sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

QUARTA E ÚLTIMA PARTE: ASSIM FALAVA ZARATUSTRA


“Ai! Onde se fizeram mais loucuras na terra do que entre os compassivos, e que foi que mais prejuízo causou à terra do que a loucura dos compassivos?
— Pobre dos que amam sem que a sua alma esteja acima de sua piedade! Assim me disse um dia o diabo: “Deus também tem o seu inferno: é o seu amor pelos homens”.
— E ultimamente ouvi-lhe dizer estas palavras: “Deus morreu; matou-o a sua piedade pelos homens”. (Dos compassivos)

                                                                                                                                                                                            
                                                                                                                                                                                            ZARATUSTRA 


                                                                               A OFERTA DO MEL

E tornaram a passar meses e anos pela alma de Zaratustra, sem ele dar por isso; mas os cabelos faziam-se-lhe brancos. Estando um dia sentado numa pedra diante da sua caverna, olhando para fora em silêncio, pois daquele ponto se via o mar até muito longe, para o outro lado dos abismos tortuosos, os seus animais, pensativos, andavam em torno dele e acabaram por se lhe pôr em frente.
“Zaratustra — lhe disseram — procuras a tua felicidade com os olhos?” — “Que importa a felicidade”? — respondeu ele — “Há muito tempo que não aspiro já à felicidade; aspiro à minha obra”. — “Zaratustra — replicaram os animais — dizes isso como quem está saturado de bem. Não estás deitado num lago azulado de ventura?”: “Velhacos! — respondeu Zaratustra, sorrindo — como escolhestes bem a parábola! “Também sabeis, porém, que a minha felicidade é pesada, e que não é líquida como a onda: impele-me e não me quer deixar, aderindo-se como pez derretido”.
Os animais tornaram a voltear em torno dele, pensativos, e novamente se lhe postaram defronte. “Zaratustra — disseram — então é isso que explica por que estás tão sombrio e amareleces posto que os teus cabelos aparentam ser brancos? Consomes-te no teu pez!” “Que dizeis — exclamou Zaratustra rindo — Fiz mal em me lembrar do pez (pech, desgraça em sentido figurado). — O que me sucedeu, sucede a todos os frutos que amadurecem. O mel que tenho nas veias é que torna mais espesso o meu sangue e torna mais silenciosa a minha alma”. — “Assim deve ser Zaratustra — afirmaram os animais, encostando-se a ele; — mas, não queres subir hoje a uma alta montanha?
O ar é diáfano, e hoje vê-se o mundo melhor que nunca”. — “Sim, animais meus — respondeu Zaratustra; — aconselhais à maravilha e conformemente ao meu desejo. Quero subir hoje a uma alta montanha! Procurai, porém, que haja mel ao meu alcance, mel de douradas colméias, amarelo, branco e bom, de glacial frescura. “Ficai sabendo que quero já em cima fazer a oferta do mel”.
Quando Zaratustra chegou ao cume, despediu os animais que o haviam acompanhado, e viu que se encontrava só; riu-se então com toda a alma, olhou em redor, e disse assim:
“Falei de oferendas e de ofertas de mel; mas isto não passava de um ardil do meu discurso e uma útil loucura”. Aqui em cima já posso falar mais livremente do que diante dos refúgios dos ermitões e dos animais domésticos dos ermitões.
E falava eu de oferendas e sacrifícios? Eu, que dissipo quando se me dá às mãos cheias, como me atreveria ainda a chamar a isso... sacrifício!
E quando pedi mel o que pedia era uma isca, doce mucilagem de que são gulosos os ursos rosnadores e as aves prodigiosas e altivas.
A melhor isca como a necessitam caçadores e pescadores. Que se o mundo é um como sombrio bosque povoado de animais de delícias de todos os ferozes caçadores, ainda me parece assemelhar-se mais a um mar sem fundo, um mar cheio de peixes e caranguejos que os próprios deuses cobiçariam a ponto de se tornarem pescadores e lançarem suas redes: tão rico é o mundo em prodígios grandes e pequenos!
Principalmente o mundo dos homens; o mar dos homens: a ele lanço eu a minha dourada sedalha, dizendo: “Abre-te, abismo humano”.
Abre-te e traz-me peixes e reluzentes caranguejos! Com a minha maior isca pesco hoje para mim os mais prodigiosos peixes humanos!”
Eu lanço ao longe a minha felicidade, arrojo-a a todas as paragens, entre o Oriente, o Meio-dia e o Ocidente, a ver se não haverá muitos peixes humanos que aprendam a puxar por esta isca.
Até que, mordendo o meu agudo e oculto anzol, tenham que subir à minha altura, até o mais malicioso dos pescadores de homens, os mais vistosos gobiídeos das profundidades.
Porque eu sou, originária e fundamentalmente, força que puxa, que atrai, que levanta, que eleva: um guia, um corretor e educador que não foi em vão que disse a si próprio noutro tempo: “Mostra-te quem és!”
Por conseguinte, subam agora os homens ao meu lado; porque ainda espero os sinais que me digam ter chegado o momento do meu declinar; eu ainda não desapareço dentre os homens.
Por isso, astuto e zombeteiro, espero aqui nas altas montanhas, nem impaciente nem paciente, mas apenas como quem esqueceu a paciência... visto que já não “sofre!”
O meu destino dá-me tempo. Ter-me-á esquecido? Ou entretém-se a caçar moscas, sentado à sombra, por detrás de uma grande pedra?
E, na verdade, estou grato ao meu destino eterno, que me não fustiga nem empurra e me dá tempo para malícias; tanto que hoje trepei a esta alta montanha para apanhar peixes.
Acaso se viu já um homem pescando em altas montanhas? Mas ainda que o que eu quero lá em cima seja uma loucura, vale mais do que se lá em baixo me tornasse solene e me pusesse verde e amarelo à força de esperar; cheio de cólera à força de esperar uma santa tempestade rugidora que viesse da montanha, como um paciente que gritasse aos vales: “Ouvi, ou vos sacudo com o azorrague de Deus!”
Não é que a mim me irritem tais coléricos; unicamente me fazem rir. Compreendo que estejam impacientes esses tambores ruidosos que hão de ter a palavra hoje ou nunca!
Eu e o meu destino, porém, não falamos ao “hoje” e tampouco ao “nunca”; temos paciência para falar, e tempo, muito tempo, para isso. Porque ele há de chegar um dia, e não de passagem.
Quem terá de vir um dia, e não de passagem? O nosso grande acaso: é esse o nosso grande e longínquo Reinado do Homem, o reinado de Zaratustra, que dura mil anos...
Se esse “hoje” está ainda longe, que me importa? Nem por isso é menos sólido para mim... Confiadamente me firmo com os dois pés nesta base: sobre uma base eterna, sobre duas rochas primitivas, sobre estes antigos montes, os mais altos e rijos, de que todos os ventos se aproximam como de um limite meteorológico para se informarem dos pontos de origem e destino.
Ri-te aqui, ri luminosa e saudável malícia minha! Atira das altas montanhas o teu cintilante riso trocista! Atrai com o teu cintilar os mais formosos peixes humanos!
E tudo o que pertencer a mim em todos os mares, tudo o que for meu em todas as coisas, pesca-o para mim, traz-mo aqui acima: é o que espera o pior de todos os pescadores.
Ao longe, ao longe, meu anzol!... Desce, vai ao fundo, isca da minha ventura! Esparge o teu mais doce orvalho, mal do meu coração!
Morde, anzol, no ventre de toda a negra aflição.
Ao longe, ao longe, olhos meus! Quantos mares em torno de mim, quanto futuro humano na aurora! E por cima de mim... que risonho silêncio! Que silêncio sem nuvens!”

                                                                            O GRITO DE ANGÚSTIA

No dia seguinte estava Zaratustra sentado na sua pedra diante da caverna, enquanto os animais andavam à cata de alimento... e de novo mel; porque Zaratustra tinha dissipado até ao fim o mel antigo. Estando ali sentado com um pau na mão, seguindo o contorno da sombra que o seu corpo projetava no solo, meditando profundamente — mas não em si mesmo nem na sua sombra — estremeceu de repente e ficou sobressaltado de terror: porque vira outra sombra ao lado da sua. E levantando-se e voltando-se rapidamente, viu em pé a seu lado o adivinho, o mesmo a quem uma vez dera de comer e beber à sua mesa, o proclamador do grande cansaço, que dizia: “Tudo é igual; nada merece a pena; o mundo não tem sentido; o saber asfixia”.
O semblante, porém, transformara-se-lhe desde então; e Zaratustra temorizou-se de novo, ao ver-lhe os olhos, a tal ponto se lhe lia neles funestas predições.
O adivinho, que logo compreendeu o que agitava a alma de Zaratustra, passou a mão pela face como se quisesse apagar o que havia nela. Zaratustra, por sua parte, fez a mesmo. Quando desta forma serenaram e cobraram ânimo, deram-se as mãos em sinal de que se queriam reconhecer.
“Sê bem-vindo, adivinho da grande lassidão — disse Zaratustra; — não foste em vão meu hóspede e comensal. Come e bebe hoje também na minha morada, e deixa que se sente à tua mesa um velho alegre”. — “Um velho alegre? — respondeu o adivinho, meneando a cabeça. — Quem quer que sejas ou desejes ser, Zaratustra, já o não serás por muito tempo cá em cima; dentro em pouco a tua barca já não estará ao abrigo”. “Acaso estou eu ao abrigo?” perguntou, rindo, Zaratustra. O adivinho respondeu: “Em torno da tua montanha sobem mais e mais as ondas da imensa miséria e da aflição: não tarda a erguer a tua barca e arrastar-te com ela”. Zaratustra calou-se, admirado. — “Não ouves, ainda? — continuou o adivinho. — Não sobe o abismo um zumbido, um rumor surdo?” Zaratustra permaneceu calado e escutou. Ouviu então um grito prolongado, soltado de uns para os outros abismos, pois nenhum deles o queria reter, tão funesto era o seu som.
Sinistro agoureiro, — disse afinal, Zaratustra — isto é um grito de angústia, e grito de um homem; provavelmente sai de um mar negro.
Que me importa, porém, a angústia dos homens! O último pecado que me está reservado... sabes como se chama?” “Compaixão! — respondeu o adivinho, cujo coração transbordava, erguendo as mãos. — Ó! Zaratustra! Venho aqui fazer-te cometer o último pecado!”
Apenas pronunciadas estas palavras, tornou a ressoar o grito, mais prolongado e angustioso do que dantes, e já muito mais próximo.
“Ouves, ouves, Zaratustra? — exclamou o adivinho. — A ti se dirige o grito, é por ti que chama: vem, vem, vem; já é tempo; não há um momento a perder!”
Zaratustra, entretanto, calava-se, perturbado e alterado. Por fim perguntou, como quem hesita interiormente: “E quem me chama lá de baixo?”
“Bem o sabes — respondeu vivamente o adivinho. — Por que te ocultas? É o homem superior que te chama em seu auxílio”.
“O homem superior! — gritou Zaratustra, admirado. — E que quer ele? Que quer o homem superior? O que que quer ele aqui?” E o corpo cobriu-se-lhe de suor.
O adivinho não respondeu à angústia de Zaratustra: escutava e tornava a escutar, inclinado para o abismo. Mas como o silêncio se prolongasse muito olhou para trás e viu Zaratustra de pé e a tremer.
“Zaratustra, — começou a dizer em voz triste: — não aparentes brincar de alegria”. Embora quisesses dançar diante de mim e dar todos os teus saltos, ninguém me poderia dizer: “Olha, aí tens o baile do último homem alegre!”
Em vão subirá a esta altura quem procurar aqui esse homem: encontraria cavernas e grutas, esconderijos para a gente que se precisa ocultar, mas não poços de felicidade nem tesouros, nem novos filões áureos de ventura.
Ventura! — como encontrá-la entre semelhantes sepultados, entre tais eremitas!
Hei de buscar ainda a última felicidade nas Ilhas Bem-aventuradas e ao longe entre esquecidos mares?
Mas tudo é igual, nada merece a pena, são inúteis todas as pesquisas; também já não há Ilhas Bem-aventuradas?”
Assim suspirou o adivinho, mas ao ouvir o seu último suspiro, Zaratustra recuperou a serenidade e presença de espírito, como uma pessoa que regressa à luz saindo de um antro profundo. “Não”! Não! Mil vezes não! — exclamou com voz firme, cofiando a barba.
Isso sei-o eu muito melhor que tu. Ainda há Ilhas Bem-aventuradas! Não digas uma palavra, saco de tristezas!
Cessa de cair, nuvem chuvosa da amanhã! Não me vês já molhado pela tua tristeza e orvalhado como um cão?
Agora sacudo-me e fujo para longe de ti, para me secar: não te admires!
Pareço-te indelicado? Mas a minha corte está aqui!
Pelo que respeita ao teu homem superior, seja! Vou a correr procurá-lo por esses bosques: foi donde partiu o seu grito. Talvez o ameace alguma fera.
Está no meu domínio; não quero que lhe suceda nenhuma desgraça. E, na verdade, no meu domínio há muitas feras!
Dito isto, Zaratustra dispôs-se a partir. Então o adivinho exclamou: “És um velhaco, Zaratustra”!
Bem sei: o que tu queres é livrar-te de mim! Preferes fugir para os bosques a perseguir animais monteses!
De que te servirá isso, porém? “À noite tornarás a encontrar-me: estarei sentado na tua própria caverna, com a paciência e o peso de um madeiro: ali sentado, à tua espera”.
“Pois seja! — exclamou Zaratustra, afastando-se. — E o que me pertence na caverna, pertence-te também a ti, que és meu hóspede.
Se ainda lá encontrares mel, lambe-o todo, urso rabugento, e adoça a tua alma. E à noite estaremos alegres: alegres e contentes por ter terminado este dia! E tu mesmo deves acompanhar os meus cantos com as tuas danças, como se fosse o meu urso amestrado.
Julgas que não? Meneias a cabeça? Vai-te daí, velho urso! Também eu sou adivinho!”
Assim falava Zaratustra.

                      

                                                                    CONVERSAÇÃO COM OS REIS
                                                                                             I
Quase uma hora decorrera desde que Zaratustra andava caminhando pelas suas montanhas e bosques, quando de súbito viu um singular cortejo. Ao centro do caminho que ele queria seguir, adiantavam-se dois reis adornados de coroas e de púrpuras multicores como flamengos; diante deles ia um jumento carregado. “Que querem estes reis no meu reino?” — disso assombrado Zaratustra, e escondeu-se logo atrás de uma moita. Quando os reis estavam muito perto dele, acrescentou a meia voz como se falasse consigo mesmo: “Caso raro! raríssimo! Como compreender isto? Vejo dois reis... e um asno só!”
Nisto os dois reis pararam, sorriram e dirigiram o olhar para o lugar donde partira a voz; depois entreolharam-se: “estas coisas — manifestou o rei da direita — também se pensam lá entre nós, mas não se dizem”.
O rei da esquerda respondeu, encolhendo os ombros: “Deve ser algum cabreiro ou ermitão que tem vivido demais entre brenhas e árvores. Que a absoluta ausência da sociedade também prejudica os bons costumes”. “Os bons costumes! — replicou o outro rei com enfado e amargura. — Pois de que nos queremos nós livrar senão dos “bons costumes” da nossa “boa sociedade?”
Antes viver com ermitões e pastores do que com a nossa plebe dourada, falsa e polida, embora se lhe chame a “boa sociedade”, embora se lhe chame “nobreza”.
Ali tudo é falso e corrompido, a começar pelo sangue, graças a estranhas e malignas enfermidades e a piores curandeiros.
O melhor para mim, e o que hoje prefiro, é um camponês sadio, tosco, astuto, tenaz e resistente: é hoje a espécie mais nobre.
O camponês é hoje o melhor; e a espécie camponesa devia ser soberana. Vivemos, porém, no reinado da populaça; já me não deixo ofuscar. Populaça quer dizer amontoado.
Amontoamento populaceiro: ali tudo está misturado: o santo e o bandido, o fidalgo e o judeu e todos os animais da arca de Noé.
Os bons costumes! Entre nós tudo é falso e corrupto! Já ninguém sabe reverenciar. Disso, justamente, é que nos devemos livrar. São sabujos importunos: douram as palmas.
O desgosto que me sufoca é termo-nos nós mesmos, reis, tornado falsos, e cobrimo-nos e disfarçamo-nos com o passado fausto dos nossos ascendentes: sermos medalhas para os mais tolos e os mais astutos e para todos os que hoje traficam com o poder!
Nós não somos os primeiros e necessitamos aparentar que somos: por fim cansamo-nos e fartamo-nos deste embuste.
Apartamo-nos da canalha, de todos esses moscões que vociferam e esperneiam, do cheiro dos mercieiros, da rixa, da ambição, e do hálito pestilento... Puf! nada de viver entre a canalha! nada de passar pelos primeiros entre a canalha!
Horror! horror! horror! Que valemos já nós outros reis?” “Torna a afligir-te a tua estranha dolência — disse neste ponto o rei da esquerda; — tornam as tuas repugnâncias, pobre irmão! Já
sabes, contudo, que alguém nos escuta”.
Imediatamente Zaratustra, que fora todo olhos e ouvidos, se ergueu do esconderijo e dirigindo-se aos reis começou a dizer:
“Aquele que vos escuta, aquele que gosta de vos escutar, a vós, reis, chama-se Zaratustra”.
Eu sou Zaratustra que um dia disse:
“Que importam já os reis?” Perdoai-me: mas rejubilei quando dissestes um para o outro: “Que valemos já nós outros, reis?”
Aqui, porém, estais no meu reino e sob o meu domínio: que podeis procurar no meu reino? “Talvez, contudo encontrásseis no caminho o que eu procuro: eu procuro o homem superior”.
Ao ouvir isto os reis bateram no peito e disseram ao mesmo tempo: “Conheceste-nos”.
Com a espada dessa palavra cortas a mais profunda obscuridade dos nossos corações. Descobristes a nossa angústia; porque, olha, nós vamos em busca do homem superior — o homem superior a nós outros, conquanto sejamos reis. — Para ele trazemos este jumento. Que o  homem mais alto deve ser também na terra o mais alto senhor.
Não há calamidade mais dura em todos os destinos humanos do que quando os poderosos da terra não são ao mesmo tempo os primeiros homens. Então tudo se torna falso e monstruoso, tudo anda ao invés.
E quando são os últimos, e antes animais do que homens, então sobe de preço a populaça, e pela continuação acaba por dizer: “Já vedes: só eu sou virtude!”
— “Que ouço”?! — respondeu Zaratustra. — Que sabedoria em reis! Estou entusiasmado e já me apetece fazer sobre isto uns versos — talvez sejam uns versos que não possam servir para os ouvidos de toda a gente. — Já há muito que esqueci as considerações com as orelhas compridas. Vamos! Adiante!
(Mas nesse momento também o asno tomou a palavra: disse claramente e com mau intuito: I. A.).
Noutros tempos — creio que no ano um — disse Ébria a Sibila (sem ter provado vinho):
“Ai isto vai mal”!
“Decadência”! Decadência! Nunca o mundo caiu tão baixo!
“Roma degenerou em rameira e habitação de rameiras”.
“O César de Roma degenerou em besta; até Deus tornou-se judeu!”
                                                  
                                                                                               II
Os reis deleitaram-se com os versos de Zaratustra, e o da direita disse: “Zaratustra, como fizemos bem em nos pormos a caminho para te ver”!
Que os teus inimigos mostraram-nos a tua imagem num espelho: vimos a estampa de um demônio de riso sarcástico: de forma que nos amedrontaste.
De que servia, porém? Sempre tomavas a penetrar com as tuas máximas nos nossos ouvidos e nos nossos corações. De forma que acabamos por dizer: que nos importa a cara dele?
É preciso ouvir aquele que ensina: “Deveis amar a paz como meios de novas guerras, e a breve paz mais do que a prolongada!”
Nunca ninguém pronunciou tão guerreiras palavras: “Que é que é bom”? Bom é ser valente. A boa guerra santifica todas as coisas.
Ó! Zaratustra! A estas palavras ferveu nos nossos corpos o sangue dos nossos pais: foram como as palavras da primavera a tonéis de vinhos.
Quando as espadas se cruzavam como serpentes tintas de vermelho, os nossos pais amavam a vida; o sol da paz parecia-lhes brando e tíbio, mas a paz prolongada envergonhava-os.
Como os nossos pais suspiravam quando viam na parede espadas lustrosas e enxutas! Tinham sede de guerra, à semelhança dessas espadas. “Que uma espada quer beber sangue e cintila com o seu ardente desejo”.
Quando os reis falaram tão calorosamente da felicidade de seus pais, Zaratustra sentiu grandes tentações de zombar daquele ardor: porque evidentemente eram reis muito pacíficos os que via diante de si, com seus velhos e finos semblantes. Dominou-se, porém. “Vamos! A caminho! — disse — Estais no caminho; lá em cima encontra-se a caverna de Zaratustra; e este dia deve ter uma grande tarde. Agora, porém, chama-me para longe de vós um grito de angústia.
A minha caverna ficará honrada se nela se sentarem reis e se dignarem esperar; verdade é que tereis que esperar muito!
Que importa? Onde se aprende hoje a esperar melhor do que nas cortes? E toda a virtude dos reis, a única que conservaram, não se chama saber esperar?”
Assim falava Zaratustra.

                                                                             A SANGUESSUGA

Zaratustra continuou pensativo o seu caminho, descendo cada vez mais, atravessando bosques e passando por diante de lagoas; mas, como sucede a todos que meditam em coisas difíceis, pisou por equívoco um homem. Logo troaram aos seus ouvidos um grito de dor, duas pragas, e vinte injúrias terríveis; assustado, ergueu o bordão e bateu outra vez à pessoa pisada. No mesmo instante, porém, caiu em si, e no seu íntimo pôs-se a rir da loucura que perpetrara.
“Desculpa-me — disse ao homem que havia pisado, o qual se acabava de erguer colérico, para se tornar a sentar em seguida; — desculpa-me e ouve primeiro uma parábola.
Assim como um viandante, que sonha em coisas longínquas por um caminho solitário, tropeça por descuido com um cão que dormita, com um cão deitado ao sol, e ambos se erguem e se encaram repentinamente como mortais inimigos, mortalmente assustados, assim nos sucedeu a nós.
E, todavia... todavia... como faltou pouco para esse solitário e esse cão se afagarem! Não serão ambos solitários!”
“Quem quer que sejas — respondeu enfadado o pisado — ainda te aproximas muito de mim, não só com o pé, como com a tua parábola”.
Olha para mim: acaso serei algum cão?” E dizendo isto ergueu-se, tirando do pântano o braço nu. Que ao princípio estava caído ao comprido, oculto e impossível de conhecer, com quem espreita a caça dos pântanos.
“Mas que estás fazendo”? — exclamava Zaratustra assustado, porque lhe via correr muito sangue do braço nu. — Que te sucedeu?
Mordeu-te algum bicho ruim, infeliz?”
O que sangrava ria, ainda cheio de cólera. “Que tens que ver com isto”? — exclamou, querendo prosseguir o caminho. — Estou aqui nos meus domínios. Interrogue-me quem quiser, pois a um nécio é que eu não responderei!”
“Enganas-te — disse Zaratustra, retendo-o, cheio de compaixão — enganas-te: aqui não estás no teu reino, mas no meu, e aqui não deve suceder a ninguém desgraça alguma”.
Chama-me sempre o que quiseres — eu sou o que devo ser. — A mim mesmo me chamo Zaratustra.
— Vamos! Lá em cima é o caminho que conduz à caverna de Zaratustra: não está muito longe.
Não queres vir ao meu albergue para curar as feridas?
Não foste feliz neste mundo, desditoso: primeiro mordeu-te o bicho; depois... pisou-te o homem!...”
Quando o homem ouviu, porém, o nome de Zaratustra, transformou-se. “Que me sucedeu? — exclamou. — Quem é que me preocupa ainda na vida senão este homem único, Zaratustra, é o único animal que bebe sangue, a sanguessuga?
Por causa da sanguessuga estava eu ali estendido, à beira do pântano, como um pescador; e já o meu braço estendido fora mordido dez vezes, quando se me pôs a morder o sangue outra sanguessuga mais bela, o próprio Zaratustra.
Ó! ventura! ó! portento! Bendito seja este dia que me trouxe a este pântano! Bendita seja a melhor ventura, a mais forte que vive hoje!
Bendita seja a grande sanguessuga das consciências, Zaratustra!”
Assim falava o pisado, e Zaratustra rejubilou com as suas palavras e com a sua aparência fina e respeitosa. E, estendendo-lhe a mão, perguntou: “Quem és? Entre nós ficam muitas coisas por esclarecer e desabafar, mas já me parece nascer o dia puro e luminoso.”
“Eu sou o espírito consciencioso — respondeu o interrogado; e nas coisas do espírito é difícil alguém conduzir-se de forma mais rigorosa do que eu, exceto aquele de quem a aprendi, o próprio Zaratustra”.
Antes não saber nada do que saber muitas coisas por metade! Antes ser louco por seu próprio critério, que sábio segundo a opinião dos outros! Eu por mim, vou ao fundo.
Que importa que seja pequeno ou grande, que se chame pântano ou céu? Um pedaço de terra do tamanho da mão me basta, contanto que seja verdadeiramente terra e solo!
Num pedaço de terra do tamanho da mão, pode uma pessoa ter-se de pé. “No verdadeiro saber consciencioso nada há grande nem pequeno”.
“Então és talvez aquele que procura conhecer a sanguessuga”? — perguntou Zaratustra.
Tu, o consciencioso, escutas a sanguessuga em busca dos seus últimos fundamentos?”
“Ó Zaratustra”! — respondeu o pisado: — Isto seria uma monstruosidade! Como me atreveria a intentar semelhante coisa?
O que eu domino e conheço é o cérebro da sanguessuga: é esse o meu universo!
E é também um universo! Perdoa, porém, revelar-se-me aqui o orgulho, porque nesse domínio não tenho semelhante. Por isso disse: “É este o meu domínio”.
Há quanto tempo persigo esta coisa única, o cérebro da sanguessuga, para que me não escape mais a verdade fugidia. É este o meu reino!
Por isso pus de lado tudo o mais; por isso, tudo o mais se me tornou indiferente; e contígua à minha ciência estende-se a minha negra ignorância.
A minha consciência intelectual exige-me que saiba uma coisa e ignore o restante: estou farto de todas as meia-inteligências, de todos os nebulosos, flutuantes e visionários.
Onde cessa a minha probidade sou cego e quero ser cego. Onde quero saber, todavia, também quero ser probo, isto é, duro, severo, estreito, cruel, implacável.
O que tu dissestes um dia, Zaratustra, “que a inteligência é a vida que esclarifica a própria vida” foi o que me conduziu e me atraiu à tua doutrina. “E, na verdade, com o meu próprio sangue acrescentei a minha própria ciência.”
“Como salta à vista”, interrompeu Zaratustra; e o sangue continuava a correr do braço nu do consciencioso, porque se lhe tinham agarrado dez sanguessugas.
“Singular personagem, que ensinamento me dá este espetáculo, quer dizer, tu mesmo”!
Eu talvez me não atrevesse a insinuar tudo isso nos teus rigorosos ouvidos.
Vamos! Separemo-nos aqui! Agradar-me-ia, porém, tornar a encontrar-te. Ali em cima está o caminho que conduz à minha caverna.
Lá deves ser esta noite bem-vindo entre os meus hóspedes.
Quereria também reparar, no teu corpo, o haver sido pisado por Zaratustra; nisso penso. “Chama-me, porém, para longe de ti um grito de angústia”.
Assim falava Zaratustra.

                                                                                 O ENCANTADOR

Na volta de umas penhas, Zaratustra viu perto de si e na parte baixa do caminho um homem que acenava como doido furioso e que acabou por se precipitar de bruços no solo. “Alto! — disse então Zaratustra consigo. — Deve ser este o homem superior; dele procedia aquele sinistro grito de angústia. Quero ver se o posso socorrer”.
Quando chegou, porém, ao sítio em que o homem estava deitado, deparou com um velho trêmulo de olhar fixo; e apesar de todas as tentativas de Zaratustra para o levantar, foram vãos os seus esforços. O infeliz parecia não notar que estivesse alguém junto de si; pelo contrário, não cessava de olhar para um e outro lado, fazendo gestos comovedores, como quem se vê abandonado, e apartado do mundo inteiro. Afinal, depois de muitas tremuras, sobressaltos e contorsões, começou a lamentar-se desta forma:
“Quem me dá calor? Quem me ama ainda? Vinde, mãos quentes! Vinde, corações ardentes!
“Caído, a tremer, como um moribundo cujos pés são aquecidos, estremecido, ai”! por ignoradas febres, tiritando ante as aceradas flechas da geada, acossado por ti, pensamento! Inefável! Oculto! Espantoso! Caçador escondido por detrás das nuvens!
Ferido por ti, olho zombeteiro que me contemplas na escuridão! — Assim jazo, me curvo, me contorço, atormentado por todos os mártires eternos, ferido por ti, crudelíssimo, caçador, Deus desconhecido...
“Fere mais profundamente”! Fere outra vez! Trespassa, arranca este coração! Para que é este martírio com setas rebotadas? Que olhas ainda, não cansado de humanos tormentos, com esses olhos maliciosos de fulgores divinos?
“Não queres matar, mas martirizar, martirizar somente”? Para que martirizar-me a mim, Deus maldoso, Deus incógnito?
“Ah”! Aproximas-te rastejando em semelhante noite? Que queres? Fala! Persegues-me e cercas-me. Aproxima-te demais! Ouves-me respirar, espreitas o meu coração, ciumento! Mas, de quem tens ciúmes? Deixa-me, afasta-te daí! Para que é essa escada? Queres penetrar no meu coração, penetrar os meus mais secretos pensamentos! Insolente! Desconhecido! Ladrão! Que queres roubar? Que queres ouvir?
Que te propõe arrancar com as tuas torturas, Deus verdugo? Ou terei de me arrastar na tua presença como um cão, entregando-te o meu amor, acorrentado e fora de mim?
“Em vão”! Punge de novo, crudelíssimo aguilhão?
“Eu não sou um cão”! apenas sou tua presa, caçador cruel entre os cruéis! O teu mais altivo prisioneiro, salteador, oculto atrás das nuvens!
“Fale de uma vez o que se esconde detrás dos relâmpagos”! Fale o incógnito! Que queres de mim, postado aí à espreita no caminho?
“Que”? Um resgate? Que queres de resgate?
“Pede muito — assim o aconselha o meu orgulho”! — E fala pouco — aconselha-to o meu outro orgulho!
“Ah”! A mim mesmo é que tu queres? A mim? A mim todo?
“Ah”! E martirizas-me, insensato! E torturas-me o orgulho? Dá-me o amor, — quem me aquece ainda? Quem me tem amor ainda? Dá-me mãos quentes, dá-me corações ardentes, dá-te tu, crudelíssimo inimigo; sim, entrega-te a mim, ao mais solitário, a quem o gelo faz suspirar sete vezes até pelos mesmos inimigos...
“Foi-se”. Até ele fugiu, o meu único companheiro, o meu grande inimigo, o meu desconhecido, o meu Deus verdugo! “Não! Torna! Torna com os teus suplícios!
“Torna ao último dos solitários”! Tôdas as minhas lágrimas correm em tua procura! E por ti desperta a derradeira chama do meu coração! Ó! torna, Deus incógnito! Minha dor! Última ventura minha!”
                                            II
Neste ponto, porém, Zaratustra não se pôde conter mais tempo, agarrou no bordão e deu com todas as forças no que se lastimava.
“Detém-te”! — gritou-lhe com riso colérico — detém-te, histrião, falso moedeiro! Inveterado embusteiro! Bem te conheço!
Hei de te largar fogo às pernas, sinistro encantador; sei muito bem haver-me com os da tua ralé!”
“Pára’’! — disse o velho, erguendo-se de repente. — Não me batas mais, Zaratustra!
Tudo isto não passou de um gracejo forte!
Estas coisas participam da minha arte: quis pôr-te à prova a ti mesmo, apresentando-te esta prova. E, verdade é que me penetraste bem os pensamentos!
Mas também... não é pequena a prova que te impuseste a ti mesmo. És rigoroso, sábio Zaratustra! Feres duramente com as tuas
“verdades”; o teu nodoso bordão obriga-me a confessar... esta verdade!”
“Não me adules, histrião”! — respondeu Zaratustra, sempre irritado e com semblante sombrio. — És falso; para que falas... de verdade?
Pavão, oceano de vaidade, que é que tu representavas diante de mim, sinistro encantador? Em quem devia eu crer quando te lamentavas assim?”
“Eu” representava o redentor do espírito — disse o velho: tu mesmo inventaste noutro tempo esta expressão: — o poeta e o encantador que acaba por tornar o espírito contra si mesmo, o transformado, aquele a quem gelam a sua falsa ciência e a sua má consciência.
E, confessa francamente, Zaratustra: demoraste-te a descobrir os meus artifícios e mentiras! Acreditavas na minha miséria, quando me amparavas a cabeça; ouvi-te gemer: “Amaram-no pouco, muito pouco!” “Haver-te enganado a tal ponto era o que intimamente me regozijava a maldade”.
Zaratustra respondeu com dureza:
“A outros mais finos do que eu deves ter enganado”. Eu não estou em guarda contra os enganadores; não tenho que tomar precauções: assim o quer a minha sorte.
Tu, porém... tens que enganar: conheço-te de sobra para o saber. As tuas palavras hão de ter sempre duplo, triplo, quádruplo sentido.
O que me confessaste não era bastante verdadeiro nem bastante falso para mim.
Vil moedeiro falso, como havias de fazer outra coisa? Até a tua enfermidade encobririas, se te apresentasses nu ante o médico.
E acabavas de dourar a tua mentira diante de mim quando disseste: “o fiz por gracejo!” Também nisso havia seriedade; tu és até certo ponto como um redentor do espírito.
Sei perfeitamente calar-te: fizeste-te de encantador de toda a gente; mas, quanto a ti, já te não resta mentira nem astúcia; no que te diz respeito estás desencantado.
Alcançaste a desilusão como única verdade. “Nenhuma palavra é já verdadeira em ti, a não ser a desilusão pegada à tua boca”.
“Mas quem és tu”? — exclamou o velho, já agora com voz altaneira. — Quem tem o direito de me falar assim, a mim, que sou o maior dos viventes de hoje?” E os olhos faiscaram-lhe ao encarar Zaratustra. — No mesmo instante, porém, se transformou e disse com tristeza:
“Zaratustra, estou farto; cansam-me as minhas artes; eu não sou grande! Para que fingir? Mas tu bem o sabes: procurei a grandeza.
Eu queria simular de grande homem, e a muita gente convenci; mas esta mentira foi superior às minhas forças.
Zaratustra, em mim tudo é mentira; mas que sucumbo... isto é positivo!”
“Honra-te — respondeu Zaratustra, sombrio e desviando o olhar para o chão — honra-te o teres procurado a grandeza, mas deprimete também”. Tu não és grande.
Sinistro encantador, o melhor e mais honroso para ti é teres-te enfastiado de ti mesmo e haveres exclamado: “Não sou grande”.
Em atenção a isso, honro-te como um redentor do espirito: conquanto fosse por um instante, nesse instante foste verídico.
Diz-me, porém; que procuras tu aqui nos meus bosques e entre as minhas brenhas? E se te havias atravessado no meu caminho para me espreitar, que prova querias de mim?
Em que me querias tentar?”
Assim falava Zaratustra, e os olhos faiscavam-lhe. O velho encantador fez uma pausa e disse depois: “Acaso te tentei”? Eu não faço mais do que... procurar.
Zaratustra, eu procuro alguém que seja sincero, reto, simples, alheio ao fingimento, um homem de toda a probidade, um vaso de sabedoria, um santo de conhecimento, um grande homem!
Porventura o ignoras, Zaratustra? Procuro Zaratustra!”
Então fez-se um silêncio entre os dois. Zaratustra, concentrando-se profundamente, cerrou os olhos; depois, virando-se para o encantador pegou-lhe na mão, disse-lhe delicada e astuciosamente:
“Está bem”! Ali em cima encontra-se o caminho que conduz à caverna de Zaratustra. Na minha caverna podes procurar o que desejas encontrar.
E aconselha-te com os meus animais, a minha águia e a minha serpente: eles te ajudarão a procurar. A minha caverna é grande,  contudo.
Verdade é que eu próprio... ainda não vi nenhum grande homem. Para o grande, ainda o olho do mais lince é demasiado grosseiro. Este
é o reinado da populaça.
Já tenho visto tantos esticarem e inflarem enquanto o povo gritava: “Vede: este é um grande homem!” Mas, para que servem os foles?
Deles apenas sai vento.
O sapo que incha demasiado acaba rebentando. Furar o ventre de um inchado é uma honesta distração. Ouvi isto, meus filhos!
O nosso hoje pertence à populaça: quem pode saber ainda o que é grande ou pequeno?
Quem procuraria ainda com êxito a grandeza? Um louco, quando muito; e os loucos são afortunados.
Procuras os grandes homens, estranho louco! Quem te ensinou tal coisa? Será hoje tempo oportuno para isso? Ó! Malicioso investigador! Porque me tentas?”
Assim falava Zaratustra, com o coração consolado; e rindo, prosseguiu o seu caminho.

                                                                             FORA DE SERVIÇO
Pouco depois de se livrar do encantador, Zaratustra viu outra pessoa
 sentada à beira do caminho que ele seguia, um homem alto e escuro, de semblante pálido e afilado; este contrariou-se extraordinariamente. “Mal vai! — disse consigo: — vejo aflição mascarada, que parece coisa de sacerdotes. Que querem estes no meu reino?
Que! Mal me livrei daquele encantador e já passa pelo meu caminho outro nigromante, um mago que impõe as mãos, um sombrio milagreiro por amor de Deus, um compungido difamador do mundo: leve-o o demônio!
O demônio, porém, nunca se acha onde devia; sempre chega tarde esse maldito anão, esse pateta!”
Assim praguejava Zaratustra, impaciente e pensando na maneira de passar diante do homem negro olhando para outro lado. As coisas, porém, sucederam doutra forma: porque no mesmo instante o viu aquele que estava sentado; e como quem tem uma sorte inesperada, pôs-se de pé de um salto e encaminhou-se para Zaratustra.
“Quem quer que sejas — disse — viajante errante, auxilia um extraviado a quem poderia suceder alguma desgraça!
Isto aqui é para mim um mundo estranho e longínquo; também ouvi rugidos de feras; e quem poderia dar-me guarida, já não existe.
“Procurei o último homem piedoso, um santo e um ermitão, único que no seu bosque ainda não ouvira dizer o que toda a gente hoje sabe”.
Que é que toda a gente sabe hoje”? — perguntou Zaratustra. — Talvez já não esteja vivo o Deus antigo, o Deus em quem dantes acreditava toda a gente?”
“Assim o dizes — respondeu tristemente o velho”. — E eu servi esse Deus antigo até à sua última hora.
Agora, porém, estou fora de serviço; encontro-me sem amo, e, apesar disso, não sou livre; por isso só me comprazo nas minhas recordações.
Por isso subi a estas montanhas, para tornar a celebrar aqui uma festa, como convém a um antigo Papa e padre da Igreja, — porque fica sabendo que sou o último Papa! — uma festa e piedosa lembrança e culto a Deus.
Mas agora morreu o mais piedoso dos homens, esse santo do bosque que continuamente louvava Deus com cantos e preces.
Já o não encontrei quando descobri a choça; mas vi lá dois lobos que uivavam por causa da sua morte — porque todos os animais o queriam. — Ao ver aqui fugi.
Vim, depois, debalde a estes bosques e a estas montanhas! Por conseqüência o meu coração decidiu-se a procurar outro, o mais piedoso de todos os que não acreditam em Deus: Zaratustra!”
Assim falou o velho, e fixou um olhar penetrante no que estava de pé diante dele. Zaratustra pegou na mão do antigo Papa e contemplou-a largo tempo com admiração.
“Olha, então, venerando — disse-lhe logo — que mão estendida tão bela”! É a mão de quem deu sempre a bênção. Agora, porém, estreita aquele a que tu procuras, a mim, Zaratustra.
Eu sou Zaratustra, o ímpio que diz: “Quem há mais impio do que eu, para me regozijar com o seu ensinamento?”
Assim falava Zaratustra, penetrando com o seu olhar nos pensamentos mais íntimos do velho Papa. Por fim este principiou a dizer:
“Aquele que mais o amava e o possuía foi também o que mais o perdeu”.
Olha: creio que agora o mais ímpio de nós sou eu. Mas que se poderia regozijar disso?”
“Serviste-o até o fim”? — perguntou Zaratustra pensativo, depois de longo e profundo silêncio.
Sabes como morreu? É certo o que se diz, que o asfixiou a compaixão? O ver o homem suspenso na cruz e não poder suportar que o amor pelos homens viesse a ser o seu inferno e afinal a sua morte?
O antigo Papa não respondeu, mas olhou de soslaio com espanto e expressão dolorosa e sombria.
“Deixa-o ir — acrescentou Zaratustra, depois de longa reflexão, cravando sempre os seus olhos nos do velho”.
Deixa-o ir; — findou. “E embora te honre dizer só bem desse morto, tu sabes como eu quem ele era, e que seguia caminhos singulares”.
Aqui — de três olhos — disse tranqüilizado o Papa, que de um olho era cego — estou mais ao corrente das coisas de Deus que o próprio Zaratustra, e tenho direito de o estar.
Longos anos o serviu o meu amor, a minha vontade seguia a sua por toda parte. Um bom servidor, porém, sabe tudo e até certas coisas que o seu senhor oculta a si mesmo.
Era um Deus oculto, cheio de mistérios. Nem sequer alcançou um filho, senão por caminhos escusados. Às portas da sua crença encontra-se o adultério.
O que o louva como Deus do amor, não forma juízo bastante elevado do amor em si.
Esse Deus não queria ser juiz também? Pois o que ama, ama acima do castigo e da recompensa.
Quando moço, esse Deus do Oriente era ríspido e estava sedento de vingança: criou um inferno para deleite dos seus prediletos.
Por fim fez-se velho e brando e terno e compassivo, assemelhando-se mais a um avô do que a um pai, e até mais a uma avó decrépita.
“Para ali estava murcho, sentado ao calor do lume, preocupado com a fraqueza das pernas, cansado do mundo, cansado de querer, e um dia acabou por se afogar em excessiva piedade”.
“Antigo Papa — interrompeu Zaratustra — viste isso com os teus próprios olhos”? Pode muito bem ter sido assim; assim e também doutra maneira. Quando os deuses morrem, é sempre de várias espécies de mortes.
Mas desta ou doutra maneira, desta ou daquela, já não existe! Era contrário ao gosto dos meus olhos e dos meus ouvidos: eu nada pior queria imputar-lhe.
A mim agrada-me tudo o que tem o olhar claro e fala francamente. Ele, porém, bem o sabes antigo sacerdote, tinha qualquer coisa da tua raça, dos sacerdotes: era contraditório.
Também era confuso. Quanto nos não lançou em cara esse colérico, por má compreensão!
Mas por que não falava ele mais claro?
E se a culpa era de nossos ouvidos, para que nos deu ouvidos que o ouvissem mal? Se nos nossos ouvidos havia lama, quem no-la pôs lá?
Saíram mal demasiadas coisas a esse oleiro que não concluirá a aprendizagem. Mas vingava-se nos seus cacos e nas suas vasilhas porque lhe tinham saído más, foi um pecado contra o bom gosto.
Também há um bom gosto na piedade; esse bom gosto acabou por dizer: “Levai-nos tal deus! Vale mais não ter nenhum, vale cada qual criar os destinos ao seu capricho, vale mais ser doido, vale mais ser deus uma pessoa mesma!”
“Que ouço”? — disse neste ponto o Papa, apurando o ouvido. — Zaratustra com essa incredulidade é mais piedoso do que julgas. Deve ter havido algum deus que te converteu à tua impiedade.
Não é a tua própria impiedade que te impede de crer em um Deus? E a tua excessiva lealdade ainda te há de conduzir mais além do bem e do mal.
Vês o que te está reservado! Tens olhos, mão e boca que estão predestinados a abençoar toda a eternidade. Não se abençoa só com a mão.
A teu lado, embora queiras ser o mais ímpio, percebe-se um secreto aroma de dilatadas bênçãos, um odor benéfico e ao mesmo tempo doloroso para mim.
Permite-me ser teu hóspede uma só noite, Zaratustra! Em nenhuma parte da terra me sentirei melhor que a teu lado!” “Amém! — Assim seja! — exclamou Zaratustra, admiradíssimo. — Ali em cima está o caminho que conduz à caverna de Zaratustra.
Venerando, de boa vontade te levaria eu mesmo porque estimo todos os homens piedosos. Agora, porém, chama-me para longe de ti um grito de angústia.
Nos meus domínios não deve suceder nada mau a ninguém: a minha caverna é um bom porto. E eu quereria, sobretudo, pôr em terra firme e com o pé direito todos os tristes.
Quem poderá, contudo, arrancar-te dos ombros essa melancolia? Eu sou demasiado débil para isso. Na verdade muito teríamos que esperar para que alguém ressuscitasse o teu deus.
“Que esse Deus antigo já não é vivo; está morto e bem morto”.
Assim falava Zaratustra.

                                                                             O HOMEM MAIS FEIO

E Zaratustra continuou a correr pelas montanhas e pelas selvas, e os seus olhos esquadrinhavam sem cessar; mas em nenhuma parte via aquele que queria ver, o que clamava por socorro, atormentado por profunda angústia. Caminhava, todavia, muito satisfeito e cheio de gratidão. “Que boas coisas — disse — este dia me tem dado, para me indenizar de o ter começado tão mal! Que singulares interlocutores encontrei!
“Hei de ruminar muito tempo as suas palavras como se fossem bons grãos; os meus dentes devem triturá-las e moê-las muitas vezes, até me correrem pela alma como leite.”
Mas quando deu volta a outro penhasco do caminho, mudou de súbito a paisagem, e Zaratustra entrou no reino da Morte. Surgiam ali negros e vermelhos penhascos, e não havia erva, árvores, nem canto de pássaros. Que era um vale que todos os animais desprezavam, até as feras; só uma espécie muito feia de grandes cobras verdes ia ali morar, quando envelhecia. Por isso os pastores chamavam aquele vale
“Morte das serpentes”.
Zaratustra abismou-se em negras recordações, porque lhe parecia ter-se já encontrado naquele vale. E preocuparam-lhe o espirito coisas tão pesadas que foi demorando, demorando o passo até que acabou por parar e fechar os olhos.
Quando os abriu, viu qualquer coisa sentada à beira do caminho, qualquer coisa onde com muito trabalho se reconheceria a forma de um homem, qualquer coisa inexprimível. E Zaratustra sentiu enorme vergonha de seus olhos terem visto semelhante coisa. Ruborizando-se até à raiz dos cabelos, afastou os olhos e ergueu o pé para se retirar daquele sítio nefasto. Mas então se povoou de ruídos o tétrico deserto: porque se elevou do solo um gorgolejo como o que faz a água de noite em campos tapados; esse ruído acabou por se tornar voz humana e humana palavra. A voz dizia: “Zaratustra”! Zaratustra! Adivinha o meu enigma! Fala! Qual é a vingança contra a testemunha?
Eu atraio-te para trás; aqui há gelo resvaladiço. Cuidado, cuidado, não se te quebrem as pernas de orgulho!
Julgas-te sábio, orgulhoso Zaratustra!
Pois adivinha o enigma, adivinha o enigma que eu sou. Fala pois: quem sou eu?”
Mas quando Zaratustra ouviu estas palavras, que pensais se lhe passou na alma?
Viu-se dominado pela compaixão, e abateu-se de súbito como um carvalho que, depois de resistir muito tempo aos lenhadores, cai de repente e pesadamente com espanto dos próprios que queriam abatê-lo. Logo, porém, se ergueu do solo e o semblante tornou-se-lhe duro.
“Conheço-te bem — disse com voz de bronze: — és o assassino de Deus. Deixa-me ir embora.
Não suportaste aquele que te via sempre e até ao mais íntimo teu, mais feio dos homens! Vingaste-te dessa testemunha!”
Assim falava Zaratustra, e quis ir-se embora; mas o inexprimível segurou-o pela roupa e começou a gorgolejar de novo e a procurar as suas expressões: “Detém-te!” disse por fim.
“Detém-te”! Não passes de largo! Compreendi qual foi o machado que te derrubou!
Glória a ti, Zaratustra, que estás outra vez de pé!
Adivinhaste — sei-o perfeitamente — quais eram os sentimentos do que matou Deus — do assassino de Deus — Fica. Senta-te aqui ao meu lado; não será em vão.
A quem queria eu encontrar senão a ti? Fica e senta-te. Mas não olhes para mim. Respeita assim... a minha fealdade!
Perseguem-me: agora tu és o meu último refugio. Não é que me persigam com o seu ódio ou seus esbirros. Ó! Zombaria então de tais perseguições! Estaria orgulhoso e satisfeito.
Todo o triunfo não tem sido até aqui dos que foram bem perseguidos?
E o que persegue bem facilmente aprende a seguir — não vai já... atrás?
Trata-se, porém, da sua compaixão...
Da compaixão deles é que eu fujo ao vir-me refugiar em ti. Defende-me, Zaratustra, último refúgio meu, único ser que me adivinhou.
Adivinhaste os sentimentos daquele que matou Deus.
Fica! E se és tão impaciente que te queiras ir embora, não tomes o caminho por onde eu vim. Esse  caminho é mau.
Tens-me rancor porque há muito tempo que te falo imprudentemente? Porque te dou conselhos? Fica sabendo que eu, o mais feio dos homens, sou também o que tem o pé maior e mais pesado. Todo o caminho que pisei se tornou mau. Eu esmago e destruo os caminhos todos.
Bem vi, porém, que passavas por diante de mim em silêncio, e que te envergonhavas: nisso conheci Zaratustra.
Outro qualquer atirar-me-ia uma esmola, a sua compaixão com o olhar e a palavra. Eu, porém, não sou bastante mendigo para isso: adivinhaste.
Eu sou demasiado rico para isso, rico em coisas grandes, e formidáveis, as mais feias e inexprimíveis! A tua vergonha honra-me,
Zaratustra!
Difícil me foi sair da multidão dos compassivos para encontrar o único que ensina hoje que “a compaixão é importuna” — para te encontrar a ti, Zaratustra.
Seja piedade de um Deus ou piedade dos homens, a compaixão é contrária ao pudor. E não querer auxiliar pode ser mais nobre do que essa virtude que assalta pressurosa e solícita.
Mas a isso mesmo é que toda a gente pequena chama hoje virtude, a compaixão; tal gente não guarda respeito à grande desgraça, nem à grande felicidade, nem à grande queda.
Deito o meu olhar por cima dos pequenos, como o de um cão por cima dos buliçosos rebanhos de ovelhas. É gentinha de boa vontade, parda e peluda.
Tempo demais se deu razão a essa gentinha, e assim se acabou por se lhes dar igualmente o poder. Agora pregam: “Só o que a gentinha acha bom, é que é bom”.
E hoje chama-se “verdade” ao que dizia o pregador, que saiu das fileiras dessa gente, aquele santo raro, aquele advogado dos pequenos que afirmava por si só “eu sou a verdade”.
E aquele homem imodesto que ao dizer “eu sou a verdade”, pregou um erro mais que mediano, foi a causa de se pavonearem há muito as pessoas pequeninas.
Acaso se respondeu alguma vez mais cortesmente a uma pessoa falha de modéstia?
E tu, Zaratustra, todavia, passaste por diante dele dizendo: “Não! Não! Mil vezes não!”
Tu deste a voz de alarme contra o seu erro; foste o primeiro a dar a voz de alarme contra a compaixão; não a todos, nem a nenhum, mas a ti e à tua espécie.
Envergonhas-te da vergonha dos grandes sofrimentos: e quando dizes: “Da compaixão vem uma grande nuvem, alerta humanos”. E quando ensinas: “Todos os criadores são duros, todo o grande amor está por cima da sua compaixão”, parece-me conheceres bem os sinais do tempo, Zaratustra!
Mas tu mesmo... livra-te também da tua própria piedade. Que há muitos que se encaminham para ti, muito dos que sofrem, dos que duvidam, dos que desesperam, dos que se afogam e gelam...
Ponho-te também em guarda contra mim. Adivinhas o meu melhor e o meu pior enigma, adivinhaste-me a mim mesmo e o que tenho feito. Conheço o machado que te derruba.
Foi preciso, contudo, ele morrer: via com olhos que tudo viam; via as profundidades e os abismos do homem, toda a sua oculta ignomínia e fealdade.
A sua compaixão não conhecia a vergonha; introduzia-se-me nos mais sórdidos recantos. Foi mister morrer o mais curioso, o mais importuno, o mais compassivo.
Sempre me via; quis vingar-me de tal testemunha ou deixar de viver.
O Deus que via tudo, até o homem, esse Deus devia morrer! “O homem não suporta a vida de semelhante testemunha”.
Assim falava o homem mais feio. E Zaratustra levantou-se e dispôs-se a partir, porque estava gelado até à medula, e disse:
“Tu, inexprimível, puseste-me em guarda contra o teu caminho”. Para te recompensar recomendo-te o meu. Olha: ali em cima fica a caverna de Zaratustra.
A minha caverna é grande e profunda e tem muitos recantos; o mais escondido encontra lá o seu esconderijo. E perto há cem rodeios e cem fugas para os animais que se arrastam, revolteiam e saltam.
Tu, que te vês repelido e que te repeliste a ti mesmo, não queres viver mais entre os homens e da compaixão dos homens? Pois bem! Faz como eu! Assim aprenderás também comigo, só o que procede aprende.
E fala logo e em primeiro lugar aos meus animais! Sejam para nós dois os verdadeiros conselheiros o animal mais ativo e o animal mais astuto!”
Assim falou Zaratustra, e prosseguiu o seu caminho ainda mais meditabundo e vagaroso do que dantes, porque se interrogava sobre muitas coisas a que lhe era difícil responder.
“Como o homem é mesquinho”! — pensava interiormente. — Que feio, que agonizante e quão cheio de oculta vergonha!
Dizem que o homem se ama a si mesmo! Ai! Como deve ser grande esse amor próprio!
Quanto desprezo tem contra si!
Também aquele se ama desprezando-se: é para mim um grande enamorado e um grande desprezador.
Nunca tropecei com ninguém que se desprezasse mais profundamente. Isto também é elevação. Ó! Infortúnio! Talvez fosse aquele o   homem superior cujo grito ouvi!
Eu amo os grandes desprezadores. “Mas o homem é uma coisa que deve ser superada”.
Assim falava Zaratustra.

                                                                          O MENDIGO VOLUNTÁRIO

Quando Zaratustra se apartou do mais feio dos homens, teve frio, sentiu-se só: tantas coisas geladas e solitárias lhe cruzaram o espírito que até os membros se lhe arrefeceram.
Subindo, porém, cada vez mais por montes e vales, e ao atravessar áridos pedregais, que provavelmente tinham sido noutras épocas leito de um rio impetuoso, sentiu-se de repente mais vivo e animado. “Que me sucedeu”? — perguntou a si mesmo.
— O que quer que seja cálido e vivo me reconforta; deve andar próximo de mim.
“Já estou menos só; companheiros e irmãos rondam inconscientemente em torno de mim; o seu quente hálito agita a minha alma”.
Mas quando olhou em roda procurando os consoladores da sua soledade, viu que eram vacas, que estavam umas ao lado das outras numa elevação; fora a proximidade e o bafo desses animais que lhe haviam reanimado o coração. As vacas, entretanto, parecia escutarem atentamente alguém que falasse, e não faziam caso de quem se aproximava.
Já muito perto delas, Zaratustra ouviu sair do centro claramente uma voz de homem, e era visível, pois todas viravam a cabeça para o seu interlocutor.
Então Zaratustra correu para o montículo e dispersou os animais, porque receava houvesse sucedido alguma desgraça a alguém, coisa que dificilmente poderia remediar a compaixão das vacas. Enganava-se, porém; o que viu foi um homem sentado no solo, que parecia exortar os animais a não terem medo dele. Era um homem agradável; um pregador das montanhas, cujos olhos predicavam a própria bondade. “Que procuras aqui?” — exclamou Zaratustra, admirado.
“Que procuro aqui”! — respondeu o homem. — O mesmo que tu, curioso! Isto é, a felicidade na terra.
Por isso queria aprender com estas vacas. Que, fica sabendo, há meia manhã que lhes estou falando, e iam-me responder. Por que as espantaste?
Se não tornarmos para trás e não fizermos como as vacas, não poderemos entrar no reino dos céus. Que há uma coisa que deveríamos aprender delas: é ruminar.
E, claro, de que serviria o homem alcançar o mundo inteiro, se não aprendesse uma coisa, se não aprendesse a ruminar?
Não perderia a sua grande aflição.
Essa grande aflição que hoje se chama tédio. Quem não terá hoje o coração, a boca e os olhos cheios de tédio? Também tu. Também tu.
Mas olha para estas vacas!”
Assim falou o pregador da montanha; depois virou os olhos para Zaratustra — ponque até então os fixara amorosamente nos animais.
Logo se transformou, porém: — “Com quem estou falando? — exclamou, assustado, saltando do solo.
“Este é o homem sem tédio, Zaratustra em pessoa, o que triunfou do grande tédio; são os seus olhos, a sua boca, e o próprio coração de Zaratustra”.
E assim falando beijou as mãos daquele a quem falava, com olhar afetuoso, e em tudo se comportava como uma pessoa a quem cai do céu inopinadamente um precioso dom ou algum tesouro. Entretanto as vacas contemplavam tudo aquilo com admiração.
“Não fales de mim, homem singular e atraente! — respondeu Zaratustra, esquivando-se aos afagos. — Primeiro que tudo falai-me de ti. Não serás tu o mendigo voluntário que noutro tempo repudiou uma grande riqueza?
Não serás aquele que, envergonhado da riqueza e dos ricos, fugiu para junto dos mais pobres a dar-lhes a sua abundância e o seu coração? “Mas eles nada disso te aceitaram”.
“Não me aceitaram — disse o mendigo voluntário; já o sabes. Por isso acabei por vir ter com os animais e com estas vacas”.
“Assim aprendeste — interrompeu Zaratustra — que é muito mais difícil dar bem do que aceitar bem; que dar bem é uma arte, é a última e a mais astuta mestria da bondade”.
“Especialmente em nossos dias — respondeu o mendigo voluntário — especialmente hoje que tudo quanto é baixo se ergue altivamente orgulhoso da sua raça; a raça plebéia”.
Já deves saber que chegou a hora da grande insurreição da populaça e dos escravos, a funesta insurreição, vasta e lenta, que cresce continuamente.
Agora os pequenos revoltam-se contra todos os benefícios e os dons mesquinhos; acautelam-se os que são demasiados ricos!
Há frascos bojudos que gotejam pouco por estreitos gargalos... a frascos assim é que se quer hoje cortar a cabeça.
Cobiça ansiosa, inveja acerba, vingança reconcentrada, orgulho plebeu; tudo isso me assaltou à cara. Não é já verdade os pobres serem bem-aventurados. O reino do céu está entre as vacas”.
“E por que não entre ricos?” — perguntou tentadoramente Zaratustra, impedindo que as vacas acariciassem com o seu hálito o homem agradável.
“Por que me tentas? — respondeu este. — Tu mesmo o sabes muito melhor que eu.” Que foi que me impeliu para os mais pobres,
Zaratustra? Não era a aversão que sentia pelos mais ricos dos nossos? pelos forçados da riqueza que aproveitam os seus lucros em todas as varreduras, com olhos frios e olhares concupiscentes? por essa chusma que exala mau cheiro até o céu? por essa dourada e falsa populaça, cujos ascendentes eram gente de unhas compridas, aves carnívoras, ou trapaceiros, com mulheres complacentes, lascivas e esquecidiças, pouco diferente de rameiras?
Populaça acima! Populaça abaixo! Que significam já hoje os “pobres”, os “ricos”! “Eu esqueci essa diferença e acabei por fugir para longe, cada vez mais longe, até vir ter com estas vacas”.
Assim falou o homem agradável, e ao pronunciar aquelas palavras respirava ruidosamente, banhado em suor: tanto que as vacas tornaram a admirar-se. Zaratustra, porém, enquanto o homem falava assim duramente, fitava nele os olhos, sorrindo e movendo silenciosamente a cabeça.
“Pregador da montanha, estás-te violentando ao empregar expressões tão duras”. A tua boca e os teus olhos não nasceram para tais durezas.
E o teu estômago tampouco, segundo me parece, resistem-lhe essa cólera, esse ódio e essa efervescência. O teu estômago precisa coisas mais brandas: não és carnívoro.
Antes me pareces herbívoro. Talvez mastigues grão. Em todo caso não és feito para os gozos carnívoros, e agrada-te o mel.
“Adivinhaste-me perfeitamente — respondeu o mendigo voluntário, com o coração aliviado”. — Agrada-me o mel e também môo grão, porque procurei o que tem bom gosto e purifica o hálito; também uma tarefa diária e uma ocupação para a boca.
Estas vacas de certo foram muito mais longe: inventaram o ruminar e cair no contrário. Assim se livram de todos os pensamentos pesados que incham as entranhas”.
Zaratustra disse: “Pois então deverias ver também os meus animais, a minha águia e a minha serpente que não têm rival na terra”.
Olha: aquele é o caminho que conduz à minha caverna: sê meu hóspede por esta noite. E fala com os meus animais da felicidade dos animais... até que eu regresse.
Agora, porém, chama-me apressado para longe de ti um grito de angústia. Também hás de encontrar na minha morada mel fresco, favos de dourado mel de glacial frescura: come-o!
Agora despede-te pressuroso das tuas vacas, homem singular e atraente, embora te custe; pois são os teus melhores amigos e mestres!”
“À exceção de um só, a quem prefiro — respondeu o mendigo voluntário. — Tu és bom, e ainda melhor que uma vaca, Zaratustra!”
“Foge daqui! Vil adulador! exclamou, colérico, Zaratustra. — Por que me lisonjeias com tal mel de elogios e de lisonjas?”
“Foge, foge para longe de mim!” gritou outra vez, brandindo o bordão na direção do mendigo adulador. Este, porém, fugiu com presteza.

                                                                                          A SOMBRA

Apenas o mendigo voluntário fugira, Zaratustra, outra vez consigo mesmo, ouviu uma voz desconhecida gritar: “Pára, Zaratustra! Espere! Sou eu, Zaratustra; eu, a tua sombra!” Zaratustra, porém, não esperou, porque o invadiu um grande desgosto ao ver a multidão
que se amontoava nas montanhas. “Que foi feito da minha soledade”? — disse.
É demais; estas montanhas formigam; o meu reino já não é deste mundo; preciso novas montanhas.
Chama-me a minha sombra? Que me importa a minha sombra? Corra atrás de mim... e eu adiante dela!”
Assim dizia consigo Zaratustra, fugindo; mas o que estava atrás dele seguia-o, de forma que eram três a correr um atrás do outro: primeiro o mendigo voluntário, a seguir Zaratustra, e em último lugar a sua sombra.
Não corriam há muito ainda quando Zaratustra caiu em si, reparou na sua loucura, e de uma sacudidela expulsou para longe de si todo o despeito e aborrecimento.
“Que”! Exclamou. — Não têm acontecido sempre entre nós outros, santos e eremitas, as coisas mais risíveis?
Na verdade, a minha loucura cresceu nas montanhas! Agora ouço soar, umas atrás das outras, seis velhas pernas de loucos!
Terá Zaratustra o direito de se assustar com uma sombra? “E acabo por acreditar que ela tem as pernas mais compridas que as minhas”.
Assim falava Zaratustra rindo com vontade.
Deteve-se, virou-se repentinamente e quase atirou ao chão a sombra que o perseguia: tão agarrada ia aos seus tacões e tão fraca era. Ao examiná-la admirou-se como se de repente lhe houvesse aparecido um fantasma: tão fraco, negro e anão era o seu perseguidor, e tão arruinado lhe parecia.
“Quem és? — perguntou impetuosamente Zaratustra. — Que fazes aqui? E por que te chamas minha sombra? Não me agradas”.
“Perdoa-me — respondeu a sombra — ser eu, e não te agradar, felizmente, Zaratustra”! Isso diz muito em teu abono e a favor do teu bom gosto.
Eu sou um viajante que já há muito tempo te segue as pegadas: sempre a caminhar, mas sem destino nem lugar; de forma que pouco me falta para ser judeu errante, salvo não ser judeu nem eterno.
Que? Hei de caminhar sempre? Hei de me ver arrastado sem trégua pelo remoinho de todos os ventos? Ó! Terra, tornaste-te demasiado redonda!
Já me coloquei em todas as superfícies; à semelhança do cansado pó; adormeci nos espelhos e nas vidraças. Tudo recebe de mim; ninguém me dá; eu diminuo, quase pareço uma sombra.
Mas a quem tenho seguido e perseguido mais tempo tem sido a ti, Zaratustra; e conquanto me tenha ocultado de ti, fui, todavia, a tua melhor sombra; onde quer que parasses, parava eu também.
Contigo vaguei pelos mais longínquos e frios mundos, como um fantasma que se compraz em correr por caminhos invernais e de gelo.
Contigo aspirei a todo o proibido, a todo o pior e mais longínquo; e se alguma virtude há em mim, é não temer nenhuma proibição.
Contigo aniquilei quanto o meu coração adorou, derribei todas as barreiras e todas as imagens, correndo após os mais perigosos desejos: realmente, passei uma vez por todos os crimes.
Contigo esqueci a fé nas palavras, os valores, e os grandes nomes. Quando o demônio muda de pele, não muda ao mesmo tempo de nome? Que esse nome é apenas pele. Talvez mesmo o demônio não seja mais... que uma pele.
Nada é verdade; tudo é permitido; assim me consolei a mim mesmo. Lancei-me nas águas mais frias, de coração e de cabeça. Ai! Quantas vezes me vi nu e encarnado em caranguejo!
Ai! Para onde foi tudo o que é bom, e toda a fé nos bons? Ai! para onde fugiu aquela inocência enganadora que dantes possuí, a inocência dos bons e das suas nobres mentiras?
Com demasiada freqüência pisei a verdade, e ela então saltou-me ao rosto. As vezes julgava mentir, e o caso é que ó então aflorava ai verdade.
Demasiadas coisas se me tornaram claras; agora já me não importam. Já nada vive do que eu amo. Como poderia amar-me ainda a mim mesmo?
Viver como me agrade, ou não viver de modo nenhum, eis o que quero, eis o que quer também o mais santo.
Mas, ó! Desventura! Como poderia eu satisfazer-me ainda?
Acaso tenho... um fim? Um porto para onde encaminhe a minha vela?
Um bom vento? Ai! Só o que sabe onde vai sabe também qual é o seu vento, qual é o seu vento próspero.
Que me resta? Um coração fatigado e impertinente, uma vontade instável, asas trêmulas, uma espinha quebrada. Esse afã de correr em busca da minha morada, sabes Zaratustra? esse afã foi a minha obsessão: devora-me. Aonde está... a minha morada? Eis o que pergunto, o que procuro, o que procurei e não encontrei.
Ó! eterno “em toda a parte!” ó! Eterno em “parte nenhuma”, ó! Eterno... “em vão!”
Assim falava a sombra, e o semblante de Zaratustra dilatava-se ao ouvi-la. “És a minha sombra! — disse afinal, com tristeza.
Não é pequeno o teu perigo, espírito livre e vagabundo! Tiveste mau dia: cuidado não se lhe siga uma noite pior.
Vagabundos como tu acabam por se encontrar bem até num cárcere. Já alguma vez viste como dormem os criminosos presos?
Dormem tranqüilamente: fruem nova segurança.
Olha, não acabe por se apoderar de ti uma fé acanhada, uma ilusão dura e severa! Que atualmente tenta e te reduz o que é estreito e sólido.
Perdeste o alvo, desgraçado! Como te poderias consolar dessa perda? Por isso perdeste também o caminho!
Pobre vagabundo, espírito volúvel, mariposa fatigada! Queres ter esta noite descanso e asilo? Vai para a minha caverna!
Por ali acima é o caminho que conduz à minha caverna. E agora quero tornar a fugir de ti. Já pesa sobre mim uma como sombra.
Quero correr sozinho para tudo aclarar em torno de mim. Por isso tenho ainda que mover alegremente as pernas durante muito tempo. Esta noite... com certeza... há de haver baile na minha habitação!”
Assim falava Zaratustra.
                                  
                                                                           AO MEIO-DIA

E Zaratustra correu e correu sem parar, mas não tropeçou com pessoa nenhuma. Ia só, tornando a encontrar-se sempre consigo mesmo, gozando ai sua soledade e pensando em boas coisas durante horas inteiras. Ao meio-dia, contudo, quando o sol se encontrava exatamente sobre a sua cabeça, Zaratustra passou por diante de uma idosa árvore retorcida e nodosa, tão envolvida pelo rico amor de uma vinha que de todo a ocultava: dessa árvore caíam, abundantes, maduros cachos que convidavam o viandante. Zaratustra teve desejos de acalmar a sede que sentia, arrancando um cacho de uvas, e já estendia a mão para isso, quando o acometeu outro desejo ainda mais violento: o desejo de se deitar ao pé da árvore, em pleno meio dia, para dormir.
E assim fez; e enquanto esteve estendido no meio do silêncio e do mistério da esmaltada erva, esqueceu a sede e adormeceu. Que, como diz o provérbio de Zaratustra, vasa maior tira menor. Os olhos, contudo, conservavam-se-lhe abertos; é que se não cansavam de olhar e gabar a árvore e o amor da vinha. Entre os seus devaneios, Zaratustra falou assim ao seu coração.
“Silêncio”! Silêncio! Não acaba de se consumar o mundo? Que é que me sucede?
Como um vento delicioso passa invisível sobre a superfície do mar, tão leve, tão ligeiro como uma pena, assim o sono passa por mim.
Não me cerra os olhos, deixa a minha alma acordada. Na verdade, é leve, leve como uma pena.
Persuade-me, não sei como: afaga-me interiormente com mão carinhosa; domina-me. Sim; domina-me a ponto da alma se me dilatar.
Como se deita ao comprido a minha alma singular!
Chegaria para ela, em plena metade do dia, a noite de um sétimo dia? Vagueou já, feliz, demasiado tempo pelas coisas boas e maduras?
Deita-se ao comprido, mas cada vez mais ao comprido. Está tranqüilamente deitada a minha alma singular. Já saboreou demasiadas coisas boas, esta dourada tristeza oprime-a.
Como barca que entrou na sua mais serena baía, se encosta agora à terra, fatigada das longas viagens e dos mares incertos. Não é a terra mais fiel?
Como uma barca se encosta e arrima à terra; basta então que uma aranha estenda o seu fio da terra até ela. Não é preciso cabo mais forte.
Como uma dessas barcas fatigadas, na mais tranqüila baía assim agora eu repouso também perto da terra, fiel, confiado, esperando, preso à terra pelos mais tênues fios.
Ó ventura! Ó ventura! Queres cantar, minha alma?
Está deitada na erva. Esta, porém, é a hora secreta e solene em que nenhum pastor sopra flauta.
Acautela-te! O calor do meio-dia repousa nos prados. Não cantes! Silêncio! O mundo consumou-se.
Não cantes, ave dos prados, minha alma! Nem sequer murmures! Olha bem... Silêncio! O velho dormita; mexe a boca: não beberá neste instante uma gota de felicidade? Uma rasa gota de felicidade dourada, de dourado vinho? A felicidade desliza por ele e sorri.
Assim sorri um deus! Silêncio!
“Como é preciso pouco para a felicidade!” — assim dizia eu noutras épocas, julgando-me sábio. — Era, porém, uma blasfêmia: isto foi o que aprendi agora. Os doidos sábios dizem coisas melhores.
O mínimo, precisamente, o mais tênue, o mais leve, um roçar de lagarto, um sopro, um cht!, um abrir e fechar de olhos, o pouco é o característico da melhor felicidade. Silêncio!
Que me sucede? Escuta. Acaso me feriu o tempo? Não cairei... não caí — escuta! — no poço da eternidade?
— Que me sucede? Silêncio. Estou ferido — desditoso de mim! — no coração? No coração! Ó! Solta-te, meu coração, depois de tal felicidade, depois de semelhante ferida!
Que! Não se acabará de consumar o mundo redondo e sazonado? Ó! redonda e dourada maturação! Aonde voará? Correrei em seu seguimento? Cht!
“Silêncio!...” Neste ponto, Zaratustra estirou-se e sentiu que dormia.
“Levanta-te, dorminhoco, preguiçoso”! — disse consigo mesmo. — Vamos, velhas pernas! É tempo e mais que tempo: ainda nos falta andar uma boa parte do caminho.
Entregaste-te ao sono. Durante quanto tempo? Meia eternidade! Vamos, levanta-te tu agora velho coração. Depois de tal sono, quanto tempo precisará para despertar?
(Já outra vez, porém, adormecia, e a alma resistia-lhe e defendia-se e tornava a deitar-se ao comprido). Deixa-me! Silêncio! Não se acabou de consumar o mundo? Ó! essa bola “redonda e dourada!”
“Levanta-te, preguiçosa”! — disse Zaratustra. — Que é isso de estares sempre a esticar-te, bocejando, suspirando, caindo no fundo dos poços profundos?
Quem és tu, então? Ó! alma minha!
E nesse momento assustou-se porque do céu lhe caía um raio de sol sobre o semblante.
“Ó”! Céu! — disse com um suspiro tornando a si. — Contemplas-me? Escutas a minha alma singular?
Poço da eternidade, alegre abismo do meio-dia que faz estremecer... quando absorverás em ti a minha alma?”

Assim falava Zaratustra ao pé da árvore, e ergueu-se como se saísse de estranha embriaguez; entretanto o sol achava-se exatamente por cima da cabeça dele, do que se podia inferir com razão que Zaratustra pouco dormira.

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