sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

OS DISCURSOS DE ZARATUSTRA


                                                            DAS MOSCAS DA PRAÇA PÚBLICA

“Foge, meu amigo, para a tua soledade”! Vejo-te aturdido pelo ruído dos grandes homens e crivado pelos ferrões dos pequenos.
Dignamente sabem calar-se contigo os bosques e os penedos. Assemelha-te de novo à tua árvore querida, a árvore de forte ramagem que escuta silenciosa, pendida para o mar.
Onde cessa a soledade principia a praça pública, onde principia a praça pública começa também o ruído dos grandes cômicos e o zumbido das moscas venenosas.
No mundo as melhores coisas nada valem sem alguém que as represente; o povo chama a esses representantes grandes homens.
O mundo compreende mal o que é grande, quer dizer, o que cria; mas tem um sentido para todos os representantes e cômicos das grandes coisas.
O mundo gira em torno dos inventores de valores novos; gira invisivelmente; mas em torno do mundo giram o povo e a glória: assim “anda o mundo”.
O cômico tem espírito, mas pouca consciência do espírito. Crê sempre naquilo pelo qual faz crer mais energicamente — crer em si mesmo.
Amanhã tem uma fé nova, e depois de amanhã outra mais nova. Possui sentidos rápidos como o povo, e temperaturas variáveis.
Derribar: chama a isto demonstrar. Enlouquecer: chama a isto convencer. E o sangue é para ele o melhor de todos os argumentos.
Chama mentira e nada a uma verdade que só penetra em ouvidos apurados. Verdadeiramente só crê em deuses que façam muito ruído no mundo.
A praça pública está cheia de truões ensurdecedores, e o povo vangloria-se dos seus grandes homens. São para eles os senhores do momento.
O momento oprime-o e eles oprimem-te a ti, exigem-te um sim ou um não. Desgraçado! Queres colocar-te entre um pró e um contra?
Não invejes esses espíritos opressores e absolutos ó! amante da verdade! Nunca a verdade pendeu do braço de um espírito absoluto.
Torna ao teu asilo, longe dessa gente tumultuosa; só na praça pública assediam uma pessoa com o “sim ou não?”.
As fontes profundas têm que esperar muito para saber o que caiu na sua profundidade.
Tudo quanto é grande passa longe da praça pública e da glória. Longe da praça pública e da glória viveram sempre os inventores de valores novos.
Foge, meu amigo, para a soledade; vejo-te aqui aguilhoado por moscas venenosas.
Foge para onde sopre um vento rijo.
Foge para a tua soledade. Viverás próximo demais dos pequenos mesquinhos. Foge da sua vingança invisível! Para ti não mais que vingança.
Não levantes mais o braço contra eles!
São inumeráveis, e o teu destino não é ser enxota-moscas!
São inumeráveis esses pequeninos e mesquinhos; e altivos edifícios se têm visto destruídos por gotas de chuva e ervas ruins.
Não és uma pedra, mas já te fenderam infinitas gotas. Infinitas gotas continuarão a fender-te e a quebrar-te.
Vejo-te cansado das moscas venenosas, vejo-te arranhado e ensangüentado, e o teu orgulho nem uma só vez se quer encolerizar.
Elas desejariam o teu sangue com a maior inocência; as suas almas anêmicas reclamam sangue e picam com a maior inocência.
Mas tu, que és profundo, sentias profundamente até as pequenas feridas, e antes da cura já passeava outra vez pela tua mão o mesmo inseto venenoso.
Pareces-me altivo demais para matar esse glutões; mas repara, não venha a ser destino teu suportar toda a sua venenosa injustiça!
Também zumbem à tua roda com os seus louvores. Importunidades: eis os seus louvores. Querem estar perto da tua pele e do teu sangue.
Adulam-te como um deus ou um diabo! Choramingam diante de ti como de um deus ou de um diabo. Que importa?
São aduladores e choramingas, nada mais.
Também sucede fazerem-se amáveis contigo; mas foi sempre essa a astúcia dos covardes. É verdade; os covardes são astutos!
Pensam muito em ti com a alma mesquinha. Suspeitam sempre de ti. Tudo o que dá muito que pensar se torna suspeito.
Castigam-te pelas tuas virtudes todas.
Só te perdoam verdadeiramente os teus erros.
Como és benévolo e justo, dizes: “Não têm culpa da pequenez da sua existência”. Mas a sua alma acanhada pensa: “Toda a grande existência é culpada”.
Mesmo que sejas benévolo com eles, ainda se consideram desprezados por ti e pagam o teu benefício com ações dissimuladas.
O teu mudo orgulho contraria-os sempre, e alvorotam quando acertas em ser bastante modesto para ser vaidoso.
O que reconhecemos num homem infamamos-lhe também nele. Livra-te, portanto, dos pequenos.
Na tua presença sentem-se pequenos, e sua baixeza arde em invisível vingança contra ti.
Não notaste como costumávamos emudecer quando te aproximava deles, e como as forças os abandonavam tal como a fumaça que se extingue?
Sim, meu amigo; és a consciência roedora dos teus próximos, porque não são dignos de ti. Por isso te odeiam e quereriam sugar-te o sangue.
Os teus próximos hão de ser sempre moscas venenosas. E o que é grande em ti deve precisamente torná-los mais venenosos e mais semelhantes às moscas.
Foge, meu amigo, para a tua soledade, para além onde sopre vento rijo e forte. “Não é destino teu ser enxota-moscas”.
Assim falava Zaratustra.

                                                                                 DA CASTIDADE

“Amo o bosque”. É difícil viver nas cidades; nelas abundam fogosos demais.
Não vale mais cair nas mãos de um assassino do que nos sonhos de uma mulher ardente?
Se não, olhai para esses homens; os seus olhos o dizem; nada melhor conhecem na terra do que deitar-se com uma mulher.
Têm lodo no fundo da alma; e coitados deles se o seu lodo possui inteligência!
Se ao menos fosseis animais completos!
Mas para ser animal é preciso inocência.
Será isto aconselhar-vos a que mateis os vossos sentidos? Aconselho-vos a inocência dos sentidos.
Será isto aconselhar-vos a castidade? Em alguns a castidade é uma virtude; mas em muitos é quase um vício.
Estes serão continentes; mas a vil sensualidade babuja zelosa tudo o que fazem.
Até às alturas da sua virtude e até ao seu espírito os segue esse animal com a sua discórdia.
E com gentileza a vil sensualidade sabe mendigar um pedaço de espírito quando se lhe nega um pedaço de carne.
A vós outros agradam as tragédias e tudo o que lacera o coração? Pois eu olho desconfiado a vossa sensualidade.
Tendes olhos demasiado cruéis, e olhais, cheios de desejos, para os que sofrem.
Não será simplesmente porque a vossa sensualidade se disfarçou e tomou o nome de compaixão?
Também vos apresento esta parábola:
Não poucos, que queriam expulsar os demônios, se meteram com os porcos.
Se a castidade pesa a algum, é preciso afastá-lo dela, para que a castidade não chegue a ser o caminho do inferno, isto é, da lama e da fogueira da alma.
Falei de coisas imundas? Para mim não é isso o pior.
Não quando a verdade é imunda, mas quando é superficial, é que o investigador mergulha de má vontade nas suas águas.
Verdadeiramente há os castos por essência; são de coração mais meigo, agrada-lhes mais rir, e riem mais que vós outros.
Riem-se também da castidade e perguntam: “Que é a castidade”?
Não é uma loucura? Mas essa loucura não veio ter conosco, não fomos nós que a buscámos.
Oferecemos a esse hóspede pousada e simpatia: agora habita em nós. Demore-se quanto queira!”
Assim falava Zaratustra.

                                                                             DO AMIGO

“Um só me assedia sempre excessivamente (assim pensa o solitário). Um sempre acaba por fazer dois!”
Eu e Mim estão sempre em conversações incessantes”. Como se poderia suportar isto se não houvesse um amigo?
Para o solitário o amigo é sempre o terceiro; o terceiro é a válvula que impede a conservação dos outros dois de se abismarem nas profundidades.
Ai! Existem demasiadas profundidades para todos os solitários. Por isso aspiram a um amigo e à sua altura.
A nossa fé nos outros revela aquilo que desejaríamos crer em nós mesmos. O nosso desejo de um amigo é o nosso delator.
E freqüentemente, como a amizade, apenas se quer saltar por cima da inveja. E freqüentemente atacamos e criamos inimigos para ocultar que nós mesmos somos atacáveis.
“Sê ao menos meu inimigo!” — Assim, fala o verdadeiro respeito, o que se não atreve a solicitar a amizade.
Se se quiser ter um amigo, é preciso também guerrear por ele; e para guerrear é mister poder ser inimigo.
É preciso honrar no amigo o inimigo. Podes aproximar-te do teu amigo sem passar para o seu bando?
No amigo deve ver-se o melhor inimigo. Deves ser a glória do teu amigo, entregares-te a ele tal qual és? Pois é por isso que te manda para o demônio!
O que se não recata, escandaliza. “Deveis temer a mudez! Sim; se fosseis deuses, então poderíeis envergonhar-vos dos vossos vestidos”.
Nunca te adornarás demais para o teu amigo, porque deves ser para ele uma seta e também um anelo para o Super-homem.
Já viste dormir o teu amigo para saberes como és? Qual é, então, a cara do teu amigo? É a tua própria cara num espelho tosco e imperfeito.
Já viste dormir o teu amigo? Não te assombrou o seu aspecto? Ó! Meu amigo; o homem deve ser superado!
O amigo deve ser mestre na adivinhação e no silêncio: não deves querer ver tudo. O teu sono deve revelar-te o que faz o teu amigo durante a vigília.
Seja a tua compaixão uma adivinhação: é mister que, primeiro que tudo, saibas se o teu amigo quer compaixão.
Talvez em ti lhe agradem os olhos altivos e a contemplação da eternidade.
Oculte-se a compaixão com o amigo sob uma rude certeza.
Serás tu para o teu amigo ar puro e soledade, pão e medicina? Há quem não possa desatar as suas próprias cadeias, e todavia  seja salvador do amigo.
És escravo? Então não podes ser amigo.
És tirano? Então não podes ter amigos.
Há demasiado tempo que se ocultavam na mulher um escravo e um tirano. Por isso a mulher ainda não é capaz de amizade; apenas conhece o amor.
No amor da mulher há injustiça e cegueira para tudo quanto não ama. E mesmo o amor, reflexo da mulher, oculta sempre, a par da luz, a surpresa, o raio da noite.
A mulher ainda não é capaz de amizade: as mulheres continuam sendo gatas e pássaros. Ou, melhor, vacas.
A mulher ainda não é capaz de amizade. Mas dizei-me vós homens: qual de vós outros é, porventura, capaz de amizade?
Ai, homens! que pobreza e avareza a da vossa alma! Quando vós outros dais a vossos amigos eu quero dar também aos meus inimigos sem me tornar mais pobre por isso.
Haja camaradagem. Haja amizade.”
Assim falava Zaratustra.

                                                           OS MIL OBJETOS E O ÚNICO OBJETO

“Muitos países e muitos povos viu Zaratustra; assim descobriu o bem e o mal de muitos povos”. Zaratustra não encontrou maior poder na terra do que o bem e o mal.
Nenhum poderia viver sem avaliar; mas, para se conservar não deve avaliar como o seu vizinho.
Muitas coisas que um povo chama boas eram para outros vergonhosas e desprezíveis; foi o que vi. Muitas coisas, aqui qualificadas de más, além as enfeitavam com o manto de púrpura das honrarias.
Nunca um vizinho compreendeu o outro; sempre a sua alma se assombrou da loucura e da maldade do vizinho.
Sobre cada povo está suspensa uma tábua de bens. E vede: é a tábua dos triunfos dos seus esforços; é a voz da sua vontade de poder.
É honroso o que lhe parece difícil; o que é indispensável e difícil chama-se bem, e o que livra de maiores misérias, o mais raro e difícil, santifica-se.
O que lhe permite reinar, vencer e brilhar com temor e inveja do seu vizinho, é para ele o mais elevado, o principal, a medida e o sentido de todas as coisas.
Verdadeiramente, se tu conheces a necessidade, o país, o céu e o vizinho de um povo, adivinhas também a lei dos seus triunfos e por que razão sobe às suas esperanças por esses graus.
“Deves ser sempre o primeiro a avantajar-se aos outros; a tua alma zelosa não deve amar ninguém senão o amigo”. — Isto fez tremer a alma de um grego, e levou-o a seguir o caminho da grandeza.
“Dizer a verdade e saber manejar bem o arco e as flechas”. — Isto parecia caro ao mesmo tempo que difícil ao povo donde vem o meu nome, o nome que é para mim caro ao mesmo tempo que difícil.
“Honrar pai e mãe, e ter para eles submissão”. Essa tábua das vitórias sobre si elegeu outro povo, e com ela foi eterno e poderoso.
“Render culto à fidelidade, e pela fidelidade dar sangue e honra ainda tratando-se de coisas más e perigosas”. Por esse ensinamento venceu-se a si mesmo outro povo, e a vencer-se assim chegou a encher-se de grandes esperanças.
A verdade é que os homens se deram todo o seu bem e todo o seu mal. A verdade é que o não tomaram, que o não encontraram, que lhes não caiu com uma voz do céu.
O homem é que pôs valores nas coisas a fim de se conservar; foi ele que deu um sentido às coisas, um sentido humano. Por isso se chama “homem” isto é, o que aprecia.
Avaliar é criar. Ouvi, criadores! Avaliar é o tesouro e a joia de todas as coisas avaliadas.
Pela avaliação se dá o valor; sem a avaliação, a noz da existência seria oca. Ouvi-o, criadores!
A mudança dos valores é mudança de quem cria.
Sempre o que há de criar destrói.
Os criadores, num princípio foram povos, e só mais tarde indivíduos. Na verdade, os indivíduos é a mais recente das criações.
Povos suspenderam noutro tempo sobre si uma tábua do bem. O amor, que quer dominar, e o amor que quer obedecer, criaram juntos essas tábuas.
O prazer do rebanho é mais antigo que o prazer do Eu. E enquanto a boa consciência se chama rebanho, só a má diz: Eu.
Na verdade, o Eu astuto, o Eu egoísta, que procura o seu bem no bem de muitos, este não é a origem do rebanho, mas a sua destruição.
Sempre foram ardentes os que criaram o bem e o mal. O fogo do amor e o fogo da cólera ardem sob o nome de todas as virtudes.
Muitos países e muitos povos viu Zaratustra. Não encontrou poder maior na terra que a obra dos ardentes; “bem e mal” é o seu nome.
Na verdade, o poder desses elogios e destas censuras é semelhante a um monstro. Dizei-me, meus irmãos: Quem o derrubará? Dizei: quem lançará uma cadeia sobre as mil cervizes dessa besta?
Até ao presente tem havido mil objetos, porque tem havido mil povos. Só falta a cadeia das mil cervizes: falta o único objeto. A humanidade não tem objeto.
Mas dizei-me, irmãos: se falta objeto à humanidade, não é porque ela mesma ainda não existe?”
Assim falava Zaratustra.
                          
                                                                              DO AMOR AO PRÓXIMO

“Vós outros andais muito solícitos em redor do próximo, e manifestai-o com belas palavras”. Mas eu vos digo: o vosso amor ao próximo é vosso meu amor a vós mesmos.
Fugis de vós em busca do próximo, e quereis converter isso numa virtude; mas eu compreendo o vosso “desinteresse”.
O Tu é mais velho do que Eu; o Tu acha-se santificado, mas o Eu ainda não. Por isso o homem anda diligente atrás do próximo.
Acaso vos aconselho o amor ao próximo? Antes vos aconselho a fuga do “próximo” e o amor ao remoto!
Mais elevado que o amor ao próximo é o amor ao longínquo, ao que está por vir, mais alto ainda que o amor ao homem coloco o amor às coisas e aos fantasmas.
Esse fantasma que corre diante de vós, meus irmãos, é mais belo que vós. Por que lhe não dais a vossa carne e os vossos ossos? Mas tende-lhes medo e fugis à procura do vosso próximo.
Não vos suportais a vós mesmos e não vos quereis bastante; desejaríeis seduzir o próximo por vosso amor e dourar-vos com a sua ilusão.
Quisera que todos esses próximos e seus vizinhos se vos tornassem insuportáveis; assim teríeis que criar para vós mesmos o vosso amigo e o seu coração fervoroso.
Chamais uma testemunha quando quereis falar bem de vós, e logo que a haveis induzido a pensar bem da vossa pessoa, vós mesmos pensais bem da vossa pessoa.
Não só mente o que fala contra a sua consciência, mas sobretudo o que fala com a sua inconsciência. E assim falais de vós no trato social, enganando o vizinho.
Fala o louco: “O trato com os homens exaspera o caráter, principalmente quando o não temos”.
Um vai após o próximo, porque se procura; o outro porque se quisera esquecer.
A vossa malquerença com respeito a vós mesmos converte a vossa soledade num cativeiro.
Os mais afastados são os que pagam o nosso amor ao próximo, e quando vós juntais cinco, deve morrer um sexto.
Também me não agradam as vossas festas; encontrei nelas demasiados cômicos e os mesmos espectadores se conduzem frequentemente como cômicos.
Não falo do próximo; falo só do amigo. Seja o amigo para vós a festa da terra e um presentimento do Super-homem.
Falo-vos do amigo e do seu coração exuberante. Mas é preciso saber ser uma esponja quando se quer ser amado por corações exuberantes.
Falo-vos do amigo que leva em si um mundo disponível, um envólucro do bem — do amigo criador que tem sempre um mundo disponível para dar.
E como se desenvolveu o mundo para ele, assim se envolve de novo: tal é o advento do bem pelo mal, do desígnio pelo acaso.
Sejam o porvir e o mais remoto a causa do vosso hoje; no vosso amigo deveis amar o Super-homem, como razão de ser.
“Meus irmãos, eu não vos aconselho o amor ao próximo; aconselho-vos o amor ao mais afastado”.
Assim falava Zaratustra.

                                                                              DO CAMINHO DO CRIADOR

“Queres, meu irmão, insular-te”? Queres procurar o caminho que te guia a ti mesmo? Espera ainda um momento e ouve-me.
“O que procura facilmente se perde a si mesmo”.
“Todo o insulamento é um erro”. Assim fala o rebanho. E tu pertenceste ao rebanho durante muito tempo.
Em ti também ainda há de ressoar a voz do rebanho. E tu pertenceste ao rebanho durante muito tempo.
Em ti também ainda há de ressoar a voz do rebanho. E quando disseres: “Já não tenho uma consciência comum convosco”, isso será uma queixa e uma dor.
Olha: essa mesma dor é filha da consciência comum e a última centelha dessa consciência ainda brilha na tua aflição.
Queres, porém, seguir o caminho da tua aflição, que é o caminho para ti mesmo? Demonstra-me o teu direito e a tua força para isso!
Acaso és uma força nova e um novo direito?
Um primeiro movimento? Uma roda que gira sobre si mesma? Podes obrigar as estrelas a girarem em torno de ti?
Ai! Existe tanta ansiedade pelas alturas!
Há tantas convulsões de ambição! Demonstra-me que não pertences ao número dos cobiçosos nem dos ambiciosos!
Ai! Existem tantos pensamentos grandes que apenas fazem o mesmo que um fole. Incham e esvaziam.
Chamas-te livre? Quero que me digas o teu pensamento fundamental, e não que te livraste de um jugo.
Serás tu alguém que tenha o direito de se livrar de um jugo? Há quem perca o seu último valor ao libertar-se da sua sujeição.
Livre de quê? Que importa isso a Zaratustra? O teu olhar, porém, deve anunciar-se claramente: livre, para quê?
Podes proporcionar a ti mesmo teu bem e o teu mal, e suspender a tua vontade por cima de ti como uma lei? Podes ser o teu próprio juiz e vingador da tua lei?
Terrível é estar a sós com o juiz e o vingador da própria lei, como estrela lançada ao espaço vazio no meio do sopro gelado da soledade.
Ainda hoje te atormenta a multidão; ainda conservas o teu valor e as tuas esperanças todas.
Um dia, contudo, te fatigará a soledade, se abaterá o teu orgulho e cerrarás os dentes. Um dia clamarás: “Estou só!”
Chegará um dia em que já não vejas a tua altura, e em que a tua baixeza esteja demasiado perto de ti. A tua própria sublimidade te amedrontará como um fantasma. Um dia gritarás: “Tudo é falso!”
Há sentimentos que querem matar o solitário. Não o conseguem? Pois eles que morram! Mas, serás tu capaz de ser assassino?
Meu irmão, já conheces a palavra “desprezo”? E o tormento da justiça de ser justo para com os que te menosprezam?
Obrigas muitos a mudarem de opinião a teu respeito; por isso te consideram. Abeiraste-te deles e, contudo, passaste adiante; é coisa que te não perdoam.
Elevaste-te acima deles; mas quanto mais alto sobes, tanto mais pequeno te vêm os olhos da inveja. E ninguém é tão odiado como o que voa.
“Como quereríeis ser justo para comigo! — assim é que deves falar. — Eu elejo para mim a vossa injustiça, como lote que me está destinado”.
Injustiça e baixeza são o que eles arrojam ao solitário; mas, meu irmão, se queres ser uma estrela, nem por isso os hás de iluminar menos.
E livra-te dos bons e dos justos! Agrada-lhes crucificar os que invejam a sua própria virtude: odeiam o solitário.
E livra-te ainda assim da santa simplicidade! A seus olhos não é santo o que é simples, e apraz-lhe brincar com fogo... das fogueiras.
E livra-te também dos impulsos do teu amor! O solitário estende depressa demais a mão a quem encontra!
Há homens a quem não deves dar a mão, mas tão somente a pata, e além disso quero que a tua pata tenha garras.
O pior inimigo, todavia, que podes encontrar, és tu mesmo; lança-te a ti próprio nas cavernas e nos bosques.
Solitário, tu segues o caminho que te conduz a ti mesmo! E o teu caminho passa por diante de ti e dos teus sete demônios.
Serás herege para ti mesmo, serás feiticeiro, adivinho, doido, incrédulo, ímpio e malvado.
É mister que queiras consumir-te na tua própria chama. Como quererias renovar-te sem primeiro te reduzires a cinzas?
Solitário, tu segues o caminho do criador: queres tirar um deus dos teus sete demônios!
Solitário, tu segues o caminho do amante: amas-te a ti mesmo, e por isso te desprezas, como só desprezam os amantes.
O amante quer criar porque despreza! Que saberia do amor aquele que não devesse menosprezar justamente o que amava?
Vai-te para o isolamento, meu irmão, com o teu amor e com a tua criação, e tarde será que a justiça te siga claudicando.
Vai-te para o isolamento com as minhas lágrimas, meu irmão. “Eu amo o que quer criar qualquer coisa superior a si mesmo e dessa arte sucumbe”.
Assim falava Zaratustra.
                       
                                                                                A VELHA E A NOVA

“Por que deslizas tão furtivamente durante o crepúsculo, Zaratustra”? E que ocultas com tanta precaução debaixo da tua capa?
É algum tesouro que te deram? É um menino que te nasceu? Seguirás tu também agora o caminho dos ladrões amigo do mal?”
“— Claro, meu irmão”! — respondeu Zaratustra. — Levo aqui um tesouro: uma pequena verdade.
É, porém, rebelde como uma criança, e se lhe não tapasse a boca gritaria desaforadamente.
Seguia eu hoje solitário o meu caminho, à hora em que o sol se escondia, quando encontrei uma velha que falou assim à minha alma:
“Zaratustra tem falado muito até mesmo conosco, mulheres, mas nunca nos falou da mulher”.
Eu respondi: “Não é preciso falar da mulher senão aos homens”.
“Fala-me a mim também da mulher — disse ela. — Sou bastante velha para esquecer logo tudo quanto me digas”. Cedi ao desejo da velha, e disse-lhe assim: “Na mulher tudo é um enigma e tudo tem uma só solução: a prenhez”.
O homem é para a mulher um meio; o fim é sempre o filho. Que é, porém, a mulher para o homem?
O verdadeiro homem quer duas coisas: o perigo e o divertimento. Por isso quer a mulher, que é o brinquedo mais perigoso.
O homem deve ser educado para a guerra e a mulher para prazer do guerreiro. Tudo o mais é loucura.
O guerreiro não gosta de frutos doces demais. Por isso a mulher lhe agrada: a mulher mais doce tem sempre o seu quê de amargo.
A mulher compreende melhor do que o homem as crianças: mas o homem é mais infantil que a mulher.
Em todo o verdadeiro homem se oculta uma criança: uma criança que quer brincar. Eia, mulheres! Descobri no homem a criança!
Seja a mulher um brinquedo puro e fino como o diamante, abrilhantado pelas virtudes de um mundo que ainda não existe.
Cintile no vosso amor o fulgor de uma estrela! A vossa esperança que diga: “Nasça de mim, do Super-homem!”
Haja valentia no vosso amor! Com o vosso amor deveis afrontar o que vos inspire medo.
Cifre-se a vossa honra no vosso amor! Geralmente a mulher pouco entende de honra. Seja, porém, honra vossa amar sempre mais do que fordes amadas e, nunca serdes a segunda.
Tema o homem a mulher, quando a mulher odeia: porque, no fundo, o homem é simplesmente mau; mas a mulher é perversa.
A que odeia mais a mulher? O ferro falava assim ao imã: “Odeio-te mais do que tudo porque atrais sem ser forte bastante para sujeitar”.
A felicidade do homem é: eu quero; a felicidade da mulher é: ele quer.
“Vamos! Já nada falta no mundo!” — assim pensa a mulher quando obedece de todo o coração.
E é preciso que a mulher obedeça e que encontre uma profundidade para a sua superfície. A alma da mulher é superfície: móvel e tumultuosa película de águas superficiais.
A alma do homem, porém, é profunda, a sua corrente brame em grutas subterrâneas; a mulher pressente a sua força mas não a compreende”.
Então a velha respondeu-lhe: “Zaratustra disse muitas coisas bonitas, mormente para as que são novas”.
Coisa singular! Zaratustra conhece pouco as mulheres, e, contudo, tem razão no que diz delas! Será porque nada é impossível na mulher?
E agora, como recompensa, aceita uma pequena verdade. Sou suficientemente velha para te dizer.
“Sufoca-a, tapa-lhe a boca, porque do contrário grita alto demais”.
“Venha a tua verdade, mulher!” — disse eu, e a velha falou assim:
“Acompanhas com as mulheres? Olha, não te esqueça do látego”.
Assim falava Zaratustra.

                                                                                A PICADA DA VÍBORA

Um dia, estava Zaratustra a dormitar sob uma figueira, porque fazia calor, e tinha tapado o rosto com o braço. Nisto chegou uma víbora, mordeu-lhe o pescoço, e ele soltou um grito de dor. Afastando o braço do rosto, olhou a serpente; ela reconheceu os olhos de Zaratustra, contorceu-se vagarosamente e quis se retirar. “Não — disse Zaratustra: — espera, ainda não te agradeci! Despertaste-me a tempo, pois o meu caminho ainda é longo”.
— “O teu caminho é curto — disse tristemente a víbora: — o meu veneno mata”. Zaratustra pôs-se a rir. “Quando foi que o veneno de uma serpente matou um dragão? — disse — reabsorve o teu veneno! Não és rica demais para me fazeres presente dele”. Então a víbora tornou a enlaçar-lhe o pescoço e lambeu-lhe a ferida.
Quando um dia Zaratustra contou isto aos seus discípulos, eles perguntaram-lhe: “E qual é a moral do teu conto?” Zaratustra respondeu: “Os bons e os justos chamam-me o destruidor da moral: o meu conto é imoral”. Se tendes, porém, um inimigo, não lhe devolvais bem por mal porque se sentiria humilhado; demonstrai-lhe, pelo contrário, que vos fez um bem.
E a ter que humilhar preferi encolerizar-vos. E quando se vos amaldiçoe, não me agrada que vós abençoeis. Amaldiçoai também.
E se vos fizeram uma grande injustiça, fazei vós imediatamente cinco injustiças pequenas.
Horroriza ver o que por si só sofre o peso da injustiça.
Já sabeis isto? Injustiça repartida é semi-direito. E aquele que pode trazer a injustiça deve levá-la.
Uma pequena vingança é mais humana do que nenhuma. E se o castigo não é somente um direito e uma honra para o transgressor, eu não quero o vosso castigo.
É mais nobre condenarmos do que teimar, mormente quando temos razão. Somente é preciso ser rico bastante para isso.
Não me agrada a vossa fria injustiça: nos olhos dos vossos juízes transparece sempre o olhar do verdugo e seu gelado cutelo.
Dizei-me: onde se encontra a justiça que é amor com olhos perspicazes?
Inventai-me, pois, o amor que suporta, não só todos os castigos, mas também todas as faltas.
Inventai-me a justiça que absolve todos, exceto aquele que julga!
Quereis ouvir mais? No que quer ser verdadeiramente justo, a mentira muda-se em filantropia.
Mas, como poderia eu ser verdadeiramente justo? Como poderia dar a cada um o seu?
Basta-me isto: eu dou a cada um o meu.
Enfim, irmãos livrai-vos de ser injustos com os solitários. Como poderia um solitário esquecer? Como poderia devolver?
Um solitário é como um poço profundo. É fácil lançar nele uma pedra; mas se a pedra vai ao fundo quem se atreverá a tirá-la?
Livrai-vos de ofender o solitário; mas se o ofendestes então, matai-o também!”
Assim falava Zaratustra.

                                                                   DO FILHO DO MATRIMÔNIO

Tenho uma pergunta para ti só, meu irmão. Arrojo-a como uma sonda à tua alma, a fim de lhe conhecer a profundidade.
És moço e desejas filho e matrimônio. Eu, porém, pergunto. Serás tu homem que tenha o direito de desejar um filho?
Serás tu vitorioso, o vencedor de ti mesmo, o soberano dos sentidos, o dono das tuas virtudes?
É isso o que eu te pergunto.
Ou será que falam do teu desejo a besta e a necessidade física, ou o afastamento, ou a discórdia contigo mesmo?
Eu quero que a tua vitória e a tua liberdade suspirem por um filho. Deves erigir monumento vivente à tua vitória e à tua libertação.
Deves construir qualquer coisa que te seja superior.
Primeiro que tudo, porém, é preciso que te hajas construído a ti mesmo, retangular de corpo e alma.
Não deves só reproduzir-te, mas exceder-te! sirva-te para isso o jardim do matrimônio!
Deves criar um corpo superior, um primeiro movimento, uma roda que gire sobre si; deves criar um criador.
Matrimônio: chamo assim à vontade de dois criarem um que seja mais do que aqueles que o criaram. O matrimônio é o respeito recíproco: respeito recíproco dos que coincidem em tal vontade.
Seja este o sentido e a verdade do teu matrimônio; mas isso a que os que estão demais, os supérfluos, chamam matrimônio, isso como se há de chamar?
Ai! Que pobreza de alma entre dois! Que imundície de alma entre dois! Que mísera conformidade entre dois!
A tudo isso chamam matrimônio, e dizem que contraem estas uniões no céu!
Pois bem! Eu não quero esse céu dos supérfluos. Não; eu não quero essas bestas presas com redes divinas!
Fique-se também por lá bem longe de mim esse Deus que vem coxeando abençoar aquilo que não uniu!
Não vos riais de semelhantes matrimônios!
Que filho não teria razão para chorar por causa de seus pais?
Certo homem pareceu-me digno e sensato para o sentido da terra, mas quando vi a mulher dele, a terra pareceu-me moradia de insensatos.
Sim; queria que a terra se convulsionasse quando se acasalam um santo e uma pata.
Tal outro partiu como herói em busca de verdades e não trouxe por colheita senão uma mentira engalanada. Chamam a isso o seu matrimônio.
Este era frio nas suas relações e escolhia ponderadamente; mas de uma só vez transtornou para sempre a sua sociedade. A isso chamam o seu matrimônio.
Aquele procurava uma servente com as virtudes de um anjo; mas daí a pouco tornou-se servente de uma mulher, e agora precisava ele tornar-se anjo.
Vejo agora todos os compradores muito senhores de si e com olhos astutos; mas até o mais astuto compra a sua mulher às cegas.
A muitas loucuras pequenas chamais amor. E o vosso matrimônio termina muitas loucuras pequenas para as tornar uma loucura grande.
O vosso amor à mulher e o amor da mulher pelo homem, ó! seja compaixão para deuses dolentes e ocultos! Duas bestas, porém, quase sempre se adivinham.
O vosso melhor amor, contudo, ainda não é mais do que uma imagem extasiada e um ardor doloroso. É um facho que vos deve iluminar para caminhos superiores.
Um dia deverá o vosso amor elevar-se acima de vós mesmos! Aprendei, pois, primeiro a amar! Por isso vos foi preciso beber o amargo cálice do vosso amor.
Existe amargura no cálice do melhor amor; assim vos faz desejar o Super-homem; assim tendes sede do criador.
Sede do criador, seta e desejo do Super-homem; diz-me, meu irmão, é essa a tua vontade do matrimônio?
“Santa é para mim tal vontade, santo tal matrimônio”
Assim falava Zaratustra.

                                                                               DA MORTE LIVRE

“Muitos morreram tarde demais, e alguns demasiado cedo. A doutrina que diz: “Morre a tempo!” ainda parece singular.
Morre a tempo: eis o que ensina Zaratustra.
Claro que aquele que nunca viveu a tempo, como há de morrer a tempo? O melhor é não nascer.
Eis o que aconselho aos supérfluos.
Até os supérfluos, contudo, se fazem importantes com a sua morte, e até a noz mais oca quer ser partida.
Todos concedem importância à morte; mas a morte ainda não é uma festa. Os homens ainda não sabem como se consagram às mais belas festas.
Eu vos predico a morte necessária, a morte que, para os vivos, vem a ser um aguilhão e uma promessa.
O que cumpre morre da sua morte, vitorioso, rodeado dos que esperam e prometem.
Assim seria preciso aprender a morrer, e não deveria haver festa sem tal moribundo santificar os juramentos dos vivos.
Morrer assim é o melhor, e morrer na luta é prodigalizar uma grande alma ainda maior.
O combatente e o vitorioso, porém, odeiam igualmente a vossa morte espaventosa, que se vem arrastando como um ladrão, e que, todavia, se aproxima como soberana.
Faço-vos o elogio da minha morte, da morte livre, que vem porque eu quero.
E quando hei de querer? O que tem um fim e um herdeiro quer a morte a tempo para o fim e para o herdeiro.
E por respeito ao fim e ao herdeiro, já não suspenderá coroas murchas no santuário.
Na verdade, não me quero parecer com os cordeiros: estiram os seus fios e eles andam sempre atrás.
Há também quem se faça velho demais para as suas verdades e as suas vitórias; uma boca desdentada já não tem direito a todas as verdades.
E o que queira desfrutar glória deve despedir-se a tempo das honras e exercer a difícil arte de se retirar oportunamente.
É preciso fugir a deixar-se comer no próprio momento em que vos começam a tomar gosto. Os que querem ser amados muito tempo sabem isso.
Há também maçãs ácidas, cujo destino é esperar até o último dia do outono. E põem-se amarelas e enrugadas, no próprio momento em que amadurecem.
Nuns envelhece primeiro o coração, noutros a inteligência. E alguns são velhos na sua virtude; mas quando uma pessoa se faz moça muito tarde, conserva-se moça muito tempo.
Há quem fale na sua vida: um verme venenoso lhes rói o coração. Tratem ao menos de acertar na sua morte.
Há os que nunca estão doces: apodrecem já no verão. É a covardia que os sustenta no ramo.
Há demasiados que ficam e permanecem fixos num ramo excessivo tempo. Venha uma tempestade, que sacuda da árvore toda essa podridão bichosa!
Venham pregadores da morte rápida! Seriam as tempestades e as sacudidelas oportunas da árvore da vida. Eu, porém, só ouço pregar a morte lenta e a paciência com tudo o que é terrestre. Ai! Pregais a paciência com o que é terrestre? O terrestre é o que tem demasiada paciência convosco, blasfemos!
Em verdade, morreu demasiado cedo aquele hebreu a quem honram os pregadores da morte lenta, e para muitos foi uma fatalidade ele morrer cedo demais.
Esse Jesus hebreu só conhecia ainda as lágrimas e a tristeza do hebreu, juntamente com o ódio dos bons e dos justos; por isso o acometeu o desejo da morte.
Por que não ficou ele no deserto, longe dos bons e dos justos? Talvez houvesse aprendido a viver e a amar a terra e também o riso!
Crede-me, meus irmãos! Morreu cedo demais! Retratar-se-ia da sua doutrina se tivesse vivido até minha idade! Era bastante nobre para se retratar!
Não estava, porém, ainda maduro. O amor do jovem carece da maduracão, e assim também odeia os homens e a terra. Tem ainda presas e trôpegas a alma e as asas do pensamento.
No homem, contudo, há mais de criança do que no jovem, e menos tristeza: compreende melhor a morte e a vida.
Livre para a morte e livre na morte; divino negador, quando já não é tempo de afirmar: assim compreende a vida e a morte.
Não seja a vossa morte uma blasfêmia contra os homens e contra a terra, meus amigos; eis o que exijo da doçura da vossa alma.
Vosso espírito e vossa virtude devem inflamar até a vossa agonia, como o arrebol do poente inflama a terra; senão a vossa morte será malograda.
Assim quero morrer eu para que, por mim, ameis mais a terra, meus amigos: e eu quero tornar-me terra, para encontrar o meu repouso naquela que me gerou.
Na verdade, Zaratustra tinha um objetivo; lançou a péla. Agora, meus amigos, sois vós os herdeiros do meu objetivo; a vós envio a dourada péla.
Prefiro a tudo, meus amigos, ver-nos lançar a péla dourada. E por isso me demoro ainda um pouquinho na terra. Perdoai-me!”
Assim falava Zaratustra.

                                                                         DA VIRTUDE DADIVOSA
                                                                                              I
Quando Zaratustra se despediu da cidade que o seu coração amava, a qual tem por nome a “Vaca Malhada”, muitos dos que se diziam seus discípulos o acompanharam. Assim chegaram a uma encruzilhada. Então lhes disse Zaratustra que queria ficar só porque era amigo
das caminhadas solitárias. Ao despedirem-se dele, os discípulos ofereceram-lhe como prenda um bastão, cujo castão representava uma serpente enroscada em torno do sol. Zaratustra aceitou-o alegremente, e apoiou-se nele. Depois falou assim aos discípulos:
“Dizei-me: como alcançou o ouro o mais alto valor”? E porque é raro e inútil, de brilho cintilante e brando: dá-se sempre.
Só como símbolo da mais alta virtude o ouro alcançou o mais alto valor. É como o ouro, reluzente, o olhar daquele que dá. O brilho do ouro firma a paz entre a lua e o sol.
A mais alta virtude é rara e inútil: é resplandecente e de um brilho brando: uma virtude dadivosa é a mais alta virtude.
Em verdade vos adivinho, meus discípulos: vós aspirais como eu à virtude dadivosa. Que podereis ter de comum com os gatos e com os lobos?
A vossa ambição é querer converter-vos, vós mesmos, em oferendas e presentes. Por isso desejais acumular todas as riquezas em vossas almas.
A vossa alma anela insaciavelmente tesouros e joias, porque é insaciável a vontade de dar da vossa virtude.
Obrigais todas as crises a aproximarem-se de vós e a penetrar em vós outros, para tornarem a emanar da vossa fonte como os dons do vosso amor.
Em verdade, é preciso que tal amor dadivoso se faça saqueador de todos os valores; mas eu chamo são e sagrado esse egoísmo.
Há outro egoísmo, um egoísmo demasiado, pobre e famélico, que quer roubar sempre: o egoísmo dos doentes, o egoísmo enfermo.
Com olhos de ladrão olha tudo o que reluz, com a aridez da fome mede o que tem abundantemente que comer, e sempre se arrasta à roda da mesa do que dá.
A doença é uma invisível degeneração, eis o que tal apetite demonstra; a avidez de roubo desse egoísmo apregoa um corpo valetudinário.
Dizei-me, meus irmãos: qual é a coisa que nos parece má, a pior de todas? Não é a degeneração? E pensamos sempre na degeneração quando falta a alma que dá.
O nosso caminho é para cima: da espécie à espécie superior; mas o sentido que degenera, o sentido que diz: “Tudo para mim”, assombra-nos.
O nosso sentido voa para cima, assim o símbolo do nosso corpo é símbolo de uma elevação. Os símbolos dessas elevações são os nomes das virtudes.
Assim atravessa o corpo a história, lutando e elevando-se. E o espírito que é para o corpo? É o arauto das suas lutas e vitórias, o seu companheiro e o seu eco.
Todos os nomes do bem e do mal são símbolos; não falam, limitam-se a fazer sinais. Louco é o que lhes quer pedir o conhecimento.
Meus irmãos estai atentos às ocasiões em que o vosso espírito quer falar em símbolos: assistis então à origem da vossa virtude.
Então é quando o vosso corpo se elevou e ressuscitou; então arrebata o espírito com os seus transportes para que se faça criador e apreciador e amante, benfeitor de todas as coisas.
Quando o nosso coração se agita, amplo e cheio, como o grande rio, bênção e perigo dos ribeirinhos, então assistis à origem da vossa virtude.
Quando vos elevais acima do louvor e da censura, e quando a vossa vontade, como vontade de um homem que ama e quer mandar em todas as coisas, então assistis à origem da vossa virtude.
Quando desprezais o que é agradável, a cama fofa, e quando nunca vos credes bastante longe da moleza para repousar, então assistis à origem da vossa virtude.
Verdadeiramente é um novo bem e mal! Verdadeiramente é um novo murmúrio profundo e a voz de um manancial novo!
“Essa nova virtude é poder; um pensamento reinante e em torno desse pensamento uma alma sagaz: um sol dourado, e em torno dele a serpente do conhecimento”.

                                                                                        II
Aqui Zaratustra calou-se um bocado e olhou os discípulos com amor. Em seguida prosseguiu assim. A voz havia-se-lhe transformado:
“Meus irmãos, permanecei fiéis à terra com todo o poder da vossa virtude. Sirvam ao sentido da terra o vosso amor dadivoso e o vosso conhecimento. Eu vo-lo rogo, e a isso vos conjuro.
Não deixeis a vossa virtude fugir das coisas terrestres e adejar contra paredes eternas. Ai! Tem havido sempre tanta virtude extraviada!
Restituí, como eu, à terra a virtude extraviada. Sim; restituí-a ao corpo e à vida, para que dê à terra o seu sentido, um sentido humano.
A inteligência e a virtude têm-se extraviado e enganado de mil maneiras diferentes. Ainda agora residem no nosso corpo essa loucura e esse engano: tornaram-se corpo e vontade.
A inteligência e a virtude ensaiaram-se e extraviaram-se de mil maneiras diferentes. Sim; o homem era um ensaio. Ai! Quantas ignorâncias e erros se incorporam em nós.
Não só a razão dos milenáríos, mas também a sua loucura aparece em nós. É perigoso ser herdeiro.
Lutamos ainda passo a passo com o gigante azar e na humanidade inteira reinava até aqui a falta de sentido.
Sirvam a vossa inteligência e a vossa virtude no sentido da terra, meus irmãos, e o valor de todas as coisas será renovado por vós. Para isso deveis ser criadores!
O corpo purifica-se pelo saber, eleva-se com o esforço inteligente: todos os instintos do que pensa e conhece se santificam; a alma do que se eleva alvoroça-se.
Médico, ajuda-te a ti mesmo; assim, ajudas também o teu doente. Seja a melhor assistência do doente ver com os seus próprios olhos o que se cura a si mesmo.
Há mil sendas que nunca foram calcadas, mil fontes de saúde e mil terras ocultas na vida. Ainda se não descobriram nem esgotaram o homem nem a terra dos homens.
Vigiai e escutai, solitários! Sopros de adejos secretos chegam do futuro, e a ouvidos apurados chega uma fausta mensagem.
Solitários de hoje, vós, os afastados, sereis um povo algum dia. Vós que vos haveis entrescolhido a vós mesmos, formareis um dia um povo eleito do qual nascerá o Super-Homem.
Em terra, a terra far-se-á um dia um lugar de cura. “Já a envolve um odor novo, um eflúvio de saúde e uma nova esperança”.
                                         
                                                                                           III
Ditas estas palavras, Zaratustra emudeceu, como quem ainda não disse a última palavra. Sopesou demoradamente o bastão, como que perplexo. Por fim falou assim, e a voz havia-se-lhe transformado:
“Agora, meus discípulos, vou-me embora sozinho”! Ide-vos, vós outros, sozinhos também! Assim o quero.
Com toda a sinceridade vos dou este conselho: Afastai-vos de mim e precavei-vos contra Zaratustra! Melhor ainda: envergonhai-vos dele! Talvez vos haja enganado!
O homem que reflexiona não só deve amar os seus inimigos, mas também odiar os seus amigos.
Mal corresponde ao mestre aquele que nunca passa de discípulo. E por que não quereis arrancar a minha coroa?
Venerais-me! Mas, que sucederia se uma vez caísse a vossa veneração? Cuidado, não vos esmague uma estátua!
Dizeis que creis em Zaratustra? Vós sois crentes em mim; mas, que importam todos os crentes?!
Vós ainda vos haveis procurado; encontrastes-me então. Assim fazem todos os crentes: por isso a fé é tão pouca coisa.
Agora vos mando que me percais e vos encontreis a vós mesmos; e só quando todos me houverdes renegado tornarei para vós.
Em verdade, meus irmãos, então buscareis com outros olhos as minhas ovelhas desgarradas; eu vos amarei então com outro amor.
E um dia devereis ser meus amigos e filhos de uma só esperança; então quero estar a vosso lado, pela terceira vez, para festejar convosco o grande meio-dia.
E o grande meio-dia será quando o homem estiver a meio do trajeto, entre a besta e o Super-homem, o célere, como sua esperança suprema, o seu caminho para o ocaso: porque será o caminho para uma nova manhã.
Então o que desaparece se abençoará a si mesmo, a fim de passar para o outro lado, e o sol do seu conhecimento estará no seu meio-dia.
“Todos os deuses morreram; agora viva o Super-homem!” Seja esta, chegado o grande meio-dia, a vossa última vontade!”

Assim falava Zaratustra.

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