filhos dos homens”? — exclamou, erguendo do solo os que rezavam. — Pobres de vós, se outro que não fosse
Zaratustra vos visse!
Todos acreditariam que com a vossa nova fé, vos havíeis tornado piores blasfemos, ou as mais insensatas velhas.
E tu, antigo Papa, como podes estar de acordo contigo mesmo, adorando assim um burro como se fosse um deus?”
“Perdoa, Zaratustra — respondeu o Papa; — mas das coisas de Deus ainda eu entendo mais do que tu”.
Antes adorar a Deus sob esta forma do que o não adorar de forma nenhuma! Reflete nestas palavras, eminente amigo; breve compreenderás que contém sabedoria.
Aquele que diz: “Deus é espírito” foi o que até hoje deu na terra o passo, o salto maior para a incredulidade! Tais palavras não são fáceis de reparar na terra! O meu velho coração salta e rejubila ao ver que ainda há que adorar na terra. Perdoa, Zaratustra, ao velho coração de um Papa religioso!”
“E tu, — disse Zaratustra ao viandante e à sombra — dizes-te e imaginas ser um espirito livre”? E entregas-te a semelhantes idolatrias e momices?
Antes adorar a Deus sob esta forma do que o não.
Na verdade, fazes ainda aqui coisas piores do que as que fazias ao lado das raparigas morenas e maliciosas, novo e malicioso crente”.
Respondeu o viandante e a sombra: “Tens razão; mas que havia eu de fazer? Digas o que disseres, Zaratustra, o Deus antigo revive.
A causa de tudo isto é o mais feio dos homens: foi ele que o ressuscitou. “E se diz que em tempos o matou, a morte entre os deuses é tão só um prejuízo”.
— “E tu maligno velho encantador, que fizeste”? — prosseguiu Zaratustrta. — Quem há de crer em ti nestes tempos de liberdade, quando tu crês em tais burricadas divinas?
Como tu, tão astuto, pudeste cometer semelhante sandice!”
“Tens razão, Zaratustra — respondeu o astuto encantador — foi uma sandice e bem cara me custou”.
“E tu também — disse Zaratustra ao consciencioso, — reflete e põe o dedo no nariz”! Nada vês nisto que te perturbe a consciência? Não será o teu espírito demasiado limpo para tais adorações e para a presunção de semelhantes boatos?
“Há neste espetáculo — responde o consciencioso levando o dedo ao nariz — há neste espetáculo qualquer coisa que faz bem à minha consciência”.
Talvez eu não tenha o direito de crer em Deus; mas o certo é que, sob esta forma, Deus ainda me parece altamente digno de fé.
Deus deve ser eterno, segundo o testemunho dos mais piedosos: quem tanto tempo tem, tempo toma. De forma que com toda a lentidão e estupidez que queira, pode ir verdadeiramente longe.
E quem tenha inteligência demais podia muito bem suspirar pela estupidez e pela loucura. Quando não, pensa em ti mesmo,
Zaratustra!
Tu mesmo, na verdade, te poderias muito bem tornar burro à força de sabedoria.
Um sábio perfeito não gosta de seguir os caminhos mais tortuosos? A aparência o diz, Zaratustra: di-lo a tua aparência!”
“E tu, afinal — disse Zaratustra dirigindo-se ao mais feio dos homens, que caminhava no chão estendendo os braços até ao burro para lhe dar vinho a beber, — fala, inexprimível: que foi que fizeste”?
Dize: que fizeste?
É verdade que o ressuscitaste, como estes dizem? E por que? Não estava morto com razão?
Como te converteste? Fala inexprimível!”
“Ó! Zaratustra — respondeu o mais feio dos homens. — És um brejeiro!
Se ele ainda vive, ou se revive, ou se morreu completamente, qual de nós o sabe melhor?
Sei, porém, de uma coisa, — e contigo a aprendi em tempos, Zaratustra: — aquele que quer matar mais completamente põe-se a rir.
“Não é com a cólera, mas com o riso que se mata”. Assim falavas tu noutro tempo. — Ó! Zaratustra! tu que permaneces oculto destruidor sem cólera, santo perigoso, és um brejeiro!”
                                                                          II
Então Zaratustra, pasmado de tantos sofismas, tornou a correr para a porta da caverna, e dirigindo-se a todos os convidados começou a gritar com voz forte.
“Refinados loucos, truões”! Para que dissimular e ocultar-vos diante de mim!
Como folgava, contudo, de alegria e malícia o vosso coração, porque afinal tornastes a ser como crianças — isto é, religiosos, — porque afinal tornastes a rezar, a juntar as mãos e a dizer “amado Deus!”
Mas agora saí deste quarto de crianças, desta minha caverna onde hoje estão como em sua casa todas as infantilidades.
Refrescai lá fora os vossos ardores infantis e apaziguai o tumulto do vosso coração!
É verdade que se não tornais a ser como crianças, não podereis entrar no tal reino dos céus — e Zaratustra ergueu as mãos para o ar.
— “Nós, porém, não queremos entrar no reino dos céus; tornámo-nos homens: por isso mesmo queremos o reino da terra”.
                                                                         III

E tornando a usar da palavra, Zaratustra disse:
“Ó! meus novos amigos! Homens singulares! homens superiores! como me agradais desde que vos tornastes alegres!
Estais em pleno florescimento, e parece-me que, para flores como vós, são precisas festas novas, uma boa loucura, um culto e uma festa do burro, um velho tresloucado e alegre à maneira de Zaratustra, um turbilhão que com o seu sopro vos varra a alma.
Não esqueçais esta noite e esta festa do burro, homens superiores! Foi o que inventastes na minha mansão e, para mim, isso é um bom sinal; não há como convalescentes para inventarem tais coisas!
E se tornardes a celebrar esta festa do burro, fazei-a por amor de vós e por amor de mim. “E fazei-a em minha lembrança”.
Assim falava Zaratustra.

                                                       O CANTO DE EMBRIAGUEZ
                                                                           I
Entretanto, todos haviam saído um após outro, e se encontravam ao ar livre no seio da noite fresca e silenciosa; e Zaratustra pegou na mão do mais feio dos homens, para lhe mostrar o seu mundo noturno, a grande lua redonda e as cascatas prateadas junto da caverna. Por fim, todos aqueles velhos de coração consolado e valoroso se detiveram, admirando-se intimamente de se sentirem tão bem na terra; a placidez da noite penetrava-lhes nos corações, cada vez mais profundamente. E Zaratustra pensava de novo consigo: “Ó! como me agradam agora estes homens superiores!” — mas não lhes disse, porque lhes respeitava a felicidade e o silêncio.
Então surgiu o mais surpreendente de quanto surpreendente acontecera naquele dia. O mais feio dos homens começou por derradeira vez a resfolegar, e quando conseguiu falar, saiu-lhe dos lábios uma pergunta profunda e clara que agitou o coração de quantos a ouviram.
“Meus amigos, todos que estais aqui presentes — disse o mais feio dos homens — que vos parece”? Graças a este, estou pela primeira vez satisfeito de ter vivido a vida inteira.
E ainda não me basta fazer tal declaração.
Vale a pena viver na terra: um dia, uma festa em companhia de Zaratustra me ensinou a amar a terra.
“Era isto a vida”? — direi à morte.
Pois bem: repita-se!”
Assim falava o mais feio dos homens, perto da meia-noite. E que julgais sucedeu nesse momento? Enquanto os homens superiores ouviam a pergunta, repararam na sua transformação e cura, e em quem lhas proporcionara; por isso se precipitaram para Zaratustra beijando-lhe a mão e testemunhando-lhe a sua gratidão, cada qual a seu modo: de forma que uns riam e outros choravam. O velho encantador dançava de prazer; e se, como crêem certos narradores, estava então cheio de vinho doce, mais cheio estava certamente de vida doce, e despedira-se de toda a melancolia. Há ainda quem conte que o burro também se pusera a dançar; porque não fora debalde que o homem mais feio lhe dera vinho. Fosse isso verdade ou não, pouco importa, e se o burro não bailou nessa noite, sucederam, contudo, coisas maiores e mais singulares do que a de um burro bailar.
Em suma, como diz o provérbio de Zaratustra:
“Que importa!”

                                                                            II
Quando tal se passou com o mais feio dos homens, Zaratustra ficou como tonto: toldava-se-lhe o olhar, a sua língua tartamudeava e os pés vacilavam-lhe. Quem poderia adivinhar os pensamentos que naquele instante atravessaram a alma de Zaratustra? Era visível, porém, que o seu espírito vagueava para trás e para diante, e passava muito alto, como “sobre elevada cordilheira (conforme está escrito) que, interposta entre dois mares, caminha entre o passado e o futuro como pesada nuvem”.
Nisto, enquanto os homens superiores o amparavam nos braços, tornou a si pouco a pouco, afastando com o gesto os seus assustados veneradores: mas não falava. Súbito voltou a cabeça, porque lhe parecia ouvir qualquer coisa: então pôs o dedo na boca e disse: “Vinde!”
E imediatamente tudo ficou tranqüilo e em silêncio em torno dele; mas das profundidades subia lentamente o som de um sino.
Zaratustra aplicou o ouvido, assim como os homens superiores; depois tornou a pôr o dedo na boca, e disse outra vez: “Vinde! Vinde! Aproxima-se a meia-noite!” E a voz transformara-se-lhe; mas ele continuava imóvel no mesmo sítio. Então reinou um silêncio ainda maior
e uma quietação ainda mais profunda e toda a gente escutava, até o burro e os animais de Zaratustra, a águia e a serpente, e também a caverna e a fria lua e a própria noite.
Mas Zaratustra ergueu-se pela terceira vez, levou a mão aos lábios e disse:
Vinde! Vinde! Vamos! É a hora: caminhemos para a noite!”
                                            
                                                                          III
“Homens superiores, aproxima-se a meia-noite: quero-vos dizer uma coisa ao ouvido, como mo disse ao ouvido aquele velho sino: com o mesmo segredo, espanto e cordialidade com que me falou esse sino da meia-noite, que tem vivido mais do que um só homem que já cantou as palpitações dolorosas dos corações de vossos pais.
Como suspira! Como ri em sonhos a venerável e profunda, profundíssima meia-noite.
Silêncio! Silêncio! Ouvem-se muitas coisas que se não atrevem a erguer a voz durante o dia: mas agora que o ar é puro e se calou também o ruído dos nossos corações, agora as coisas falam e ouvem-se, agora introduzem-se nas almas noturnas e despertas. Como suspira! Como ri em sonhos!
Não ouves como te fala a ti secretamente, com espanto e cordialidade, a venerável e profunda, profundíssima meia-noite?
Ó! Homem! Excita o cérebro!
                                                                          IV
Ai de mim! Que foi do tempo? Não caiu em profundos poços? O mundo dorme.
O cão uiva; brilha a lua. Antes morrer do que dizer-vos o que pensa agora o meu coração de meia-noite!
Estou morto. Tudo findou, Aranha: por que teces a tua teia, à minha roda? Queres sangue! Cai o orvalho, chega a hora em que gelo, a hora que pergunta e torna a perguntar incessante: “Quem tem valor para tanto? Quem há de ser o dono da terra? Quem quer dizer: tendes de correr assim, rios grandes e pequenos?”
Aproxima-se a hora! Excita o cérebro, homem superior! Este discurso é para ouvidos finos, para os teus ouvidos. Que diz a profunda meia-noite?
                                                                           V
Vejo-me arrebatado; a minha alma, salta. Cotidiana tarefa! Cotidiana tarefa! Quem deve ser o dono do mundo?
A lua é fresca; o vento emudece. Ai! Ai! Já voastes a bastante altura? Dançaste? Mas, uma perna não é uma asa.
Bons dançarinos, agora passou a alegria toda: o vinho converteu-se em fezes; as sepulturas balbuciam.
Não voastes a bastante altura; agora as sepulturas balbuciam: “Mas salvai os mortos! Porque é noite há tanto tempo? Não vos embriaga a lua?”
Salvai as sepulturas, homens superiores! Despertai os cadáveres! Ai! Porque é que o verme ainda rói? Aproxima-se a hora, aproxima-se; soa o sino; ainda o coração anela; o verme, o verme do coração ainda rói.
O mundo é profundo!
                                                                         VI
Maviosa lira! Maviosa lira! Adoro o teu som, o teu encantador som de sapo!
Há que tempos e que de longe — dos tanques do amor — chega a mim esse som!
Velho sino! Maviosa lira! Todas as dores te têm desfibrado o coração: a dor de pai, a dor dos antepassados, a dor dos primeiros pais; o teu discurso alcança já a maturação como o dourado outono e a tarde, como o meu coração de solitário, agra fala: o próprio mundo
amadureceu; a uva enegrece; agora quer morrer, morrer de felicidade. Não o conjeturais, homens superiores?
Secretamente sobe um perfume e um odor de eternidade, um aroma — como de dourado vinho delicioso — de rara ventura;
Ventura inebriante de morrer, ventura de meia-noite, que canta:
O fundo é profundo e mais profundo do que o dia.
                                                                          VII
Deixa-me! Deixa-me. Sou puro demais para ti. Não me toques! Não se acaba de consumar o meu mundo?
A minha pele é demasiado pura para as tuas mãos? Deixa-me, triste e sombrio dia! Não é mais clara a meia-noite?
Donos da terra devem ser os mais fortes, as almas da meia-noite, que são mais claras e profundas que todos os dias.
Ó! dia! Andas às cegas atrás de mim? Exploras a minha felicidade? Serei para ti, rico, solitário, um tesouro oculto, uma arca de ouro?
Ó! Mundo! Serei o que queres? Serei espiritual para ti? Serei divino para ti? Dia e mundo são demasiado tristes, tendes mãos mais aptas, colhei uma felicidade mais profunda, um infortúnio mais profundo; colhei um deus qualquer; não me prendais a mim. A minha desdita e a minha dita são profundas, dia singular; mas não sou um deus, nem o inferno de um deus: Profunda é a sua dor.
                                                                        VIII
A dor de Deus é mais profunda, mundo singular! Procura a dor de Deus; não me procures a mim! Quem sou eu? Maviosa lira cheia de embriagues; uma lira de meia-noite, um sino plangente que deve falar diante dos surdos, homens superiores. Que vós outros não me compreendeis!
Isto é fato! Isto é fato! Ó! Mocidade! Ó! Meio-dia! Ó! Tarde! Chegou agora o crepúsculo e a noite e a meia-noite; uiva o cão, o vento — não será também o vento um cão? — geme, ladra, uiva. Como suspira com se ri e geme a meia-noite!
Como agora fala sobriamente esta ébria poetisa! Passar-lhe-ia a embriagues? Tresnoitaria? Rumina?
A velha e profunda meia-noite rumina em sonhos a sua dor e ainda mais a sua alegria: pois se a dor é profunda, a alegria é mais profunda do que o sofrimento.
                                                                       IX
Por que me elogias, vinha? Eu, todavia, podei-te. Sou cruel; sangras: que quer o teu louvor da minha sombria crueldade?
“Tudo quanto está sazonado quer morrer!” Assim falas tu. Bendita seja a poda do vindimador! Tudo que não está maduro quer, porém, viver! ó! Desventura!
A dor diz: “Passa! Vai-te, dor!” Mas tudo que sofre quer viver para amadurecer, regozijar-se e anelar, anelar o mais longínquo, o mais alto, o mais luminoso. “Quero herdeiros (assim fala todo aquele que sofre) quero filhos: não me quero a mim”.
A alegria, contudo, não quer herdeiros nem filhos; alegria quer-se a si mesma, quer a eternidade, quer o regresso, quer tudo igual a si eternamente.
A dor diz: “Desfibra-se, sangra, coração! Caminhai, pernas! Asas, voai! Então, vamos, meu velho coração! A dor diz: Passa!
                                                                         X
Que vos parece, homens superiores? Serei um adivinho? Um sonhador? Um bêbedo? Um intérprete de sonhos? Um sino da meia-noite?
Uma gota de orvalho? Um vapor e um perfume da eternidade? Não ouvis? Não percebeis? O meu mundo acaba de se consumar; a meia-noite é também meio-dia, a dor é também uma alegria, a maldição é também uma bênção, a noite é também sol; afastai-vos ou ficareis sabendo: um sábio é também um louco.
Dissestes alguma vez “sim” a uma alegria? Ó! meu amigos! Então dissestes também “sim” a todas as dores! Todas as coisas estão encadeadas, forçadas; se algum dia quisestes que uma vez se repetisse, se algum dia dissestes: “Agradas-me, felicidade!” Então quisestes que tudo tornasse.
Tudo de novo, tudo eternamente, tudo encadeado, forçado: assim amastes o mundo; vós outros, os eternos, amai-lo eternamente e sempre, e dizeis também à dor: “Passa, mas torna”! Porque toda a alegria quer eternidade!
                                                                       XI
Toda a alegria quer a eternidade de todas as coisas, quer mal, quer fezes, quer inebriante meia-noite e quer sepulturas, quer o consolo das lágrimas, das sepulturas, quer o dourado crepúsculo...
Que não há de querer a alegria! É mais sedenta, mais cordial, mais terrível, mais secreta que toda a dor: quer-se a si mesma, morde-se a si mesma, agita-se nela a vontade da anilha; quer amor, quer ódio, nada na abundância, dá, arroja para longe de si, suplica que a aceitem, agradece a quem a recebe, quereria ser odiada; é tão rica que tem sede de dor, de inferno, de ódio, de vergonha, do mundo, porque este mundo, ah, já o conheceis.
Homens superiores, por vós suspira a alegria, a desenfreada, a bem-aventurada; suspira pela vossa malograda dor. Toda a alegria eterna suspira pelas coisas malogradas.
Pois toda a alegria se estima a si mesma; por isso quer também o sofrimento! Ó! Felicidade! Ó! Dor! Desfibra-te coração! Aprendei-o, homens superiores: a alegria quer a eternidade!
A alegria quer a eternidade de todas as coisas.
Quer profunda eternidade.
                                         
                                                                        XII
Aprendeste agora o meu canto? Adivinhastes o que quer dizer? Eia, pois, homens superiores! entoai o meu canto! Entoai agora vós o canto cujo título é “Outra vez” e cujo sentido é “por toda a eternidade”. Entoai, homens superiores, entoai o canto de Zaratustra!
Homem, excita o cérebro!
Que diz a profunda meia-noite?
Tenho dormido, tenho dormido”!
De um profundo sono despertei:
O mundo é profundo, mais profundo do que o dia pensava.
Profunda é a sua dor e a alegria mais profunda que o sofrimento!
A dor diz: Passa!
Mas toda a alegria quer eternidade, quer profunda eternidade!”
                                   
                                      




                                                                         O SINAL

Na manhã seguinte, Zaratustra saltou da sua jazida, apertou os rins e saiu da caverna, ardente e vigoroso, como o sol matutino que sai dos sombrios montes.
“Grande astro — disse como noutra ocasião — olho profundo de felicidade, que seria desta se te faltassem aqueles a quem iluminas”?
E se eles permanecessem em seus aposentos quando tu já estás desperto e vens dar e repartir, como se te feriria o pudor!
Pois bem! Estes homens superiores dormem enquanto eu estou acordado. Não são meus verdadeiros companheiros! Não é a eles que espero aqui nas minhas montanhas.
Quero principiar o meu labor, o meu dia, mas eles não compreendem quais são os sinais da minha alvorada; os meus passos não são para eles uma voz despertadora.
Dormem ainda na minha caverna, ainda o seu sono saboreia os meus cantos de embriaguez. “Aos seus membros falta ouvido que me escute, ouvido obediente”.
Disse Zaratustra isto ao seu coração quando o sol nascia. Depois dirigiu para as alturas um olhar interrogador porque ouvia por cima de si o chamado penetrante da sua águia. “Bem”! gritou para cima. — Assim me agrada e convém. Os meus animais estão acordados, porque eu estou acordado.
A minha águia acordou e saúda o sol como eu. Com as suas garras apanha a nova luz. Vós sois os meus verdadeiros animais; tendes a minha afeição.
Faltam-me, porém, os meus verdadeiros homens!”
Assim falava Zaratustra, quando de repente se sentiu rodeado por uma infinidade de aves que revoavam em torno dele: o ruído de tantas asas e o tropel que lhe rodeava a cabeça eram tais que cerrou os olhos. E na verdade sentiu cair sobre ele qualquer coisa assim como uma nuvem de setas disparadas sobre um novo inimigo! Mas não! Era uma nuvem de amor sobre um amigo novo.
“Que sucederá”? perguntou a si mesmo assombrado Zaratustra, e deixou-se cair vagarosamente na pedra grande que havia à entrada da sua caverna. Agitando, porém, as mãos em torno de si e por cima e por baixo de si, para se subtrair às carícias das aves, sucedeu-lhe uma coisa ainda mais singular, e foi que, sem dar por isso, pôs a mão sobre quentes e fartas guedelhas, e ao mesmo tempo se ouviu um rugido, um meigo e prolongado rugido de leão.
Chega o sinal” disse Zaratustra, e o coração transmudou-se-lhe. E viu diante de si, estendido a seus pés, um corpulento animal ruivo, que encostava a cabeça aos seus joelhos e se não queria afastar dele como um cão afetuoso que torna a encontrar o antigo dono. Mas as pombas não eram menos carinhosas que o leão, e de cada vez que alguma lhe passava pelo focinho, o leão sacudia a cabeça e punha-se a rir.
Vendo tudo isto, Zaratustra só disse uma coisa: “Estão perto os meus filhos”. E depois emudeceu completamente; mas sentia o coração aliviado, e dos seus olhos corriam lágrimas que lhe banhavam as mãos. E ali permanecia imóvel, sem se preocupar com coisa alguma, sem sequer se defender dos animais. Entretanto, as pombas voavam de um lado para outro, pousavam-lhe nos ombros, acariciavam-lhe os brancos cabelos, e eram infatigáveis na sua ternura. E o leão lambia incessantemente as lágrimas que corriam pelas mãos de Zaratustra, rugindo e rosnando timidamente. Eis o que fizeram estes animais.
Tudo isto poderia durar muito ou pouco tempo: porque, falando propriamente, na terra não há tempo para coisas tais.
Entrementes tinham os homens superiores acordado na caverna, e dispunham-se a ir em procissão ao encontro de Zaratustra, para o saudar, porque já haviam reparado na sua ausência. Quando chegaram, porém, à porta da caverna, o leão, ao ouvir-lhes os passos, afastou-se rapidamente de Zaratustra e precipitou-se para a caverna rugindo furiosamente. Ouvindo-o rugir, os homens superiores começaram a gritar como uma só boca e, retrocedendo, desapareceram num abrir e fechar de olhos.
Por seu lado, Zaratustra, aturdido e distraído, ergueu-se do seu assento, olhou em roda, assombrado, interrogou-se, refletiu e permaneceu sozinho — “Mas, que foi que ouvi? — disse, afinal, lentamente. — Que acaba de me suceder?”
E, recuperada a memória, compreendeu o que sucedera entre a véspera e o dia em que se encontrava. “Aqui está a pedra onde ontem pela manhã me sentei — disse cofiando a barba — aqui se abeirou de mim o adivinho, e ouvi pela primeira vez o grito que acabo de ouvir, o grande grito de angústia.
Homens superiores, a vossa angústia foi o que ontem pela manhã me predisse o velho adivinho; quis atrair-me à vossa angústia para me tentar — “Ó! Zaratustra, disse-me ele, — venho aqui induzir-te ao último pecado.” “Ao meu último pecado”? — exclamou Zaratustra rindo-se das suas próprias palavras. — Que será que ainda me está reservado como último pecado?”
E outra vez se concentrou em si mesmo, tornando a sentar-se na pedra para refletir.
De repente ergueu-se:
Compaixão”! A compaixão pelo homem superior! — exclamou, e o semblante tornou-se-lhe de mármore.
Ora! Já lá vai esse tempo! Que importam a minha paixão e a minha compaixão? Acaso aspiro à felicidade? Eu aspiro à minha obra!
Chegou o leão, os meus filhos não tardam; Zaratustra está sazonado; chegou a minha hora.
Esta é a minha alvorada; começa o meu dia: sobe, pois, sobe, Grande Meio-dia!”

Assim falava Zaratustra, e afastou-se da caverna, ardente e vigoroso, como o sol matinal que surge dos sombrios montes.



                                                                                                                                                                 ---Friedrich Nietzsche---