DAS MOSCAS DA PRAÇA
PÚBLICA
“Foge, meu amigo,
para a tua soledade”! Vejo-te aturdido pelo ruído dos grandes homens e crivado
pelos ferrões dos pequenos.
Dignamente sabem
calar-se contigo os bosques e os penedos. Assemelha-te de novo à tua árvore
querida, a árvore de forte ramagem que escuta silenciosa, pendida para o mar.
Onde cessa a
soledade principia a praça pública, onde principia a praça pública começa
também o ruído dos grandes cômicos e o zumbido das moscas venenosas.
No mundo as
melhores coisas nada valem sem alguém que as represente; o povo chama a esses
representantes grandes homens.
O mundo compreende
mal o que é grande, quer dizer, o que cria; mas tem um sentido para todos os
representantes e cômicos das grandes coisas.
O mundo gira em
torno dos inventores de valores novos; gira invisivelmente; mas em torno do
mundo giram o povo e a glória: assim “anda o mundo”.
O cômico tem
espírito, mas pouca consciência do espírito. Crê sempre naquilo pelo qual faz
crer mais energicamente — crer em si mesmo.
Amanhã tem uma fé
nova, e depois de amanhã outra mais nova. Possui sentidos rápidos como o povo,
e temperaturas variáveis.
Derribar: chama a
isto demonstrar. Enlouquecer: chama a isto convencer. E o sangue é para ele o
melhor de todos os argumentos.
Chama mentira e
nada a uma verdade que só penetra em ouvidos apurados. Verdadeiramente só crê
em deuses que façam muito ruído no mundo.
A praça pública
está cheia de truões ensurdecedores, e o povo vangloria-se dos seus grandes
homens. São para eles os senhores do momento.
O momento oprime-o
e eles oprimem-te a ti, exigem-te um sim ou um não. Desgraçado! Queres
colocar-te entre um pró e um contra?
Não invejes esses
espíritos opressores e absolutos ó! amante da verdade! Nunca a verdade pendeu
do braço de um espírito absoluto.
Torna ao teu asilo,
longe dessa gente tumultuosa; só na praça pública assediam uma pessoa com o
“sim ou não?”.
As fontes profundas
têm que esperar muito para saber o que caiu na sua profundidade.
Tudo quanto é
grande passa longe da praça pública e da glória. Longe da praça pública e da
glória viveram sempre os inventores de valores novos.
Foge, meu amigo,
para a soledade; vejo-te aqui aguilhoado por moscas venenosas.
Foge para onde
sopre um vento rijo.
Foge para a tua
soledade. Viverás próximo demais dos pequenos mesquinhos. Foge da sua vingança
invisível! Para ti não mais que vingança.
Não levantes mais o
braço contra eles!
São inumeráveis, e
o teu destino não é ser enxota-moscas!
São inumeráveis
esses pequeninos e mesquinhos; e altivos edifícios se têm visto destruídos por
gotas de chuva e ervas ruins.
Não és uma pedra,
mas já te fenderam infinitas gotas. Infinitas gotas continuarão a fender-te e a
quebrar-te.
Vejo-te cansado das
moscas venenosas, vejo-te arranhado e ensangüentado, e o teu orgulho nem uma só
vez se quer encolerizar.
Elas desejariam o
teu sangue com a maior inocência; as suas almas anêmicas reclamam sangue e
picam com a maior inocência.
Mas tu, que és profundo,
sentias profundamente até as pequenas feridas, e antes da cura já passeava
outra vez pela tua mão o mesmo inseto venenoso.
Pareces-me altivo
demais para matar esse glutões; mas repara, não venha a ser destino teu
suportar toda a sua venenosa injustiça!
Também zumbem à tua
roda com os seus louvores. Importunidades: eis os seus louvores. Querem estar
perto da tua pele e do teu sangue.
Adulam-te como um
deus ou um diabo! Choramingam diante de ti como de um deus ou de um diabo. Que
importa?
São aduladores e
choramingas, nada mais.
Também sucede
fazerem-se amáveis contigo; mas foi sempre essa a astúcia dos covardes. É
verdade; os covardes são astutos!
Pensam muito em ti
com a alma mesquinha. Suspeitam sempre de ti. Tudo o que dá muito que pensar se
torna suspeito.
Castigam-te pelas
tuas virtudes todas.
Só te perdoam
verdadeiramente os teus erros.
Como és benévolo e
justo, dizes: “Não têm culpa da pequenez da sua existência”. Mas a sua alma
acanhada pensa: “Toda a grande existência é culpada”.
Mesmo que sejas
benévolo com eles, ainda se consideram desprezados por ti e pagam o teu
benefício com ações dissimuladas.
O teu mudo orgulho
contraria-os sempre, e alvorotam quando acertas em ser bastante modesto para
ser vaidoso.
O que reconhecemos
num homem infamamos-lhe também nele. Livra-te, portanto, dos pequenos.
Na tua presença
sentem-se pequenos, e sua baixeza arde em invisível vingança contra ti.
Não notaste como
costumávamos emudecer quando te aproximava deles, e como as forças os
abandonavam tal como a fumaça que se extingue?
Sim, meu amigo; és
a consciência roedora dos teus próximos, porque não são dignos de ti. Por isso
te odeiam e quereriam sugar-te o sangue.
Os teus próximos
hão de ser sempre moscas venenosas. E o que é grande em ti deve precisamente
torná-los mais venenosos e mais semelhantes às moscas.
Foge, meu amigo,
para a tua soledade, para além onde sopre vento rijo e forte. “Não é destino
teu ser enxota-moscas”.
Assim falava
Zaratustra.
DA
CASTIDADE
“Amo o bosque”. É
difícil viver nas cidades; nelas abundam fogosos demais.
Não vale mais cair
nas mãos de um assassino do que nos sonhos de uma mulher ardente?
Se não, olhai para
esses homens; os seus olhos o dizem; nada melhor conhecem na terra do que deitar-se
com uma mulher.
Têm lodo no fundo
da alma; e coitados deles se o seu lodo possui inteligência!
Se ao menos fosseis
animais completos!
Mas para ser animal
é preciso inocência.
Será isto
aconselhar-vos a que mateis os vossos sentidos? Aconselho-vos a inocência dos
sentidos.
Será isto
aconselhar-vos a castidade? Em alguns a castidade é uma virtude; mas em muitos
é quase um vício.
Estes serão
continentes; mas a vil sensualidade babuja zelosa tudo o que fazem.
Até às alturas da
sua virtude e até ao seu espírito os segue esse animal com a sua discórdia.
E com gentileza a
vil sensualidade sabe mendigar um pedaço de espírito quando se lhe nega um
pedaço de carne.
A vós outros
agradam as tragédias e tudo o que lacera o coração? Pois eu olho desconfiado a
vossa sensualidade.
Tendes olhos
demasiado cruéis, e olhais, cheios de desejos, para os que sofrem.
Não será
simplesmente porque a vossa sensualidade se disfarçou e tomou o nome de
compaixão?
Também vos
apresento esta parábola:
Não poucos, que
queriam expulsar os demônios, se meteram com os porcos.
Se a castidade pesa
a algum, é preciso afastá-lo dela, para que a castidade não chegue a ser o
caminho do inferno, isto é, da lama e da fogueira da alma.
Falei de coisas
imundas? Para mim não é isso o pior.
Não quando a
verdade é imunda, mas quando é superficial, é que o investigador mergulha de má
vontade nas suas águas.
Verdadeiramente há
os castos por essência; são de coração mais meigo, agrada-lhes mais rir, e riem
mais que vós outros.
Riem-se também da
castidade e perguntam: “Que é a castidade”?
Não é uma loucura?
Mas essa loucura não veio ter conosco, não fomos nós que a buscámos.
Oferecemos a esse
hóspede pousada e simpatia: agora habita em nós. Demore-se quanto queira!”
Assim falava
Zaratustra.
DO AMIGO
“Um só me assedia
sempre excessivamente (assim pensa o solitário). Um sempre acaba por fazer
dois!”
“Eu e Mim estão
sempre em conversações incessantes”. Como se poderia suportar isto se não
houvesse um amigo?
Para o solitário o
amigo é sempre o terceiro; o terceiro é a válvula que impede a conservação dos
outros dois de se abismarem nas profundidades.
Ai! Existem
demasiadas profundidades para todos os solitários. Por isso aspiram a um amigo
e à sua altura.
A nossa fé nos
outros revela aquilo que desejaríamos crer em nós mesmos. O nosso desejo de um
amigo é o nosso delator.
E freqüentemente,
como a amizade, apenas se quer saltar por cima da inveja. E freqüentemente
atacamos e criamos inimigos para ocultar que nós mesmos somos atacáveis.
“Sê ao menos meu
inimigo!” — Assim, fala o verdadeiro respeito, o que se não atreve a solicitar
a amizade.
Se se quiser ter um
amigo, é preciso também guerrear por ele; e para guerrear é mister poder ser
inimigo.
É preciso honrar no
amigo o inimigo. Podes aproximar-te do teu amigo sem passar para o seu bando?
No amigo deve
ver-se o melhor inimigo. Deves ser a glória do teu amigo, entregares-te a ele
tal qual és? Pois é por isso que te manda para o demônio!
O que se não
recata, escandaliza. “Deveis temer a mudez! Sim; se fosseis deuses, então
poderíeis envergonhar-vos dos vossos vestidos”.
Nunca te adornarás
demais para o teu amigo, porque deves ser para ele uma seta e também um anelo
para o Super-homem.
Já viste dormir o
teu amigo para saberes como és? Qual é, então, a cara do teu amigo? É a tua
própria cara num espelho tosco e imperfeito.
Já viste dormir o
teu amigo? Não te assombrou o seu aspecto? Ó! Meu amigo; o homem deve ser
superado!
O amigo deve ser
mestre na adivinhação e no silêncio: não deves querer ver tudo. O teu sono deve
revelar-te o que faz o teu amigo durante a vigília.
Seja a tua
compaixão uma adivinhação: é mister que, primeiro que tudo, saibas se o teu
amigo quer compaixão.
Talvez em ti lhe
agradem os olhos altivos e a contemplação da eternidade.
Oculte-se a
compaixão com o amigo sob uma rude certeza.
Serás tu para o teu
amigo ar puro e soledade, pão e medicina? Há quem não possa desatar as suas
próprias cadeias, e todavia seja
salvador do amigo.
És escravo? Então
não podes ser amigo.
És tirano? Então
não podes ter amigos.
Há demasiado tempo
que se ocultavam na mulher um escravo e um tirano. Por isso a mulher ainda não
é capaz de amizade; apenas conhece o amor.
No amor da mulher
há injustiça e cegueira para tudo quanto não ama. E mesmo o amor, reflexo da
mulher, oculta sempre, a par da luz, a surpresa, o raio da noite.
A mulher ainda não
é capaz de amizade: as mulheres continuam sendo gatas e pássaros. Ou, melhor,
vacas.
A mulher ainda não
é capaz de amizade. Mas dizei-me vós homens: qual de vós outros é, porventura,
capaz de amizade?
Ai, homens! que
pobreza e avareza a da vossa alma! Quando vós outros dais a vossos amigos eu
quero dar também aos meus inimigos sem me tornar mais pobre por isso.
Haja camaradagem.
Haja amizade.”
Assim falava
Zaratustra.
OS MIL OBJETOS E O ÚNICO
OBJETO
“Muitos países e
muitos povos viu Zaratustra; assim descobriu o bem e o mal de muitos povos”.
Zaratustra não encontrou maior poder na terra do que o bem e o mal.
Nenhum poderia
viver sem avaliar; mas, para se conservar não deve avaliar como o seu vizinho.
Muitas coisas que
um povo chama boas eram para outros vergonhosas e desprezíveis; foi o que vi.
Muitas coisas, aqui qualificadas de más, além as enfeitavam com o manto de
púrpura das honrarias.
Nunca um vizinho
compreendeu o outro; sempre a sua alma se assombrou da loucura e da maldade do
vizinho.
Sobre cada povo
está suspensa uma tábua de bens. E vede: é a tábua dos triunfos dos seus
esforços; é a voz da sua vontade de poder.
É honroso o que lhe
parece difícil; o que é indispensável e difícil chama-se bem, e o que livra de
maiores misérias, o mais raro e difícil, santifica-se.
O que lhe permite
reinar, vencer e brilhar com temor e inveja do seu vizinho, é para ele o mais
elevado, o principal, a medida e o sentido de todas as coisas.
Verdadeiramente, se
tu conheces a necessidade, o país, o céu e o vizinho de um povo, adivinhas
também a lei dos seus triunfos e por que razão sobe às suas esperanças por
esses graus.
“Deves ser sempre o
primeiro a avantajar-se aos outros; a tua alma zelosa não deve amar ninguém
senão o amigo”. — Isto fez tremer a alma de um grego, e levou-o a seguir o
caminho da grandeza.
“Dizer a verdade e
saber manejar bem o arco e as flechas”. — Isto parecia caro ao mesmo tempo que
difícil ao povo donde vem o meu nome, o nome que é para mim caro ao mesmo tempo
que difícil.
“Honrar pai e mãe,
e ter para eles submissão”. Essa tábua das vitórias sobre si elegeu outro povo,
e com ela foi eterno e poderoso.
“Render culto à
fidelidade, e pela fidelidade dar sangue e honra ainda tratando-se de coisas
más e perigosas”. Por esse ensinamento venceu-se a si mesmo outro povo, e a
vencer-se assim chegou a encher-se de grandes esperanças.
A verdade é que os
homens se deram todo o seu bem e todo o seu mal. A verdade é que o não tomaram,
que o não encontraram, que lhes não caiu com uma voz do céu.
O homem é que pôs
valores nas coisas a fim de se conservar; foi ele que deu um sentido às coisas,
um sentido humano. Por isso se chama “homem” isto é, o que aprecia.
Avaliar é criar.
Ouvi, criadores! Avaliar é o tesouro e a joia de todas as coisas avaliadas.
Pela avaliação se
dá o valor; sem a avaliação, a noz da existência seria oca. Ouvi-o, criadores!
A mudança dos
valores é mudança de quem cria.
Sempre o que há de
criar destrói.
Os criadores, num
princípio foram povos, e só mais tarde indivíduos. Na verdade, os indivíduos é
a mais recente das criações.
Povos suspenderam
noutro tempo sobre si uma tábua do bem. O amor, que quer dominar, e o amor que
quer obedecer, criaram juntos essas tábuas.
O prazer do rebanho
é mais antigo que o prazer do Eu. E enquanto a boa consciência se chama
rebanho, só a má diz: Eu.
Na verdade, o Eu
astuto, o Eu egoísta, que procura o seu bem no bem de muitos, este não é a
origem do rebanho, mas a sua destruição.
Sempre foram
ardentes os que criaram o bem e o mal. O fogo do amor e o fogo da cólera ardem
sob o nome de todas as virtudes.
Muitos países e
muitos povos viu Zaratustra. Não encontrou poder maior na terra que a obra dos
ardentes; “bem e mal” é o seu nome.
Na verdade, o poder
desses elogios e destas censuras é semelhante a um monstro. Dizei-me, meus
irmãos: Quem o derrubará? Dizei: quem lançará uma cadeia sobre as mil cervizes
dessa besta?
Até ao presente tem
havido mil objetos, porque tem havido mil povos. Só falta a cadeia das mil
cervizes: falta o único objeto. A humanidade não tem objeto.
Mas dizei-me,
irmãos: se falta objeto à humanidade, não é porque ela mesma ainda não existe?”
Assim falava
Zaratustra.
DO AMOR AO
PRÓXIMO
“Vós outros andais
muito solícitos em redor do próximo, e manifestai-o com belas palavras”. Mas eu
vos digo: o vosso amor ao próximo é vosso meu amor a vós mesmos.
Fugis de vós em busca
do próximo, e quereis converter isso numa virtude; mas eu compreendo o vosso
“desinteresse”.
O Tu é mais velho
do que Eu; o Tu acha-se santificado, mas o Eu ainda não. Por isso o homem anda
diligente atrás do próximo.
Acaso vos aconselho
o amor ao próximo? Antes vos aconselho a fuga do “próximo” e o amor ao remoto!
Mais elevado que o
amor ao próximo é o amor ao longínquo, ao que está por vir, mais alto ainda que
o amor ao homem coloco o amor às coisas e aos fantasmas.
Esse fantasma que
corre diante de vós, meus irmãos, é mais belo que vós. Por que lhe não dais a
vossa carne e os vossos ossos? Mas tende-lhes medo e fugis à procura do vosso
próximo.
Não vos suportais a
vós mesmos e não vos quereis bastante; desejaríeis seduzir o próximo por vosso
amor e dourar-vos com a sua ilusão.
Quisera que todos
esses próximos e seus vizinhos se vos tornassem insuportáveis; assim teríeis
que criar para vós mesmos o vosso amigo e o seu coração fervoroso.
Chamais uma
testemunha quando quereis falar bem de vós, e logo que a haveis induzido a
pensar bem da vossa pessoa, vós mesmos pensais bem da vossa pessoa.
Não só mente o que
fala contra a sua consciência, mas sobretudo o que fala com a sua
inconsciência. E assim falais de vós no trato social, enganando o vizinho.
Fala o louco: “O
trato com os homens exaspera o caráter, principalmente quando o não temos”.
Um vai após o
próximo, porque se procura; o outro porque se quisera esquecer.
A vossa malquerença
com respeito a vós mesmos converte a vossa soledade num cativeiro.
Os mais afastados
são os que pagam o nosso amor ao próximo, e quando vós juntais cinco, deve
morrer um sexto.
Também me não
agradam as vossas festas; encontrei nelas demasiados cômicos e os mesmos
espectadores se conduzem frequentemente como cômicos.
Não falo do
próximo; falo só do amigo. Seja o amigo para vós a festa da terra e um
presentimento do Super-homem.
Falo-vos do amigo e
do seu coração exuberante. Mas é preciso saber ser uma esponja quando se quer
ser amado por corações exuberantes.
Falo-vos do amigo que
leva em si um mundo disponível, um envólucro do bem — do amigo criador que tem
sempre um mundo disponível para dar.
E como se
desenvolveu o mundo para ele, assim se envolve de novo: tal é o advento do bem
pelo mal, do desígnio pelo acaso.
Sejam o porvir e o
mais remoto a causa do vosso hoje; no vosso amigo deveis amar o Super-homem,
como razão de ser.
“Meus irmãos, eu
não vos aconselho o amor ao próximo; aconselho-vos o amor ao mais afastado”.
Assim falava
Zaratustra.
DO CAMINHO DO
CRIADOR
“Queres, meu irmão,
insular-te”? Queres procurar o caminho que te guia a ti mesmo? Espera ainda um
momento e ouve-me.
“O que procura
facilmente se perde a si mesmo”.
“Todo o insulamento
é um erro”. Assim fala o rebanho. E tu pertenceste ao rebanho durante muito
tempo.
Em ti também ainda
há de ressoar a voz do rebanho. E tu pertenceste ao rebanho durante muito
tempo.
Em ti também ainda
há de ressoar a voz do rebanho. E quando disseres: “Já não tenho uma consciência
comum convosco”, isso será uma queixa e uma dor.
Olha: essa mesma
dor é filha da consciência comum e a última centelha dessa consciência ainda
brilha na tua aflição.
Queres, porém,
seguir o caminho da tua aflição, que é o caminho para ti mesmo? Demonstra-me o
teu direito e a tua força para isso!
Acaso és uma força
nova e um novo direito?
Um primeiro
movimento? Uma roda que gira sobre si mesma? Podes obrigar as estrelas a
girarem em torno de ti?
Ai! Existe tanta
ansiedade pelas alturas!
Há tantas convulsões
de ambição! Demonstra-me que não pertences ao número dos cobiçosos nem dos
ambiciosos!
Ai! Existem tantos
pensamentos grandes que apenas fazem o mesmo que um fole. Incham e esvaziam.
Chamas-te livre?
Quero que me digas o teu pensamento fundamental, e não que te livraste de um
jugo.
Serás tu alguém que
tenha o direito de se livrar de um jugo? Há quem perca o seu último
valor ao libertar-se da sua sujeição.
Livre de quê?
Que importa isso a Zaratustra? O teu olhar, porém, deve anunciar-se claramente:
livre, para quê?
Podes proporcionar
a ti mesmo teu bem e o teu mal, e suspender a tua vontade por cima de ti como
uma lei? Podes ser o teu próprio juiz e vingador da tua lei?
Terrível é estar a
sós com o juiz e o vingador da própria lei, como estrela lançada ao espaço
vazio no meio do sopro gelado da soledade.
Ainda hoje te
atormenta a multidão; ainda conservas o teu valor e as tuas esperanças todas.
Um dia, contudo, te
fatigará a soledade, se abaterá o teu orgulho e cerrarás os dentes. Um dia
clamarás: “Estou só!”
Chegará um dia em
que já não vejas a tua altura, e em que a tua baixeza esteja demasiado perto de
ti. A tua própria sublimidade te amedrontará como um fantasma. Um dia gritarás:
“Tudo é falso!”
Há sentimentos que
querem matar o solitário. Não o conseguem? Pois eles que morram! Mas, serás tu
capaz de ser assassino?
Meu irmão, já
conheces a palavra “desprezo”? E o tormento da justiça de ser justo para com os
que te menosprezam?
Obrigas muitos a
mudarem de opinião a teu respeito; por isso te consideram. Abeiraste-te deles
e, contudo, passaste adiante; é coisa que te não perdoam.
Elevaste-te acima
deles; mas quanto mais alto sobes, tanto mais pequeno te vêm os olhos da
inveja. E ninguém é tão odiado como o que voa.
“Como quereríeis
ser justo para comigo! — assim é que deves falar. — Eu elejo para mim a vossa
injustiça, como lote que me está destinado”.
Injustiça e baixeza
são o que eles arrojam ao solitário; mas, meu irmão, se queres ser uma estrela,
nem por isso os hás de iluminar menos.
E livra-te dos bons
e dos justos! Agrada-lhes crucificar os que invejam a sua própria virtude:
odeiam o solitário.
E livra-te ainda
assim da santa simplicidade! A seus olhos não é santo o que é simples, e
apraz-lhe brincar com fogo... das fogueiras.
E livra-te também dos
impulsos do teu amor! O solitário estende depressa demais a mão a quem
encontra!
Há homens a quem
não deves dar a mão, mas tão somente a pata, e além disso quero que a tua pata
tenha garras.
O pior inimigo,
todavia, que podes encontrar, és tu mesmo; lança-te a ti próprio nas cavernas e
nos bosques.
Solitário, tu
segues o caminho que te conduz a ti mesmo! E o teu caminho passa por diante de
ti e dos teus sete demônios.
Serás herege para
ti mesmo, serás feiticeiro, adivinho, doido, incrédulo, ímpio e malvado.
É mister que
queiras consumir-te na tua própria chama. Como quererias renovar-te sem
primeiro te reduzires a cinzas?
Solitário, tu
segues o caminho do criador: queres tirar um deus dos teus sete demônios!
Solitário, tu
segues o caminho do amante: amas-te a ti mesmo, e por isso te desprezas, como
só desprezam os amantes.
O amante quer criar
porque despreza! Que saberia do amor aquele que não devesse menosprezar
justamente o que amava?
Vai-te para o
isolamento, meu irmão, com o teu amor e com a tua criação, e tarde será que a
justiça te siga claudicando.
Vai-te para o
isolamento com as minhas lágrimas, meu irmão. “Eu amo o que quer criar qualquer
coisa superior a si mesmo e dessa arte sucumbe”.
Assim falava
Zaratustra.
A VELHA E A NOVA
“Por que deslizas
tão furtivamente durante o crepúsculo, Zaratustra”? E que ocultas com tanta
precaução debaixo da tua capa?
É algum tesouro que
te deram? É um menino que te nasceu? Seguirás tu também agora o caminho dos
ladrões amigo do mal?”
“— Claro, meu
irmão”! — respondeu Zaratustra. — Levo aqui um tesouro: uma pequena verdade.
É, porém, rebelde
como uma criança, e se lhe não tapasse a boca gritaria desaforadamente.
Seguia eu hoje
solitário o meu caminho, à hora em que o sol se escondia, quando encontrei uma
velha que falou assim à minha alma:
“Zaratustra tem
falado muito até mesmo conosco, mulheres, mas nunca nos falou da mulher”.
Eu respondi: “Não é
preciso falar da mulher senão aos homens”.
“Fala-me a mim
também da mulher — disse ela. — Sou bastante velha para esquecer logo tudo
quanto me digas”. Cedi ao desejo da velha, e disse-lhe assim: “Na mulher tudo é
um enigma e tudo tem uma só solução: a prenhez”.
O homem é para a
mulher um meio; o fim é sempre o filho. Que é, porém, a mulher para o homem?
O verdadeiro homem
quer duas coisas: o perigo e o divertimento. Por isso quer a mulher, que é o
brinquedo mais perigoso.
O homem deve ser
educado para a guerra e a mulher para prazer do guerreiro. Tudo o mais é loucura.
O guerreiro não
gosta de frutos doces demais. Por isso a mulher lhe agrada: a mulher mais doce
tem sempre o seu quê de amargo.
A mulher compreende
melhor do que o homem as crianças: mas o homem é mais infantil que a mulher.
Em todo o
verdadeiro homem se oculta uma criança: uma criança que quer brincar. Eia,
mulheres! Descobri no homem a criança!
Seja a mulher um
brinquedo puro e fino como o diamante, abrilhantado pelas virtudes de um mundo
que ainda não existe.
Cintile no vosso
amor o fulgor de uma estrela! A vossa esperança que diga: “Nasça de mim, do
Super-homem!”
Haja valentia no
vosso amor! Com o vosso amor deveis afrontar o que vos inspire medo.
Cifre-se a vossa
honra no vosso amor! Geralmente a mulher pouco entende de honra. Seja, porém,
honra vossa amar sempre mais do que fordes amadas e, nunca serdes a segunda.
Tema o homem a
mulher, quando a mulher odeia: porque, no fundo, o homem é simplesmente mau;
mas a mulher é perversa.
A que odeia mais a
mulher? O ferro falava assim ao imã: “Odeio-te mais do que tudo porque atrais
sem ser forte bastante para sujeitar”.
A felicidade do
homem é: eu quero; a felicidade da mulher é: ele quer.
“Vamos! Já nada
falta no mundo!” — assim pensa a mulher quando obedece de todo o coração.
E é preciso que a
mulher obedeça e que encontre uma profundidade para a sua superfície. A alma da
mulher é superfície: móvel e tumultuosa película de águas superficiais.
A alma do homem,
porém, é profunda, a sua corrente brame em grutas subterrâneas; a mulher
pressente a sua força mas não a compreende”.
Então a velha
respondeu-lhe: “Zaratustra disse muitas coisas bonitas, mormente para as que
são novas”.
Coisa singular!
Zaratustra conhece pouco as mulheres, e, contudo, tem razão no que diz delas!
Será porque nada é impossível na mulher?
E agora, como
recompensa, aceita uma pequena verdade. Sou suficientemente velha para te
dizer.
“Sufoca-a, tapa-lhe
a boca, porque do contrário grita alto demais”.
“Venha a tua
verdade, mulher!” — disse eu, e a velha falou assim:
“Acompanhas com as
mulheres? Olha, não te esqueça do látego”.
Assim falava
Zaratustra.
A PICADA DA
VÍBORA
Um dia, estava
Zaratustra a dormitar sob uma figueira, porque fazia calor, e tinha tapado o
rosto com o braço. Nisto chegou uma víbora, mordeu-lhe o pescoço, e ele soltou
um grito de dor. Afastando o braço do rosto, olhou a serpente; ela reconheceu
os olhos de Zaratustra, contorceu-se vagarosamente e quis se retirar. “Não —
disse Zaratustra: — espera, ainda não te agradeci! Despertaste-me a tempo, pois
o meu caminho ainda é longo”.
— “O teu caminho é
curto — disse tristemente a víbora: — o meu veneno mata”. Zaratustra pôs-se a
rir. “Quando foi que o veneno de uma serpente matou um dragão? — disse —
reabsorve o teu veneno! Não és rica demais para me fazeres presente dele”.
Então a víbora tornou a enlaçar-lhe o pescoço e lambeu-lhe a ferida.
Quando um dia
Zaratustra contou isto aos seus discípulos, eles perguntaram-lhe: “E qual é a
moral do teu conto?” Zaratustra respondeu: “Os bons e os justos chamam-me o
destruidor da moral: o meu conto é imoral”. Se tendes, porém, um inimigo, não
lhe devolvais bem por mal porque se sentiria humilhado; demonstrai-lhe, pelo
contrário, que vos fez um bem.
E a ter que
humilhar preferi encolerizar-vos. E quando se vos amaldiçoe, não me agrada que
vós abençoeis. Amaldiçoai também.
E se vos fizeram
uma grande injustiça, fazei vós imediatamente cinco injustiças pequenas.
Horroriza ver o que
por si só sofre o peso da injustiça.
Já sabeis isto?
Injustiça repartida é semi-direito. E aquele que pode trazer a injustiça deve
levá-la.
Uma pequena
vingança é mais humana do que nenhuma. E se o castigo não é somente um direito
e uma honra para o transgressor, eu não quero o vosso castigo.
É mais nobre
condenarmos do que teimar, mormente quando temos razão. Somente é preciso ser
rico bastante para isso.
Não me agrada a
vossa fria injustiça: nos olhos dos vossos juízes transparece sempre o olhar do
verdugo e seu gelado cutelo.
Dizei-me: onde se
encontra a justiça que é amor com olhos perspicazes?
Inventai-me, pois,
o amor que suporta, não só todos os castigos, mas também todas as faltas.
Inventai-me a
justiça que absolve todos, exceto aquele que julga!
Quereis ouvir mais?
No que quer ser verdadeiramente justo, a mentira muda-se em filantropia.
Mas, como poderia
eu ser verdadeiramente justo? Como poderia dar a cada um o seu?
Basta-me isto: eu
dou a cada um o meu.
Enfim, irmãos
livrai-vos de ser injustos com os solitários. Como poderia um solitário
esquecer? Como poderia devolver?
Um solitário é como
um poço profundo. É fácil lançar nele uma pedra; mas se a pedra vai ao fundo
quem se atreverá a tirá-la?
Livrai-vos de
ofender o solitário; mas se o ofendestes então, matai-o também!”
Assim falava
Zaratustra.
DO FILHO DO
MATRIMÔNIO
Tenho uma pergunta
para ti só, meu irmão. Arrojo-a como uma sonda à tua alma, a fim de lhe
conhecer a profundidade.
És moço e desejas
filho e matrimônio. Eu, porém, pergunto. Serás tu homem que tenha o direito de
desejar um filho?
Serás tu vitorioso,
o vencedor de ti mesmo, o soberano dos sentidos, o dono das tuas virtudes?
É isso o que eu te
pergunto.
Ou será que falam
do teu desejo a besta e a necessidade física, ou o afastamento, ou a discórdia
contigo mesmo?
Eu quero que a tua
vitória e a tua liberdade suspirem por um filho. Deves erigir monumento vivente
à tua vitória e à tua libertação.
Deves construir
qualquer coisa que te seja superior.
Primeiro que tudo,
porém, é preciso que te hajas construído a ti mesmo, retangular de corpo e
alma.
Não deves só
reproduzir-te, mas exceder-te! sirva-te para isso o jardim do matrimônio!
Deves criar um
corpo superior, um primeiro movimento, uma roda que gire sobre si; deves criar
um criador.
Matrimônio: chamo
assim à vontade de dois criarem um que seja mais do que aqueles que o criaram.
O matrimônio é o respeito recíproco: respeito recíproco dos que coincidem em
tal vontade.
Seja este o sentido
e a verdade do teu matrimônio; mas isso a que os que estão demais, os
supérfluos, chamam matrimônio, isso como se há de chamar?
Ai! Que pobreza de
alma entre dois! Que imundície de alma entre dois! Que mísera conformidade
entre dois!
A tudo isso chamam
matrimônio, e dizem que contraem estas uniões no céu!
Pois bem! Eu não
quero esse céu dos supérfluos. Não; eu não quero essas bestas presas com redes
divinas!
Fique-se também por
lá bem longe de mim esse Deus que vem coxeando abençoar aquilo que não uniu!
Não vos riais de
semelhantes matrimônios!
Que filho não teria
razão para chorar por causa de seus pais?
Certo homem
pareceu-me digno e sensato para o sentido da terra, mas quando vi a mulher
dele, a terra pareceu-me moradia de insensatos.
Sim; queria que a
terra se convulsionasse quando se acasalam um santo e uma pata.
Tal outro partiu
como herói em busca de verdades e não trouxe por colheita senão uma mentira
engalanada. Chamam a isso o seu matrimônio.
Este era frio nas
suas relações e escolhia ponderadamente; mas de uma só vez transtornou para
sempre a sua sociedade. A isso chamam o seu matrimônio.
Aquele procurava
uma servente com as virtudes de um anjo; mas daí a pouco tornou-se servente de
uma mulher, e agora precisava ele tornar-se anjo.
Vejo agora todos os
compradores muito senhores de si e com olhos astutos; mas até o mais astuto
compra a sua mulher às cegas.
A muitas loucuras
pequenas chamais amor. E o vosso matrimônio termina muitas loucuras pequenas
para as tornar uma loucura grande.
O vosso amor à
mulher e o amor da mulher pelo homem, ó! seja compaixão para deuses dolentes e
ocultos! Duas bestas, porém, quase sempre se adivinham.
O vosso melhor
amor, contudo, ainda não é mais do que uma imagem extasiada e um ardor
doloroso. É um facho que vos deve iluminar para caminhos superiores.
Um dia deverá o
vosso amor elevar-se acima de vós mesmos! Aprendei, pois, primeiro a
amar! Por isso vos foi preciso beber o amargo cálice do vosso amor.
Existe amargura no
cálice do melhor amor; assim vos faz desejar o Super-homem; assim tendes sede
do criador.
Sede do criador,
seta e desejo do Super-homem; diz-me, meu irmão, é essa a tua vontade do
matrimônio?
“Santa é para mim
tal vontade, santo tal matrimônio”
Assim falava
Zaratustra.
DA MORTE
LIVRE
“Muitos morreram
tarde demais, e alguns demasiado cedo. A doutrina que diz: “Morre a tempo!”
ainda parece singular.
Morre a tempo: eis
o que ensina Zaratustra.
Claro que aquele
que nunca viveu a tempo, como há de morrer a tempo? O melhor é não nascer.
Eis o que aconselho
aos supérfluos.
Até os supérfluos,
contudo, se fazem importantes com a sua morte, e até a noz mais oca quer ser
partida.
Todos concedem
importância à morte; mas a morte ainda não é uma festa. Os homens ainda não
sabem como se consagram às mais belas festas.
Eu vos predico a
morte necessária, a morte que, para os vivos, vem a ser um aguilhão e uma
promessa.
O que cumpre morre
da sua morte, vitorioso, rodeado dos que esperam e prometem.
Assim seria preciso
aprender a morrer, e não deveria haver festa sem tal moribundo santificar os
juramentos dos vivos.
Morrer assim é o
melhor, e morrer na luta é prodigalizar uma grande alma ainda maior.
O combatente e o
vitorioso, porém, odeiam igualmente a vossa morte espaventosa, que se vem
arrastando como um ladrão, e que, todavia, se aproxima como soberana.
Faço-vos o elogio
da minha morte, da morte livre, que vem porque eu quero.
E quando hei de
querer? O que tem um fim e um herdeiro quer a morte a tempo para o fim e para o
herdeiro.
E por respeito ao
fim e ao herdeiro, já não suspenderá coroas murchas no santuário.
Na verdade, não me
quero parecer com os cordeiros: estiram os seus fios e eles andam sempre atrás.
Há também quem se
faça velho demais para as suas verdades e as suas vitórias; uma boca desdentada
já não tem direito a todas as verdades.
E o que queira
desfrutar glória deve despedir-se a tempo das honras e exercer a difícil arte
de se retirar oportunamente.
É preciso fugir a
deixar-se comer no próprio momento em que vos começam a tomar gosto. Os que
querem ser amados muito tempo sabem isso.
Há também maçãs
ácidas, cujo destino é esperar até o último dia do outono. E põem-se amarelas e
enrugadas, no próprio momento em que amadurecem.
Nuns envelhece
primeiro o coração, noutros a inteligência. E alguns são velhos na sua virtude;
mas quando uma pessoa se faz moça muito tarde, conserva-se moça muito tempo.
Há quem fale na sua
vida: um verme venenoso lhes rói o coração. Tratem ao menos de acertar na sua
morte.
Há os que nunca
estão doces: apodrecem já no verão. É a covardia que os sustenta no ramo.
Há demasiados que
ficam e permanecem fixos num ramo excessivo tempo. Venha uma tempestade, que
sacuda da árvore toda essa podridão bichosa!
Venham pregadores
da morte rápida! Seriam as tempestades e as sacudidelas oportunas da árvore da
vida. Eu, porém, só ouço pregar a morte lenta e a paciência com tudo o que é
terrestre. Ai! Pregais a paciência com o que é terrestre? O terrestre é o que
tem demasiada paciência convosco, blasfemos!
Em verdade, morreu
demasiado cedo aquele hebreu a quem honram os pregadores da morte lenta, e para
muitos foi uma fatalidade ele morrer cedo demais.
Esse Jesus hebreu
só conhecia ainda as lágrimas e a tristeza do hebreu, juntamente com o ódio dos
bons e dos justos; por isso o acometeu o desejo da morte.
Por que não ficou
ele no deserto, longe dos bons e dos justos? Talvez houvesse aprendido a viver
e a amar a terra e também o riso!
Crede-me, meus
irmãos! Morreu cedo demais! Retratar-se-ia da sua doutrina se tivesse vivido
até minha idade! Era bastante nobre para se retratar!
Não estava, porém,
ainda maduro. O amor do jovem carece da maduracão, e assim também odeia os
homens e a terra. Tem ainda presas e trôpegas a alma e as asas do pensamento.
No homem, contudo,
há mais de criança do que no jovem, e menos tristeza: compreende melhor a morte
e a vida.
Livre para a morte
e livre na morte; divino negador, quando já não é tempo de afirmar: assim
compreende a vida e a morte.
Não seja a vossa
morte uma blasfêmia contra os homens e contra a terra, meus amigos; eis o que
exijo da doçura da vossa alma.
Vosso espírito e
vossa virtude devem inflamar até a vossa agonia, como o arrebol do poente
inflama a terra; senão a vossa morte será malograda.
Assim quero morrer
eu para que, por mim, ameis mais a terra, meus amigos: e eu quero tornar-me
terra, para encontrar o meu repouso naquela que me gerou.
Na verdade,
Zaratustra tinha um objetivo; lançou a péla. Agora, meus amigos, sois vós os
herdeiros do meu objetivo; a vós envio a dourada péla.
Prefiro a tudo,
meus amigos, ver-nos lançar a péla dourada. E por isso me demoro ainda um pouquinho
na terra. Perdoai-me!”
Assim falava
Zaratustra.
DA VIRTUDE
DADIVOSA
I
Quando Zaratustra
se despediu da cidade que o seu coração amava, a qual tem por nome a “Vaca
Malhada”, muitos dos que se diziam seus discípulos o acompanharam. Assim
chegaram a uma encruzilhada. Então lhes disse Zaratustra que queria ficar só
porque era amigo
das caminhadas
solitárias. Ao despedirem-se dele, os discípulos ofereceram-lhe como prenda um
bastão, cujo castão representava uma serpente enroscada em torno do sol.
Zaratustra aceitou-o alegremente, e apoiou-se nele. Depois falou assim aos
discípulos:
“Dizei-me: como
alcançou o ouro o mais alto valor”? E porque é raro e inútil, de brilho
cintilante e brando: dá-se sempre.
Só como símbolo da
mais alta virtude o ouro alcançou o mais alto valor. É como o ouro, reluzente,
o olhar daquele que dá. O brilho do ouro firma a paz entre a lua e o sol.
A mais alta virtude
é rara e inútil: é resplandecente e de um brilho brando: uma virtude dadivosa é
a mais alta virtude.
Em verdade vos
adivinho, meus discípulos: vós aspirais como eu à virtude dadivosa. Que
podereis ter de comum com os gatos e com os lobos?
A vossa ambição é
querer converter-vos, vós mesmos, em oferendas e presentes. Por isso desejais
acumular todas as riquezas em vossas almas.
A vossa alma anela
insaciavelmente tesouros e joias, porque é insaciável a vontade de dar da vossa
virtude.
Obrigais todas as
crises a aproximarem-se de vós e a penetrar em vós outros, para tornarem a
emanar da vossa fonte como os dons do vosso amor.
Em verdade, é
preciso que tal amor dadivoso se faça saqueador de todos os valores; mas eu
chamo são e sagrado esse egoísmo.
Há outro egoísmo,
um egoísmo demasiado, pobre e famélico, que quer roubar sempre: o egoísmo dos
doentes, o egoísmo enfermo.
Com olhos de ladrão
olha tudo o que reluz, com a aridez da fome mede o que tem abundantemente que
comer, e sempre se arrasta à roda da mesa do que dá.
A doença é uma
invisível degeneração, eis o que tal apetite demonstra; a avidez de roubo desse
egoísmo apregoa um corpo valetudinário.
Dizei-me, meus
irmãos: qual é a coisa que nos parece má, a pior de todas? Não é a degeneração?
E pensamos sempre na degeneração quando falta a alma que dá.
O nosso caminho é
para cima: da espécie à espécie superior; mas o sentido que degenera, o sentido
que diz: “Tudo para mim”, assombra-nos.
O nosso sentido voa
para cima, assim o símbolo do nosso corpo é símbolo de uma elevação. Os
símbolos dessas elevações são os nomes das virtudes.
Assim atravessa o
corpo a história, lutando e elevando-se. E o espírito que é para o corpo? É o
arauto das suas lutas e vitórias, o seu companheiro e o seu eco.
Todos os nomes do
bem e do mal são símbolos; não falam, limitam-se a fazer sinais. Louco é o que
lhes quer pedir o conhecimento.
Meus irmãos estai
atentos às ocasiões em que o vosso espírito quer falar em símbolos: assistis
então à origem da vossa virtude.
Então é quando o
vosso corpo se elevou e ressuscitou; então arrebata o espírito com os seus
transportes para que se faça criador e apreciador e amante, benfeitor de todas
as coisas.
Quando o nosso
coração se agita, amplo e cheio, como o grande rio, bênção e perigo dos
ribeirinhos, então assistis à origem da vossa virtude.
Quando vos elevais
acima do louvor e da censura, e quando a vossa vontade, como vontade de um
homem que ama e quer mandar em todas as coisas, então assistis à origem da
vossa virtude.
Quando desprezais o
que é agradável, a cama fofa, e quando nunca vos credes bastante longe da
moleza para repousar, então assistis à origem da vossa virtude.
Verdadeiramente é
um novo bem e mal! Verdadeiramente é um novo murmúrio profundo e a voz de um
manancial novo!
“Essa nova virtude
é poder; um pensamento reinante e em torno desse pensamento uma alma sagaz: um
sol dourado, e em torno dele a serpente do conhecimento”.
II
Aqui Zaratustra
calou-se um bocado e olhou os discípulos com amor. Em seguida prosseguiu assim.
A voz havia-se-lhe transformado:
“Meus irmãos,
permanecei fiéis à terra com todo o poder da vossa virtude. Sirvam ao sentido
da terra o vosso amor dadivoso e o vosso conhecimento. Eu vo-lo rogo, e a isso
vos conjuro.
Não deixeis a vossa
virtude fugir das coisas terrestres e adejar contra paredes eternas. Ai! Tem
havido sempre tanta virtude extraviada!
Restituí, como eu,
à terra a virtude extraviada. Sim; restituí-a ao corpo e à vida, para que dê à
terra o seu sentido, um sentido humano.
A inteligência e a
virtude têm-se extraviado e enganado de mil maneiras diferentes. Ainda agora
residem no nosso corpo essa loucura e esse engano: tornaram-se corpo e vontade.
A inteligência e a
virtude ensaiaram-se e extraviaram-se de mil maneiras diferentes. Sim; o homem
era um ensaio. Ai! Quantas ignorâncias e erros se incorporam em nós.
Não só a razão dos
milenáríos, mas também a sua loucura aparece em nós. É perigoso ser herdeiro.
Lutamos ainda passo
a passo com o gigante azar e na humanidade inteira reinava até aqui a falta de
sentido.
Sirvam a vossa
inteligência e a vossa virtude no sentido da terra, meus irmãos, e o valor de
todas as coisas será renovado por vós. Para isso deveis ser criadores!
O corpo purifica-se
pelo saber, eleva-se com o esforço inteligente: todos os instintos do que pensa
e conhece se santificam; a alma do que se eleva alvoroça-se.
Médico, ajuda-te a
ti mesmo; assim, ajudas também o teu doente. Seja a melhor assistência do
doente ver com os seus próprios olhos o que se cura a si mesmo.
Há mil sendas que
nunca foram calcadas, mil fontes de saúde e mil terras ocultas na vida. Ainda
se não descobriram nem esgotaram o homem nem a terra dos homens.
Vigiai e escutai,
solitários! Sopros de adejos secretos chegam do futuro, e a ouvidos apurados
chega uma fausta mensagem.
Solitários de hoje,
vós, os afastados, sereis um povo algum dia. Vós que vos haveis entrescolhido a
vós mesmos, formareis um dia um povo eleito do qual nascerá o Super-Homem.
Em terra, a terra
far-se-á um dia um lugar de cura. “Já a envolve um odor novo, um eflúvio de
saúde e uma nova esperança”.
III
Ditas estas
palavras, Zaratustra emudeceu, como quem ainda não disse a última palavra.
Sopesou demoradamente o bastão, como que perplexo. Por fim falou assim, e a voz
havia-se-lhe transformado:
“Agora, meus
discípulos, vou-me embora sozinho”! Ide-vos, vós outros, sozinhos também! Assim
o quero.
Com toda a
sinceridade vos dou este conselho: Afastai-vos de mim e precavei-vos contra
Zaratustra! Melhor ainda: envergonhai-vos dele! Talvez vos haja enganado!
O homem que
reflexiona não só deve amar os seus inimigos, mas também odiar os seus amigos.
Mal corresponde ao
mestre aquele que nunca passa de discípulo. E por que não quereis arrancar a
minha coroa?
Venerais-me! Mas,
que sucederia se uma vez caísse a vossa veneração? Cuidado, não vos esmague uma
estátua!
Dizeis que creis em
Zaratustra? Vós sois crentes em mim; mas, que importam todos os crentes?!
Vós ainda vos
haveis procurado; encontrastes-me então. Assim fazem todos os crentes: por isso
a fé é tão pouca coisa.
Agora vos mando que
me percais e vos encontreis a vós mesmos; e só quando todos me houverdes
renegado tornarei para vós.
Em verdade, meus
irmãos, então buscareis com outros olhos as minhas ovelhas desgarradas; eu vos
amarei então com outro amor.
E um dia devereis
ser meus amigos e filhos de uma só esperança; então quero estar a vosso lado,
pela terceira vez, para festejar convosco o grande meio-dia.
E o grande meio-dia
será quando o homem estiver a meio do trajeto, entre a besta e o Super-homem, o
célere, como sua esperança suprema, o seu caminho para o ocaso: porque será o
caminho para uma nova manhã.
Então o que
desaparece se abençoará a si mesmo, a fim de passar para o outro lado, e o sol
do seu conhecimento estará no seu meio-dia.
“Todos os deuses
morreram; agora viva o Super-homem!” Seja esta, chegado o grande
meio-dia, a vossa última vontade!”
Assim falava
Zaratustra.
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