“Vós outros
olhais para cima quando aspirais elevar-vos.
Eu, como estou
alto, olho para baixo.
Qual de vós podeis
estar alto e rir-vos ao mesmo tempo?
O que escala
elevados montes ri-se de todas as tragédias da cena e da vida”.
ZARATUSTRA
O
VIAJANTE
Era aproximadamente
meia noite quando Zaratustra seguiu pelo cume da ilha para chegar de madrugada
à ribeira, onde queria embarcar. Nesse lugar havia uma boa enseada onde
costumavam ancorar também barcos estrangeiros, os quais recebiam a bordo alguns
das Ilhas Bem-aventuradas que queriam atravessar o mar. Enquanto subia a
montanha pensava Zaratustra nas muitas viagens solitárias que fizera desde a
sua mocidade e nas muitas montanhas, cristas e cumieiras que escalara.
“Eu sou um viajante
e um trepador de montanhas — disse de si para si — não me agradam as planícies,
e parece que não posso estar muito tempo sossegado”. Ou seja, porque o queira o
meu destino ou a eventualidade que me espera, sempre uma viajem há de ser, para
mim, uma ascensão: em suma, cada qual vive-se unicamente a si mesmo.
Passou o tempo em
que me poderiam sobrevir acasos, e que poderia suceder-me que já me não
pertença?
O meu próprio ser
está enfim de regresso, e quanto dele próprio andou durante muito tempo por
estranhas terras e disperso entre todas as coisas e todas as contingências!
E sei mais alguma
coisa; estou agora diante do meu último píncaro e do que me foi evitado durante
mais tempo. Ai! tenho que seguir o meu caminho mais rigoroso! Começou a minha
viagem mais solitária.
Quem é, porém, da
minha condição, não se livra de semelhante hora, da hora que diz: “Só agora
segues o teu caminho de grandeza”!
Até hoje tem-me
confundido num só o cume e o abismo!
Segue o teu caminho
de grandeza; veio agora a ser o teu último refúgio o que até aqui se chamou o
teu último perigo!
Segue o teu caminho
de grandeza: a tua melhor animação agora é não existirem caminhos atrás de ti!
Segue o teu caminho
de grandeza: aqui ninguém há de ir em teu seguimento. Os teus próprios pés
apagaram o caminho que deixas atrás de ti, e nele está escrito:
“Impossibilidade”.
E se, mais adiante,
te faltarem todas as escadas, será preciso saberes trepar sobre a tua própria
cabeça; senão, como quererias subir mais alto?
Sobre a tua própria
cabeça e por cima do teu próprio coração. Agora o mais suave vai-se tornar para
ti o mais duro.
Aquele que sempre
cuidou muito de si, acaba por se tornar enfermiço com o excesso de cuidado.
Bendido seja o que endurece! Não gabo o país onde fluem manteiga e mel!
Para ver muitas
coisas precisamos aprender a olhar para longe de nós: esta dureza é
necessária para todos os que escalam os montes.
O que porém
investiga, com olhos indiscretos, como poderia ver mais que o primeiro terno
das coisas?
Mas tu, Zaratustra,
que querias ver todas as razões e o fundo das coisas, precisas passar por cima
de ti mesmo, e ascender, ascender até as tuas próprias estrelas ficarem abaixo
de ti!”
“Sim! Ver-me a mim
próprio, e até as minhas estrelas, olhando para baixo! Só isso chamo o meu cume;
é esse o último cume que me falta escalar!”
Assim falava
consigo Zaratustra enquanto subia, consolando o seu coração com duras máximas:
porque, como nunca, tinha ferido o coração. E quando chegou ao alto da crista
viu estender-se na sua frente o outro mar; ficou imóvel e calado por muito
tempo. Naquela altura estava a noite fria e clara e estrelada.
“Reconheço a minha
sorte” — disse afinal com tristeza. “Eia! Estou pronto! Começou agora a minha
última soledade.
Que mar tão negro e
triste a meus pés! Que sombrio e noturno pesadelo! Ó! destino e oceano! É
mister que eu agora desça para vós.
Estou em frente da
minha mais alta montanha e da minha mais longa viagem! por isso tenho que
descer como nunca desci!
Tenho que ir ao
fundo da dor mais do que nunca, até as suas mais negras profundidades! Assim o
quer o meu destino.
Eia! Estou pronto!
De onde vêm as mais
elevadas montanhas? Isso perguntava eu noutro tempo.
Soube então que vêm
do mar.
Este testemunho
está escrito nas suas pedras e nas paredes das suas cristas. “Desde o mais
baixo há de o mais alto erguer o seu cume”.
Assim falava
Zaratustra no píncaro da montanha onde reinava o frio, mas quando chegou perto
do mar e se encontrou sozinho entre as rochas da margem, sentiu-se cansado do
caminho e ainda mais cheio que dantes de ardentes desejos.
“Ainda dorme tudo —
disse”. Também o mar está adormecido. Dirige-me um olhar estranho e sonolento.
A sua respiração,
porém, é quente, sinto-o. E ao mesmo tempo vejo que sonha.
Agita-se sonhando
sobre duros almofadões.
Escuta! Escuta!
Quantos gemidos as más recordações lhe arrancam! Ou serão maus presságios?
Ai! Estou triste
contigo, monstro sombrio, e aborrecido comigo mesmo por tua causa.
Ai! Porque não terá
a minha mão bastante força? Quereria livrar-te dos sonhos maus!”
Falando desta forma
Zaratustra ria de si mesmo com melancolia e amargura.
“Que, Zaratustra”!
— disse — ainda queres cantar consolações ao mar?
Ai, Zaratustra!
Louco rico de amor, ébrio de confiança! Mas assim foste sempre, sempre te
abeiraste familiarmente de todas as coisas terríveis.
Querias acariciar
todos os monstros. Um sopro de hálito quente, um tanto de branda velocidade nas
garras e imediatamente estavas disposto a amar e a atrair.
O amor — o
amor a qualquer coisa — basta-lhe viver — é o perigo do mais solitário.
“Na verdade, prestam-se ao riso a minha loucura e a minha modéstia no amor”.
Assim falava
Zaratustra, e pôs-se a rir outra vez; mas então pensou nos amigos que deixara,
e como se houvesse pecado contra eles em pensamento, se enfadou consigo mesmo
pelos seus pensamentos. E assim o riso mudou-se em pranto: Zaratustra chorou
amargamente de cólera e de ansiedade.
DA VISÃO E DO ENIGMA
I
Quando os
marinheiros souberam que Zaratustra se encontrava no barco — porque, ao mesmo
tempo que ele, fora a bordo um homem das Ilhas Bem-aventuradas; houve grande curiosidade
e grande expectação.
Zaratustra, porém,
conservou-se em silêncio, durante dois dias, e permaneceu frio e surdo,
simplesmente triste; de forma que não respondia aos olhares nem às perguntas.
Na noite do segundo
dia abriram-se-lhe de novo os ouvidos, conquanto permanecesse calado: porque
naquele barco que vinha de longe e que ainda queria ir mais longe, se podia
ouvir uma porção de coisas estranhas e perigosas. Zaratustra, porém, era amigo
de todos os que fazem grandes viagens e de quem não sabe viver sem perigo. Por
fim escutando, desatou-se-lhe a língua e quebrou-se-lhe o gelo do coração.
Então começou a falar assim:
“A vós outros, quem
quer que sejais, intrépidos exploradores e aventureiros que embarcasteis com
velas astutas em mares temíveis.
A vós, ébrios de
enigmas, gozosos das penumbras, almas atraídas por flautas a todas as voragens
ilusórias.
Porque não quereis
seguir às cegas e com mão medrosa um fio condutor; e onde quer que podeis adivinhar
aborreceis concluir.
Somente a vós conto
o enigma que vi, a visão do mais solitário.
Sombrio atravessei
ultimamente o pálido crepúsculo — sombrio e duro, com os lábios contraídos. —
Mais de um sol se pusera para mim.
Um sendeiro que
subia com ar de desafio por entre despenhadeiros, um sendeiro perverso e
solitário que já não queria erva nem brenhas, um sendeiro de montanha rechinava
ante o repto dos meus passos.
Mudos no meio do
irônico ranger dos calhaus, pisando a pedra que os fazia resvalar, os meus pés
pugnavam para cima.
Para cima, embora
gravitasse sobre mim esse espirito, a puxar para o abismo: a despeito do
espírito do pesadelo, meu demônio e mortal inimigo.
Para cima, embora
gravitasse sobre mim esse espirito, entre anão e míope, paralisado e
paralisador, vertendo chumbo nos meus ouvidos e destilando pensamentos de
chumbo no meu cérebro.
“Ó Zaratustra! — me
segredava em tom chocarreiro, batendo as sílabas. — Pedra da sabedoria!
atiraste-te ao alto, mas toda a pedra
atirada tem... que tornar a cair.
Condenado a ti
mesmo e à tua própria lapidação, ó! Zaratustra! atiraste muito longe a pedra...
mas, tornará a cair em cima de ti!”
Aqui se calou o
anão, e muito tempo decorreu; mas o seu silêncio oprimia-me: quando uma pessoa
se desdobra em duas encontra-se mais insulada do que quando é uma só!
Eu subi, subi mais,
sonhando e pensando: mas tudo me oprimia. Assemelhava-me a um enfermo prostrado
pela agudeza do seu sofrimento, e a quem um pesadelo desperta do seu torpor.
Eu, porém, tenho
qualquer coisa a que chamo valor, qualquer coisa que até agora matou em mim
todo o humor sombrio. Esse valor me fez deter por fim e dizer: “Anão! ou tu ou
eu!”
O valor é o melhor
dos matadores: o valor que ataca, porque sempre se ataca ao rufar do tambor.
É o homem o animal
mais valoroso: por isso venceu todos os outros animais. Ao rufar do tambor
triunfou de todas as dores: e a dor humana é a dor mais profunda.
O valor mata também
a vertigem à beira dos abismos! E onde não estará o homem à beira dos abismos?
Mesmo olhar... não será olhar abismos?
O valor é o melhor
dos matadores: também mata a compaixão. E a compaixão é o abismo mais profundo:
tão fundo quanto o homem vê na vida, assim fundo vê no sofrimento.
Mas o valor, o
valor que ataca é o melhor dos matadores; mata a própria morte, porque diz:
“Que? Era isto a vida? Então tornemos a começar!”
Nesta sentença
ressoa muito o tambor de guerra. “Quem tiver ouvidos que ouça.”
II
“Alto, anão! —
disse. — Ou eu ou tu! Eu, porém, sou o mais forte dos dois: tu não conheces o
meu mais profundo pensamento. Esse... não mo poderias tirar!”
Nisto se me aliviou
a carga, porque o indiscreto anão me saltou dos ombros.
Acaçapou-se numa
pedra diante de mim. No sítio em que paramos, encontrava-se como por
casualidade um pórtico.
“Anão! — prossegui.
— Olha para este pórtico! Tem duas caras. Aqui se reúnem dois caminhos: ainda
ninguém os seguiu até o fim.
Esta rua larga que
desce, dura uma eternidade... e essa outra longa rua que sobe... é outra eternidade..
.
Estes caminhos são
contrários, opõem-se um ao outro, e encontram-se aqui neste pórtico. O nome do
pórtico, está escrito em cima; chama-se “instante”.
Se alguém, todavia,
seguisse sempre, cada vez mais longe, por um destes caminhos, acaso julgas,
anão, que eles eternamente se oporiam?”
“Tudo quanto é reto
mente — murmurou com desdém o anão. — Toda a verdade é sinuosa; o próprio tempo
é um círculo”. “Espírito do pesadelo! — disse eu irado! — Não aprecies tão ao
de leve as coisas! — ou te deixo onde estás acaçapado, e olha que fui eu quem
te trouxe cá acima!
Olha para este
instante! — continuei. — Deste pórtico de momento segue para trás uma
larga e eterna rua; detrás de nós há uma eternidade.
Tudo quanto é capaz
de correr não deve já ter percorrido alguma vez esta rua? Tudo o que pode suceder
não deve ter sucedido, ocorrido, já alguma vez?
E se tudo existiu
já por aqui, que pensas tu, anão, deste instante? Esse pórtico não deve
também... ter existido por aqui? E aquela aranha preguiçosa que se assusta à
luz da lua, tanto atrai após si o seguinte? Por conseqüência... até a si mesmo?
Porque tudo quanto
é capaz de correr deve percorrer também mais uma vez esta larga
rua que sobe!
E aquela aranha
preguiçosa que se assusta à luz da lua é a mesma luz da lua, e eu e tu, que nos
encontramos agora aqui juntos no pórtico, segredando sobre coisas eternas, não
devemos ter passado já por aqui, e tornar a correr pela outra rua que sobe? Não
devemos tornar eternamente por essa larga e lúgubre rua?
Assim falava eu, em
voz cada vez mais baixa, porque me assustavam os meus próprios pensamentos e a
sua oculta intenção, quando de súbito ouvi uivar um cão ali perto. Não ouvira,
já uma vez, uivar assim um cão? E vi-o também, com o pêlo eriçado, a cabeça
erguida, trêmulo no meio da noite silenciosa, quando até os cães acreditam em
fantasmas.
E tive pena dele.
Acabava de aparecer silenciosamente a lua cheia por cima da casa: detivera-se
com o disco incendiado, sobre a alta abóbada, como em propriedade alheia.
Foi isso que
despertou o cão. Que os cães acreditam em ladrões e fantasmas.
E quando o tornei a
ouvir uivar, tornei a sentir dó dele. Que fora feito, entretanto, do anão, do
pórtico, da aranha e dos segredos? Teria sonhado? Teria acordado? Encontrei-me
de repente entre agrestes brenhas, sozinho, abandonado à luz da solitária lua.
Mas ali jazia um
homem!
E o cão, a saltar e a gemer, com o pêlo eriçado — via-me caminhar — começou a
uivar outra vez, e pôs-se a gritar. Nunca ouvira um cão pedir socorro
assim.
Nunca vi nada
semelhante ao que ali presenciei. Vi um moço pastor a contorcer-se anelante e
convulso, com o semblante desfigurado, e uma forte serpente negra pendendo-lhe
da boca.
Quando vira eu tal
repugnância e pálido terror num semblante? Adormecera, de certo, e a serpente
introduziu-se-lhe na garganta, aferrando-se ali?
A minha mão começou
a tirar a serpente, a tirar... mas em vão! Não conseguia arrancá-la da
garganta. Então saiu de mim um grito:
“Morde! Morde!
Arranca-lhe a cabeça! Morde!” Assim gritava qualquer coisa em mim; o meu
espanto, o meu ódio, a minha repugnância,
a minha compaixão,
todo o meu bem e o meu mal se puseram a gritar em mim num só grito.
Valentes que me
rodeiais! Exploradores, aventureiros! Vós outros que apreciais os enigmas,
adivinhais o enigma que eu vi então e explicai-me a visão do mais solitário.
Que foi uma visão e
uma previsão: que símbolo foi o que vi naquele momento? E quem é
aquele que ainda deve chegar?
Quem é o pastor em cuja
garganta se introduziu a serpente? Quem é o homem em cuja garganta se
atravessara assim o mais negro e mais pesado que existe?
O pastor, porém,
começou a morder como o meu grito lhe aconselhava: deu uma dentada firme!
Cuspiu para longe de si a cabeça da serpente e saltou para o ar.
Já não era homem
nem pastor; estava transformado, radiante; ria! Nunca houve homem na
terra que risse como ele!
Ó! meus irmãos!
Ouvi uma risada que não era risada de homem... e agora devora-me uma sede, uma
ânsia que nunca se aplacará.
Devora-me a ânsia
daquele riso. Ó! Como pude eu viver ainda? E como poderia agora morrer?”
Assim falava
Zaratustra.
DA BEATITUDE
INVOLUNTÁRIA
Com tais enigmas e
tais amarguras no coração, passou Zaratustra o mar. Quando estava, porém, a
quatro dias das Ilhas Bem-aventuradas e dos seus amigos, dominara completamente
a dor: vitorioso e com passo firme, assentara de novo no seu destino. Então,
Zaratustra falou assim à sua consciência radiante de alegria:
“Estou novamente
só, e assim quero estar: só com o céu sereno e o mar livre; novamente reina a
tarde em meu redor.
À tarde encontrei
pela primeira vez os meus amigos; e das outras vezes também à tarde, à hora em
que toda a luz se torna mais tranqüila.
Que os raios de
ventura que ainda estão a caminho entre o céu e a terra, procurem um asilo numa
alma luminosa. Agora, a ventura tornou mais tranqüila a luz toda.
Ó! tarde da minha
vida! Também a minha ventura desceu um dia ao vale para procurar um asilo: encontrou
então aquelas almas francas e hospitaleiras.
Ó! tarde da minha
vida! Quanto eu não dei para ter uma só coisa; esse viveiro dos meus
pensamentos e essa luz matinal das minhas mais altas esperanças!
Um dia, o criador
procurou copartícipe e filhos da sua esperança, e sucedeu não os
encontrar, vendo-se na necessidade de os criar.
Eu estou, portanto,
em meio da minha obra, indo para meus filhos e tornando ao pé deles: por amor
aos filhos deve uma pessoa completar-se a si própria.
Que ninguém ama de
todo o coração senão o seu filho e a sua obra; e onde há um grande amor de si
mesmo, é sinal de fecundidade: eis o que tenho notado.
Os meus filhos,
árvores do meu jardim e da minha terra melhor, ainda se encontram na sua
primavera, apinhados uns contra os outros, e agitados em massa pelo vento.
E na verdade, onde
existem juntas tais árvores, existem Ilhas Bem-aventuradas!
Quero, porém,
transplantá-las um dia separadamente, a fim de aprenderem a soledade, a altivez
e a precaução!
Nodoso e retorcido,
com flexível dureza, deve cada qual erguer-se ao pé do mar, como próprio farol
da vida invencível.
No mesmo sítio onde
se precipitam no mar as tempestades, onde a fralda da montanha se banha nas
ondas, nesse sítio deverá cada qual estar de sentinela dia e noite, para sua
prova e reconhecimento.
É mister que seja
reconhecido e provado, para se saber se é de minha raça e da minha origem, se é
dono de uma ampla vontade, silencioso mesmo quando fale, e condescendente de
forma que aceite quando dê.
A fim de chegar a
ser um dia meu companheiro e colaborador, um dos que escrevam a minha vontade
nas minhas tábuas para o pleno cumprimento de todas as coisas.
E por causa dele e
dos seus semelhantes devo eu compenetrar-me de mim mesmo: por isso agora
fujo à minha ventura, oferecendo-me a todos os sofrimentos para a minha última
prova e reconhecimento.
E, na verdade, já
era tempo de partir; e a sombra do viajante, e o tédio mais prolongado e a hora
mais silenciosa todos estes me disseram: “Não há um instante a perder!”
O vento soprou pelo
orifício da fechadura e disse-me: “Anda!”
Eu, contudo, estava
acorrentado pelo amor aos meus filhos: a ânsia de amor estendia-me esse laço
para eu ser presa de meus filhos e me perder por eles.
Para mim, ansiar é
já ter-me perdido.
Possuo-vos, meus
filhos!
Nesta possessão tudo deve ser certeza, e nada desejo.
O sol do meu amor,
porém, abrasava-me. Zaratustra abrasava-se no seu próprio jugo. Nisto passaram
por mim sombras e dúvidas.
Já desejava o frio
e o inverno: “Ó! Tornem o frio e o inverno a fazer-me tiritar e entrechocar os
dentes!” — suspirava eu. — Então se ergueram dentro de mim nuvens glaciais.
O meu passado
destruiu as suas sepulturas; mais de uma dor enterrada viva despertou; não
fizera mais do que adormecer envolta em sudários.
Assim tudo me
gritava em sinais: “É já tempo!” Mas eu não ouvia: até que, afinal, começou o
meu abismo a agitar-se e mordeu-me o pensamento.
Ai! Pensamento que
vens do meu abismo! Quando encontrarei forças para te ouvir refletir sem
tremer!
Chegam-me à
garganta os baques do coração quando te ouço refletir. O teu próprio silêncio
de abismo me quer afogar.
Nunca me atrevi a
chamar-te à superfície: já era bastante trazer-te comigo! Ainda não tive
forca suficiente para a última audácia e temeridade do leão.
Bem terrível tem
sido sempre o teu peso para mim; mas hei de encontrar um dia a força e a voz do
leão para te chamar à superfície!
Quando eu tenha
conseguido esse triunfo, conseguirei ainda outro maior, e uma vitória,
será a marca da minha plenitude.
Entretanto, vagueio
por mares incertos, acariciado pelo acaso sedutor; olho atrás e adiante, e
ainda não descubro fim.
Ainda não chegou a
hora da minha última luta — ou talvez chegue neste instante. — É certo
olharem-me com pérfida beleza o mar e a vida que me rodeiam!
Ó tarde da minha
vida! Ó ventura da véspera! Ó porto em pleno mar!
Ó paz na incerteza!
Como desconfio de todos vós!
Desconfio deveras
da vossa pérfida beleza. Pareço-me com o amante que desconfia do sorriso meigo
demais.
Como o ciumento
repele a sua amada, terno até na sua dureza, assim eu repilo esta hora
venturosa.
Para longe de mim,
hora venturosa! Contigo fui bem-aventurado, a meu pesar! Aqui me encontro,
pronto para a minha mais profunda dor: chegaste fora de tempo.
Para longe de mim,
hora venturosa! Busca antes asilo além, junto de meus filhos!
Vai, corre!
Abençoa-os antes do crepúsculo e dá-lhes a minha felicidade!
Já se aproxima a
noite; esconde-se o sol! Foi-se a minha ventura!”
Assim falava
Zaratustra. E esperou a sua desventura toda a noite; mas esperou em vão. A
noite permaneceu serena e silenciosa, e afelicidade aproximava-se-lhe cada vez
mais. Perto do alvorecer, todavia, pôs-se a rir intimamente e disse em tom
irônico:
“A felicidade
persegue-me. Deve-se isto a eu não correr atrás das mulheres. Que a felicidade
é mulher”.
ANTES DO NASCER
DO SOL
“Ó! céu desenrolado
sobre mim! Céu claro e profundo! Abismo de luz! Ao contemplar-te estremeço de
divinos desejos!
Elevar-me à minha
altura: eis a tua profundidade! Cobrir-me com a tua pureza: eis a minha
inocência!
O deus oculto na
sua beleza: assim ocultas as tuas estrelas. Não falas: assim me
anuncias a tua sabedoria.
Mudo surgiste para
mim sobre o fervente mar: o teu amor e o teu pudor revelam-se à minha alma fervente.
Belo, vieste a mim,
velado na tua beleza; mudo, falas-te-me, revelando-te na tua sabedoria: ó! como
pude eu não adivinhar todos os pudores da tua alma! Antes do sol vir até a mim,
o mais solitário.
Somos amigos de
sempre: as nossas penas são o fundo dos nossos seres, são-nos comuns; até o sol
é comum.
Não falamos porque
sabemos demasiadas coisas: calamo-nos e entendemo-nos por sorrisos.
Não és tu a luz do
meu fogo? Não és tu a alma irmã da minha inteligência?
Tudo aprendemos
juntos; juntos aprendemos a elevar-nos sobre nós, e a sorrir, sem nuvens, para
baixo, com límpidos olhos, desde remotas paragens, quando a nossos pés se
desvanecem, como névoa vaporosa, a imposição, o fim e o erro.
E quando eu
caminhava só, de que tinha a minha alma fome durante as noites e nos caminhos
do erro? E quando eu escalava montes, a quem procurava nos píncaros
senão a ti?
E todas as minhas
viagens e todas minhas ascensões não passavam de um expediente e recurso da
inércia. O que a minha vontade toda quer é voar, voar para ti!
E que odiava eu
mais do que as nuvens e tudo o que te empana? E odiava até o meu próprio ódio
porque te empanava!
Tenho aversão às
nuvens, a esses gatos monteses que se arrastam: tiram-nos a ti e a mim o que
nos é comum: a imensa e infinita afirmação das coisas.
Nós outros temos
aversão às rasteiras nuvens, a esses seres de meio termo e de composições, a
esses seres mistos que não sabem nem bendizer nem maldizer com todo o seu
coração.
Preferia estar
metido num túnel ou num abismo sem ver o céu, a ver-te a ti, céu de luz,
empanado pelas nuvens que passam!
E muitas vezes
tenho sentido desejos de as trespassar com fulgurantes fios de ouro e rufar
como trovão na sua pança de caldeira: rufar de cólera, visto que me roubam a
mim a tua afirmação — céu puro! céu sereno! abismo de luz! — e roubam-te a ti
em mim.
Que eu prefiro o
ruído e o troar e as execrações do mau tempo a essa calma medida e duvidosa de
gatos.
E “quem não sabe
bendizer deve aprender a maldizer!” De um luminoso céu me caiu, esta
máxima luminosa: — até nas escuras noites brilha esta estrela no meu céu.
Eu, porém, bendigo
e afirmo sempre, contanto que me rodeies, céu sereno, abismo de luz! A todos os
abismos, pois, levo a minha benfeitora afirmação.
Eu cheguei a ser o
que bendiz e afirma; tenho sido um lutador a fim de um dia ter as mãos livres
para abençoar.
E a minha bênção
consiste em estar por cima de cada coisa com o seu próprio céu, a sua redonda
abóbada, a sua abóbada cerúlea e sua eterna serenidade: e bem aventurado
daquele que assim abençoa!
Que todas as coisas
são batizadas na fonte da eternidade e além do bem e do mal; mas o bem e o mal
mesmo não são mais do que sombras interpostas, úmidas aflições e nuvens
passageiras.
Há bênção
certamente, e não maldição quando eu predico: “Sobre todas as coisas se
encontra o céu Azar, o céu Inocência, o céu Acaso e o céu Ufania.”
“Por azar” é esta a
mais antiga nobreza do mundo; eu a restituí a todas as coisas; eu as livrei da
servidão do fim.
Essa liberdade e
essa serenidade celeste colocaram-nas como abóbadas cerúleas sobre todas as
coisas, ao ensinar que acima delas, e por elas, nenhuma “vontade eterna”
queria.
Eu pus, em vez
desta vontade, essa petulância, essa loucura quando ensinei: Há uma coisa
impossível em qualquer parte, e essa coisa é a racionalidade.
Um pouco de razão,
um grão de sensatez, disperso de estrela em estrela, é a levadura
indubitavelmente misturada a todas as coisas: por causa da loucura se acha a
sensatez misturada a todas as coisas!
Um pouco de
sensatez é possível: mas eu encontrei em todas as coisas esta benfeitora
certeza: preferem bailar sobre os pés do acaso.
Ó! céu puro e
excelso! A tua pureza para mim consiste agora em que não haja nenhuma aranha,
nem teia de aranha eterna da razão: em seres um salão de baile para os azares
divinos, uma mesa divina para os divinos dados e jogadores de dados.
Mas, sorris-te?
Disse coisas indizíveis? Maldisse-te querendo abençoar-te?
O que te faz sorrir
é a vergonha de ser dois. Mandas-me retirar e calar, porque chega agora o dia?
O mundo é profundo,
e mais profundo do que jamais pensou o dia. Nem tudo pode falar diante do dia.
Mas chega o dia. Separemo-nos então!
Ó! céu desenrolado
sobre mim, céu pudico e incendido! Ó! felicidade antecedente à saída do sol!
Chega o dia. Separemo-nos!”
Assim falava
Zaratustra.
DA VIRTUDE
AMESQUINHADORA
I
Quando Zaratustra
chegou à terra firme não foi logo direto à sua montanha e à sua caverna, mas
deu muitas voltas e fez muitas perguntas para se informar duma porção de
coisas; e dizia de si para consigo, gracejando: “Eis aqui um rio que, por mil
voltas, retrocede à sua nascente!” Que ele queria saber o que fora feito do homem
durante a sua ausência: se se tornara maior ou mais pequeno. E um dia
divisou uma fileira de casas novas; admirado, disse: “Que significam aquelas
casas? Em verdade, nenhuma alma grande as edificou como símbolo de si mesma.
Tirá-las-ia da sua
caixa de brinquedos algum rapazinho idiota?
Pois torne-as a
meter na caixa outro rapazinho!
E aqueles aposentos
e desvãos! Poderão ali entrar e sair homens? Parecem-me feitos para bichos de
sedas ou para gatos gulosos, que talvez se deixam também comer”.
E Zaratustra
ficou-se a refletir. Por fim disse com tristeza: “Tudo se tornou
pequeno!”
Por toda a parte
vejo portas mais baixas; aquele que é da minha espécie ainda poderá talvez
passar por elas, mas tem que se agachar!
Ó! quando tornarei
para a minha pátria onde já não terei que me curvar... ante os pequenos?
E Zaratustra
suspirou e olhou ao longe.
Nesse mesmo dia
pronunciou o seu discurso sobre a virtude amesquinhadora.
II
“Passo pelo meio
deste povo e abro os olhos; esta gente não me perdoa que eu lhe não inveje as
virtudes”.
Querem morder-me
por eu lhes dizer que as pessoas pequenas necessitam pequenas virtudes, e
porque me é difícil conceber que sejam, necessárias as pessoas pequenas.
Estou aqui como
galo em terreiro estranho, que até as galinhas lhe querem picar; mas eu nem por
isso conservo rancor a tais galinhas.
Sou indulgente com
elas como com a pequena moléstia; ser espinhosos para com os pequenos parece-me
um proceder digno de ouriços.
Todos falam de mim
quando estão sentados à noite à roda do lar; falam de mim, mas ninguém pensa em
mim.
Eis o novo silêncio
que aprendi a conhecer; o rumor que fazem à minha roda, estende-me um manto
sobre os pensamentos.
Eles vociferam:
“Que nos quer esta sombria nuvem? Andemos com cautela, não nos traga alguma
epidemia!”
E ultimamente uma
mulher puxou pelo filho que se queria aproximar de mim, e gritou: “Afastai as
crianças! Olhos daqueles queimam as almas das crianças!”
Quando eu falo,
fogem, julgam que a tosse é uma objeção contra os ventos rijos: nada
conjecturam do sussurro da minha felicidade.
“Ainda não temos
tempo para Zaratustra”. — Tal é a sua objeção. — Mas, que importa um tempo que
“não tem tempo” para Zaratustra?
Ainda que me
glorificassem, como poderia adormecer aos seus louvores? O seu elogio é para
mim um cinturão de espinhos: mortificame mesmo depois de o tirar.
E também aprendi
isto entre eles: o que elogia como que entrega, mas em rigor quer que se lhe dê
mais.
Perguntai ao meu pé
se lhe agrada essa maneira de elogiar e de atrair! Verdadeiramente não quer
bailar nem estar quieto a esse som e compasso.
Procuram elogiar-me
a sua modesta virtude e atrair-me para ela; quiseram arrastar o meu pé ao som
da modesta felicidade.
Eu passo pelo meio
do povo e abro os olhos: amesquinharam-me e continuam a amesquinhar-se. Deve-se
isto à sua doutrina da felicidade e da virtude.
É que também são
modestos na sua virtude, porque querem ter as suas conveniências, e só uma
virtude modesta se conforma com as conveniências.
Aprendem também a
andar a seu modo e andar para adiante: a isto chamo eu ir coxeando. São
assim um obstáculo a todos que andam depressa.
E há quem caminhe
para a frente, a olhar para trás e com o pescoço estendido; de boa vontade
disputaria com semelhantes corpos.
Os pés, os olhos
não devem mentir nem desmentir; mas entre as pessoas pequenas há muitas
mentiras.
Alguns deles
querem, mas na maioria apenas são queridos. Alguns são sinceros, mas o mais
deles são maus cômicos.
Há entre eles
cômicos sem o saber e cômicos sem querer; os sinceros são sempre raros,
principalmente os cômicos sinceros.
Escasseia o
varonil: por isso as mulheres se masculinizam. Que só o que for homem bastante emancipará
na mulher... a mulher.
Eis a pior das
hipocrisias que tenho encontrado entre os homens: até os que mandam fingem as
virtudes dos que obedecem.
“Eu sirvo, tu
serves, nós servimos” — assim salmodeia também aqui a hipocrisia dos
governantes.
— E ai quando o
primeiro amo não é mais do que o primeiro servidor!
O meu olhar curioso
deteve-se também na sua hipocrisia, e adivinhou a sua felicidade de moscas e
seu zumbido à roda das vidraças assoalhadas.
Toda a bondade que
vejo é pura fraqueza, toda a justiça e piedade, fraqueza pura.
São corretos, leais
e benévolos uns para com os outros, como são corretos, leais e benévolos entre
si os grãos da areia.
Abraçar
modestamente uma pequena felicidade é o que chamam “resignação”! e ao mesmo
tempo olham de soslaio modestamente para outra pequena felicidade.
No fundo da sua
simplicidade só têm um desejo: que ninguém os prejudique. Por isso são amáveis
com todos e praticam o bem.
Isto, porém, é
covardia, conquanto se chame “virtude”.
E quando a esses
mesquinhos lhes sucede falar com rudeza, eu na sua voz só ouço a farfalheira,
porque toda a rajada de vento os enrouquece!
São hábeis; as suas
virtudes têm dedos hábeis; mas faltam-lhes os pulsos; os seus dedos não sabem
desaparecer por detrás dos pulsos.
Para eles, o que
modera e domestica é a virtude; assim fizeram do lobo um cão e do próprio homem
o melhor animal doméstico do homem.
“Nós colocamos a
nossa caldeira mesmo no meio, — assim me confessa o seu sorriso — a
igual distância dos gladiadores moribundos e dos imundos suínos”.
Isto, porém, é
mediocridade, embora lhe chamem moderação.
III
Passo por entre
este povo e deixo cair muitas palavras; mas não sabem receber nem aprender.
Assombram-se de eu
não vir anatematizar os apetites e os vícios, e na verdade, também não vim para
pôr de sobre-aviso contra os ladrões.
Admiram-se de eu
não estar pronto a afinar e aguçar-lhe a sutileza: como se não tivessem ainda
bastante sábios sutis, cujas vozes chiam aos meus ouvidos como rodas a que
falta óleo.
E quando grito:
“Maldizei todos os demônios covardes que há em vós e quereriam gemer, cruzar as
mãos e adorar”, então eles clamam: “Zaratustra é ímpio”.
E os seus
pregadores de resignação são os que mais vociferam, mas é justamente a esses
que me apraz gritar ao ouvido: “Sim! Eu sou Zaratustra o ímpio!”
Os pregadores de
resignação! Onde quer que haja ruindade, enfermidade e tinha, arrastam-se como
piolhos e só por nojo os não esmago!
Pois bem! Eis o
sermão que lhes prego ao ouvido: eu sou Zaratustra, o ímpio que diz: “Quem há
mais ímpio de que eu, para me regozijar com a sua ensinança?”
Eu sou Zaratustra,
o ímpio: aonde encontrarei semelhantes meus? Semelhantes meus são todos os que
se dão a si próprios, à sua vontade se desprendem de toda a resignação.
Eu sou Zaratustra,
o ímpio; no meu caldeirão cozo todos os sucessos; e só quando estão em ponto é
que lhes dou as boas-vindas como sustento meu.
E mais de um
acidente se me aproximou com ares de senhor; mas a minha vontade falou-lhe
de uma maneira ainda mais dominante, e logo se me ajoelhou aos pés,
suplicando-me lhe desse asilo e acolhesse cordialmente, dizendo em tom
adulador: “Olha Zaratustra: só um amigo pode aproximar-se assim de um amigo!”
A quem falar,
porém, quando ninguém tem os meus ouvidos? Por isso quero gritar a todos os
ventos:
Gente mesquinha
cada vez vos amesquinha mais! Gente acomodatícia, estai-vos esmigalhando! E
acabareis por irdes a pique com a vossa infinidade de minguadas virtudes,
minguadas comissões e de minguada resignação.
O vosso solo é
demasiado fofo e mole! E para uma árvore se tornar grande tem que se
abraçar a duras rochas com duras raízes.
Até o que omitís a
tecer a teia do futuro dos homens, até o vosso nada é uma teia de aranha e uma
aranha que vive o sangue do futuro.
E quando recebeis é
como se furtásseis, mesquinhos e virtuosos; até entre ladrões, contudo, diz a honra:
“Só se deve furtar onde não se pode saquear”.
Isto dá-se: tal é
também uma doutrina de resignação; mas eu vos digo, a vós que amais as vossas
comodidades: isto toma-se e tomar-se-á sempre ainda mais de vós.
Ai! se não
acabardes de uma vez com essa vontade a meias! Não saberdes ser decididos tanto
para a preguiça como para a ação!
Ai! se não
compreenderdes estas palavras minhas: “Fazei sempre o que quiserdes; mas sede
desde logo daqueles que podem querer!”
“Amais sempre o
vosso próximo como a vós mesmos: mas sede desde logo dos que se amam a si
mesmos — dos que se amam com grande desdém”.
Assim falava
Zaratustra, o ímpio.
“Mas, para que
falar, quando ninguém tem os meus ouvidos”? Ainda é hora demasiada matutina
para mim.
Eu sou entre esta
gente o meu próprio precursor, o meu próprio canto de galo nas ruas escuras.
Chega, porém, a sua
hora! Chega também a minha! A cada hora se tornam mais pequenos, mais pobres,
mais estéreis: pobre erva! Pobre terra!
Breve estarão na minha
frente como erva seca, como uma estepe, e verdadeiramente fatigados de si
mesmos, e mais sedentos de fogo que de água!
Ó! bendita a hora
do raio! Ó! mistério dantes do meio-dia! Há de chegar a vez de eu os converter
em corrente de fogo e em profetas de línguas de chamas.
Até profetizarão
com línguas de chamas: já vem, já se aproxima o Grande Meio-dia!”
Assim falava
Zaratustra.
NO MONTE DAS
OLIVEIRAS
“O inverno, mau
hóspede, penetra na minha morada; tenho as mãos arroxeadas do apertão da sua
amizade”.
Honro este hóspede
maligno, mas agrada-me deixá-lo só, safar-me dele, e correndo bem, consegue uma
pessoa safar-se.
Quentes os pés e o
pensamento, corro aonde o vento emudece, até o rincão assoalhado do meu monte
das Oliveiras.
Lá me rio do meu
rigoroso hóspede, e lhe fico agradecido por me livrar das moscas e fazer calar
uma porção de ruídos.
Que ele não gosta
de ouvir zumbir uma mosca, e até a rua põe tão solitário que a luz da lua chega
a ter medo da noite.
É um hóspede
rígido; mas eu honro-o e não rezo ao pançudo deus do fogo, como fazem os
efeminados.
Vale mais bater um
pouco os dentes do que adorar ídolos! — tal a minha condição. — E eu estou mal,
mormente com os deuses do fogo, como o espírito ardente, fervido e taciturno!
Quando amo, amo
melhor no inverno do que no estio; zombo agora melhor e mais animosamente dos
meus amigos desde que o inverno entra em minha casa.
Animosamente, até
chegar a aconchegar-me na cama — ainda então ri e se diverte a minha felicidade
retirada; — será que ri o meu sono enganador?
Arrastar-me... eu?
Nunca na minha vida me arrastei ante os poderosos, e se alguma vez menti foi
por amor. Por isso estou satisfeito até numa cama de inverno.
Um leito humilde
aquece-me mais do que um leito magnífico, porque eu sou zeloso da minha
pobreza. E no inverno é quando a minha pobreza me é mais fiel.
Inauguro todos os
dias com uma maldade: zombo do inverno com um banho frio: isto faz resmungar o
meu rigoroso hóspede.
Gosto também de me
cocegar com uma velazinha, para enfim permitir ao céu sair da pardacenta
aurora. Que eu quando sou mais mau é de madrugada, quando chiam os baldes no
poço e os cavalos relincham pelas ruas sombrias. Então espero impaciente que se
levante o
céu luminoso, o céu
invernal de nívea barba, o velho de cabeça branca: o silencioso céu invernal
que até sobre o seu sol guarda silêncio às vezes.
Aprenderia eu com
ele o amplo silêncio luminoso? Ou ele o aprenderia comigo? Ou cada um de nós o
inventou para si mesmo?
A origem de todas
as coisas boas é múltipla; todas as boas coisas folgazãs saltam de prazer à
existência: como só o farão uma vez!
Também o longo
silêncio é uma coisa boa, cheia de travessura. E olhar, à semelhança de um céu
de inverno, com sereno semblante de olhos redondos, calar, como ele faz, o seu
sol e a sua inflexível vontade de sol: essa arte e essa malícia do inverno
aprendi-a eu bem.
A minha arte e a
minha mais cara malícia em que o meu silêncio tenha aprendido a se não delatar
pelo silêncio.
Com palavras e
ruídos de dados, entretenho-me a iludir a gente solene que anda à espreita;
quero que a minha vontade e o meu fim se subtraíam a esses severos
observadores.
Para ninguém poder
ver o meu fundo íntimo e a minha última vontade, inventei o longo e claro
silêncio.
Encontrei mais de
um inteligente que velava o semblante e turvava a sua água, para ninguém poder
olhar através e para o fundo.
Era, porém, a ele
positivamente que acudiam os astutos desconfiados; pescavam-se-lhe os peixes
mais escondidos!
Mas os claros, os
bravos, os transparentes, esses são para mim os mais silenciosos astutos: o seu
fundo é tão profundo que a mais límpida água o denuncia.
Silencioso céu
invernal de barba nívea, branca cabeça de redondos olhos que te ergues sobre
mim! Ó! símbolo divino da minha alma e da travessura da minha alma!
E não será
mister que eu me esconda como quem tragou ouro, para me não abrirem a alma?
Não será mister que
eu use andas, para não repararem no comprimento das minhas pernas todos esses
tristes invejosos que me rodeiam?
Todas essas almas
defumadas, corrompidas, consumidas, aborrecidas, azedadas, como poderiam suportar
com a sua inveja a minha ventura?
Por isso lhes
revelo somente o inverno e gelo dos meus píncaros; mas não lhes revelo que
ainda cingem a minha montanha todas as zonas solares.
Só ouvem sibilar as
minhas tempestades de inverno; mas não sabem que passo também por quentes
mares, como lânguido, pesado e ardente vento Sul.
Os meus azares e
revezes inspiram-lhes dó; mas as minhas palavras dizem: “Deixai vir a
mim o azar: é inocente como uma criança”.
Como poderiam suportar
a minha ventura, se eu a não rodeasse de acidentes e misérias invernais, de
tocas de urso branco e mantos de céu de neve! Se eu não tivesse dó da sua compaixão,
da compaixão desses tristes invejosos? Se não suspirasse e tiritasse diante
deles, deixando-me envolver pacientemente na sua compaixão.
Eis a sábia e
caritativa malícia da minha alma: não oculta o seu inverno e os seus
ventos gelados; nem sequer oculta as suas frieiras.
A soledade de uns é
fuga da enfermidade; a de outros é a fuga perante a enfermidade.
Ouça-me tiritar e
suspirar ante o frio do inverno toda essa miséria velhaca e invejosa que me
rodeia! Com tais arrepios e suspiros fujo dos seus quartos abrasados.
Lastimem-me e
tenham dó de mim pelas minhas frieiras: “Acabará por se gelar com o gelo
do seu conhecimento!” — É assim que gemem.
“Eu, entretanto,
corro de cá para lá, com os pés quentes, pelo meu monte das Oliveiras; no
retiro assoalhado do meu monte das Oliveiras canto e escarneço de toda a
compaixão”.
Assim cantava
Zaratustra.
DE PASSAGEM
Atravessando assim
lentamente muitos povos e cidades, tornava Zaratustra para a sua montanha e a
sua caverna. E caminhando de passagem chegou também de improviso à porta da grande
cidade; mas aí caiu sobre ele, impedindo-lhe a entrada com os braços estendidos,
um doido furioso. Era o mesmo louco a que o povo chamava “o macaco de
Zaratustra” porque imitava um tanto a forma e acadência da sua frase, e lhe
agradava também explorar o tesouro da sua sabedoria.
O doido, portanto,
falou assim a Zaratustra:
“Ó! Zaratustra! é
esta a grande cidade: aqui nada tens que procurar, mas tudo a perder.
Para que queres
introduzir-te neste lodaçal? Tem dó dos teus pés! Cospe à porta da cidade e
torna sobre os teus passos!
Isto é um inferno
para os pensamentos solitários. Aqui se cozem vivos os grandes pensamentos,
aqui se reduzem à papa.
Aqui apodrecem
todos os grandes sentimentos; aqui só se pode ouvir o crepitar das paixonetas
ressequidas.
Não sentes já o
cheiro dos matadouros e das baiúcas do espirito? Não fumega esta cidade com os
vapores do espíritos sacrificados?
Não vês,
penduradas, as almas, como frangalhos sujos? E desses frangalhos, todavia,
fazem periódicos!
Não ouves como aqui
se troca o engenho em jogo de palavras? Cospem repugnantes intrigas verbais! E
dessas intrigas fazem, os de cá, periódicos!
Provocam-se sem
saber porque. Entusiasmam-se e não sabem porque. Chocalham com a sua lâmina de
folha e tilintam com o seu ouro.
Sentem frio e
procuram calor nas bebidas quentes; acaloram-se e procuram frescura nos
espíritos álgidos; a opinião publica consume-os e torna-os febris.
Todos os apetites e
todos os vícios assentaram aqui; mas há também virtuosos, há muitas virtudes
hábeis e laboriosas, virtudes com dedos expeditos, com carnes duras para
suportar boas assentadas, com o peito adornado de cruzinhas bentas por
raparigas enchumaçadas e sem nádegas.
Também há aqui
muita devoção, muita lisonja cortesã e muitas baixezas ante o deus dos
exércitos.
“De cima” chovem as
estrelinhas e as magnânimas cuspideiras; para cima vão os desejos de todos os
peitos desprovidos de estrelinhas.
A lua tem a sua
corte, e a corte seus satélites; mas o povo mendicante e as hábeis virtudes
mendicantes rezam a tudo o que vem da corte.
“Eu sirvo, tu
serves, nós servimos”. Assim rezam ao soberano todas as virtudes hábeis, para
que a merecida estrela se prenda afinal ao peito esquálido.
A lua, porém, gira
em torno de tudo quanto é terrestre; assim também o soberano gira em torno do
que há de mais terrestre: o ourodos merceeiros.
O deus dos
exércitos não é o deus das barras de ouro; o soberano propõe, mas o
merceeiro... dispõe.
Em nome de tudo
quanto é claro, forte e bom que em ti existe, Zaratustra, cospe a esta cidade
dos merceeiros e torna para trás!
Aqui corre sangue
viciado, pobre e espumoso, por todas as veias; cospe à grande cidade, que é o
grande vasadouro onde se acumulam todos os excrementos.
Cospe à cidade das
almas deprimidas e dos peitos estreitos, dos olhos penetrantes e dos dedos
viscosos; à cidade dos importunos e dos impertinentes, dos escritorzitos e dos
palradores, dos ambiciosos exasperados; à cidade onde se reúne todo o
carcomido, desconsiderado, sensual, sombrio, putrefato, ulcerado e conjurado;
cospe à grande cidade e torna sobre os teus passos!”
Neste ponto porém
Zaratustra interrompeu o louco furioso e tapou-lhe a boca.
“Cala-te”! —
exclamou Zaratustra. — Já é tempo de me deixares com a tua linguagem e as tuas
maneiras.
Por que tens vivido
tanto tempo à beira do pântano, a ponto de tu mesmo te converteres em rã e
sapo?
Não correrá agora
em tuas próprias veias um sangue de pântano, viciado e espumoso, para teres
aprendido a guinchar e a blasfemar assim?
Porque te não
retiraste para o bosque? Porque não lavraste a terra? Não está o mar cheio de
ilhas verdejantes?
Desprezo o teu
desdém; e já que me prevines, porque te não prevenistes a ti mesmo?
Só do amor há de
surgir o meu desdém e a minha ave anunciadora; não do pântano!
Chamam-te o meu
macaco, doido raivoso; mas eu chamo-te suíno grunhidor; com o teu grunhido
acabas por me estropiar o meu elogio da loucura.
Em princípio, quem
foi que te fez grunhir? Não te adularam bastante. Por isso te sentaste
ao lado dessas imundícies, a fim de teres numerosas razões de vingança.
Que a vingança, louco vaidoso, é a tua espuma toda: calei-te perfeitamente!
A tua língua de
louco, porém, prejudica-me até naquilo em que tens razão. E ainda que tivesse
mil vezes razão a palavra de Zaratustra, tu sempre ma tirarias com a
minha própria palavra!”
Assim falava
Zaratustra, e olhando a grande cidade, suspirou e ficou longo tempo calado. Por
fim disse: “Também eu estou desgostoso nesta grande cidade, e não é só deste
louco”. Aqui e ali nada há que melhorar, nada há que piorar.
Ai desta grande
cidade! Quereria ver já a coluna de fogo em que se há de consumir.
Que tais colunas de
fogo hão de proceder o grande meio-dia: Isto, contudo, tem o seu tempo e o seu
próprio destino.
A ti, louco, te dou
este ensinamento a modo de despedida: onde já se não pode amar, deve-se... passar!”
Assim falava
Zaratustra, e passou por diante do louco e da grande cidade.
DOS TRÂNSFUGAS
I
“Ai! como já está
triste e cinzento neste prado tudo o que há pouco estava ainda verde e cheio de
cor! E quanto mel de esperança eu daqui levei à minha colmeia!
Todos estes
corações juvenis se tornaram já velhos: e nem velhos sequer! Simplesmente
fatigados, comuns e cômodos. Explicam-no dizendo:
“Tornamos a ser
piedosos”.
Ainda não há muito
os vi à primeira hora a andar briosamente; mas as pernas do conhecimento
fatigaram-se-lhes e agora caluniam até os seus brios da manhã.
Na verdade, mais de
um alçava dantes as pernas como um bailarino; o riso acenava-lhe com a minha
sabedoria; mas depois refletiu e acabo de o ver curvado... arrastando-se até à
cruz.
Dantes giravam em
redor da luz e da liberdade como mosquitos e jovens poetas.
Um pouco mais
velhos, um pouco mais frios, e já estão acocorados ao amor do lume como
santarrões.
Desfaleceram por me
haver tragado a soledade como uma baleia? Teriam debalde prestado
ouvidos durante longo tempo às minhas trombetas e aos meus gritos de arauto?
Ai! Sempre são
muito poucos os que têm um coração de largo fôlego e larga impetuosidade; e são
também os únicos de espíritos perseverante. Tudo o mais é covardia.
E o mais é sempre a
grande massa, o ordinário; o supérfluo, os que estão de mais. Todos estes são
covardes!
Aquele que for da
minha têmpera tropeçará no seu caminho com aventuras iguais às minhas; de forma
que os seus primeiros companheiros devem ser cadáveres e acróbatas.
Os seus segundos
companheiros, porém, chamar-se-ão seus crentes: um enxame animado, muito
amor, muita loucura, muita veneração infantil.
A estes crentes não
deverá ligar o seu coração aquele que dentre os homens for da minha índole;
nessas primaveras e nesses prados de variadas cores, o que conhece não deve
presumir a fraca e fugitiva condição humana.
Se pudessem doutra
maneira quereriam também doutra maneira. As coisas por metade prejudicam
o todo. Se há folhas que murcham, porque se há de queixar uma pessoa?
Deixa-a cair, Zaratustra,
e não te queixes! Pelo contrário: varre-as com o sopro do teu vento; varre
essas folhas, Zaratustra! Aparte-se de ti tudo quanto é murcho!
II
“Tornamos a ser
piedosos” — assim confessam os trânsfugas; e muitos deles ainda são demasiados
covardes para o confessar assim.
A estes encaro eu,
a estes digo eu nas suas caras envergonhadas: Sois vós os que rezam outra
vez!
Rezar, todavia, é
uma vergonha! Não para toda a gente; mas para ti e para mim e para quantos têm
a sua consciência na cabeça. Para ti é uma vergonha rezar!
Bem o sabes: o
covarde demônio que dentro de ti se compraz em juntar as mãos e em cruzar os
braços, e que desejaria ter uma vida mais fácil, esse covarde demônio disse-te:
“Há um Deus!”
Assim, pois, fazes
parte dos que temem a luz, daqueles a quem a luz nunca deixa repouso; tens
agora que ocultar todos os dias a cabeça mais profundamente na noite e nas trevas.
E, na verdade,
escolheste bem a tua hora; porque as aves noturnas tornaram a erguer o vôo.
Chegou a hora dos seres que temem a luz, a hora do descanso em que... se não descansa.
Ouço-o bem: chegou
a hora da sua caçada — não de uma caçada infernal, mas mansa, suave, farejando
pelos cantos sem fazer mais ruído que o murmúrio de uma reza: caçadas de
santarrões cheios de alma: todas as ratoeiras dos corações estão novamente
preparadas!
E onde quer que
erga uma cortina logo sai para fora uma borboleta noturna.
Estaria ali
acaçapada com outra borboleta noturna? Que eu em toda a parte pressinto
pequenas comunidades ocultas e em toda a parte em que houver esconderijos
haverá novos beatos e cheiro de beatos.
Estarão reunidos
durante noites inteiras e dizem entre si: — “Tornemos a ser crianças e
invoquemos o Senhor!” Os piedosos confeiteiros deram-lhe cabo da boca e do
estômago.
Ou contemplam
durante longas noites alguma astuta aranha espreitando, que predica a astúcia
às próprias aranhas, ensinando: “É bom tecer sob as cruzes!”
Ou passam dias
inteiros sentados, munidos de canas de pesca, na margem dos pântanos, e julgam
que aquilo é que é ser profundo; mas o que pesca onde não há peixes
parece-me que nem sequer é superficial.
Ou aprendem
alegremente a tocar harpa com um versejador que se desejaria insinuar no
coração das donzelas, porque está cansado das velhas e dos seus elogios.
Ou aprendem a
espavorir-se com algum sábio tresloucado que espera em quartos escuros que
apareçam os espíritos... enquanto o seu espírito desaparece completamente!
Ou escutam um velho
charlatão, músico ambulante a quem ventos tristes ensinaram toadas lamentosas:
agora sibila à semelhança do vento e predica a compreensão em tom compungido.
E alguns até se
tornam guardas-noturnos; sabem agora tocar cornetas, rondar de noite e
despertar antigas coisas há muito tempo adormecidas.
Ontem à noite, ao
lado do ripado de um jardim, ouvi algumas palavras a propósito dessas coisas
alheias que procediam desses velhos guardas, tristes e mirrados.
“Sendo pai, não
vela bastante pelos filhos: pais humanos fazem-no melhor do que ele”.
“É velho demais. Já
nada se ocupa dos seus filhos”. Assim respondeu o outro guarda.
“Mas terá ele filhos?
Ninguém o pode provar, se ele mesmo o não prova. Há muito que eu quereria que
ele o provasse fundamente”.
“Provar? Acaso
provou ele alguma vez alguma coisa? Custam-lhe as provas; tem muito
empenho em que o acreditem”.
“Sim, sim! Salva-o
a fé, a fé em si mesmo! É a condição dos velhos! A nós sucede-nos o mesmo!”
Assim conversaram
os dois morcegos, inimigos da luz: depois tocaram tristemente as cornetas; eis
o que se passou ontem à noite, ao lado do velho ripado do jardim.
Entretanto o meu
coração contorcia-se de riso; queria estalar, mas não sabia como, e ria, ria.
Na verdade, a minha
morte será afogar-me em riso, vendo asnos embriagados e ouvindo assim morcegos
duvidarem de Deus.
Não passou há muito
o tempo de tais dúvidas? Quem teria ainda o direito de despertar do seu sono
coisas tão inimigas da luz?
Há muito que se acabaram
os antigos deuses, e na verdade tiveram um bom e alegre fim divino!
Não passaram pelo
“crepúsculo” para caminhar para a morte — é uma mentira dize-lo! — Pelo
contrário: mataram-se a si mesmos a poder de... riso!
Sucedeu isso quando
chegaram a pronunciar-se por um deus as palavras mais ímpias — as palavras: Só
há um Deus! Não terás outros deuses a par de mim!
Um deus velho,
colérico e zeloso, que se excedeu a este ponto.
Então todos os
deuses se puseram a rir, e agitando-se nos seus assentos, exclamaram: “Não se
baseia precisamente a divindade em haver deuses, e não Deus? Quem tiver ouvidos
que ouça”.
Assim falava
Zaratustra na cidade que amava, e que se chama a “Vaca Malhada”. Que dali só
mediam dois dias de caminho para chegar à sua caverna ao pé dos animais que
amava, e sempre se lhe alegrava a alma ao aproximar-se o seu regresso.
O REGRESSO
Ó! Soledade! Pátria
minha! Vivi muito tempo selvagem em selvagens paises estranhos para não
regressar a ti sem lágrimas!
Ameaça-me agora com
o dedo, como uma mãe, sorri-me como sorri uma mãe, e diz somente: “Quem foi que
em tempos fugiu do meu lado como um torvelinho”? Aquele que ao retirar-se
exclamou: Demasiado tempo fiz companhia à soledade; esqueci então o silêncio?
Foi isso sem dúvida, o que ora aprendeste?
Ó! Zaratustra! sei
tudo! e sei que tu, irmão, te sentias mais abandonado entre a multidão
do que jamais estiveste comigo.
Uma coisa é o
abandono, e outra a soledade; eis o que aprendeste agora! Que entre os homens
serás sempre selvagem e estranho mesmo que te amem; porque, primeiro que tudo
querem que se lhes guarde consideração.
Aqui, porém, estás
na tua pátria e na tua casa; podes aqui dizer tudo e espraiar-te completamente:
aqui ninguém se envergonha de sentimentos ocultos e tenazes.
Aqui todas as
coisas se aproximam da tua palavra com carícias e te animam: porque te querem
subir ao ombro. Montado em todos os símbolos, cavalgas aqui para todas as
verdades.
Aqui podes falar a
todas as coisas com retidão e franqueza, e, na verdade, tudo o que se lhes fale
com retidão lhes soa como um elogio.
O abandono é muito
diferente. Recordas-te, Zaratustra? quando a tua ave se pôs a gritar por cima
de ti, estando tu no bosque, indeciso, sem saber para onde ir, ao lado de um
cadáver, quando dizias: “Guiem-me os meus animais! Encontrei mais perigo entre
os homens do que entre os animais”. Aquilo era abandono.
E lembras-te,
Zaratustra? Quando estavas sentado na tua ilha, fonte de vinho entre baldes
vazios, dando de beber constantemente aos sequiosos, até que afinal foste o
único sequioso entre bêbados, e dizias de noite lastimando-te: “Não será maior gozo
aceitar do que dar? E não será gozo ainda maior roubar que aceitar?” Aquilo
era abandono!
E recordas-te,
Zaratustra? Quando chegou a tua hora mais silenciosa e te pôs fora de ti:
quando te segredou maliciosamente: “Fala e sucumbe!” Quando te desgostou da tua
espera e do teu silêncio, e abateu o teu decaído ânimo? Aquilo era
abandono!”
Ó! soledade! Pátria
minha! Como a tua voz me fala celestial e afetuosamente!
Nós não nos
interrogamos, não nos queixamos um ao outro: francamente passamos juntos pelas
portas francas.
Que em ti está
franco e iluminado, e as próprias horas deslizam aqui mais ligeiras, pois na
obscuridade o tempo nos parece mais pesado do que à luz.
Aqui se me revela a
essência e a expressão de todas as coisas: tudo o que existe se quer exprimir
aqui, e tudo o que está em via de existir quer aprender a falar de mim.
Além todo o discurso
é vão! A melhor sabedoria é esquecer e passar: foi isto o que aprendeste
agora.
O que quisesse
compreender tudo entre os homens teria que aprender tudo: mas, para isso, tenho
eu as mãos limpas demais.
A mim já me não
agrada respirar o seu hálito. Ai! ter eu vivido tanto tempo entre o seu ruído e
o seu mau hálito.
Ó! bendita
soledade! Ó! puros aromas! Como este silêncio aspira o ar puro a plenos
pulmões! Como este bendito silêncio escuta!
Em troca, além tudo
fala e nada se ouve. Embora uma pessoa anuncie o seu saber a toques de
campainha, os merceeiros abafarão o som na praça pública com o ruído das suas
moedas.
Entre eles tudo
fala: já ninguém sabe compreender. Tudo cai à água; nada cai em fontes
profundas.
Entre eles tudo
fala; já nada se consegue nem conclui.
Tudo cacareja; mas,
quem é que quer ficar ainda no ninho a chocar ovos?
Entre eles tudo
fala, tudo se dilui. E o que ontem era ainda demasiado duro para o próprio
tempo e para os seus dentes, hoje pende, despegado e roído, da boca dos homens
atuais.
Entre eles tudo
fala, tudo se divulga. E o que antigamente se chamava mistério e segredo das
almas profundas, pertence hoje às tormentas do arroio.
Ó! singular
natureza humana! Bulício em ruas escuras. Agora ficas atrás de mim: o meu maior
perigo fica atrás!
As contemplações e
a compaixão foram sempre o meu maior risco, e todos os seres humanos querem ser
contemplados e socorridos.
Com verdades
dissimuladas, com as mãos loucas e enlouquecido coração, rico em piedosas
mentiras; assim vivi sempre entre os homens.
Eu estava entre
eles disfarçado, disposto a desconhecer-me para os suportar, comprazendo-me em
dizer para me convencer: “Louco, não conheces os homens!”
Esquece-se o que os
homens são quando se vive com eles. Há demasiadas afinidades em todos os homens.
E se eles me
desconheciam, eu, louco, olhava-os ainda com mais indulgência do que a mim —
pois estava acostumado a ser rigoroso para mim mesmo — e freqüentes vezes me
vingava em mim dessa indulgência.
Picado de moscas
venenosas e roído como pedras pelas numerosas gotas de maldade, assim estava eu
entre eles, e ainda dizia comigo:
“Tudo quanto há de
pequeno é inocente da sua pequenez!”
Especialmente os
chamados “bons” foram os que me pareceram as moscas mais venenosas: picam com
toda a inocência; mentem com toda inocência. Como poderiam ser justos comigo?!
A piedade ensina a
mentir aos que vivem entre os homens. A piedade torna a atmosfera carregada
para todas as almas livres. Que a estupidez dos bons é insondável.
Ocultar-me a mim
mesmo é minha riqueza: eis o que lá aprendi — porque todos se me mostram
pobres de espírito.
A mentira da minha
compaixão, foi olhar e sentir em cada um o que para ele era bastante espírito
e o que era espírito demais.
Aos seus rígidos
sábios chamei sábios, mas não rígidos — aprendi assim a comer palavras. — Aos
seus coveiros chamei investigadores e escrutadores — aprendi assim a trocar
palavras.
Os coveiros colhem
enfermidades à força de cavar sepulturas. Sob velhos escombros dormem exalações
insalubres.
Não é necessário
remover os atoleiros; basta viver nos montes.
Com o nariz
satisfeito respiro outra vez a liberdade dos montes! Afinal libertou-se o meu
nariz do cheiro de todos os seres humanos!
Cocegada pelo ar
vivo como por vinhos espumantes, a minha alma buliçosa exclama contente:
“À tua saúde!”
Assim falava
Zaratustra.
DOS TRÊS MALES
I
“No meu último
sonho de madrugada, encontrava-me eu num promontório”... para além do mundo; tinha
uma balança na mão e pesava o mundo.
Ó! Por que veio a
aurora demasiado cedo para mim? Despertou-me o ardor da muita zelosa! Que ela é
sempre zelosa do ardor dos meus sonhos matinais.
Medível para o que
tem tempo, pesável para um bom pesador, exeqüível para asas vigorosas,
adivinhável para divinos brita-nozes: assim viu o meu sonho o mundo.
O meu sonho,
atrevido navegante, meio baixel, meio rajada de vento, silencioso como a
mariposa, impaciente como o falcão; que paciência teve hoje para pesar o mundo!
Falar-lhe-ia em
segredo a minha sabedoria, a minha sabedoria diurna, risonha e desperta que
zomba de todos “os mundos infinitos”?
Que ela diz: “Onde
há força conquista-se também o número, que é o que tem mais força”.
Com que segurança o
meu sonho olhou este mundo infinito! Não era curiosidade, nem indiscreção, nem
temor, nem súplica.
Como se
apresentasse à mão uma grande maçã — uma maçã de ouro, madura, fresca e macia
pele — assim se me apresentou o mundo.
Como se uma árvore
me acenasse — uma árvore de grandes ramos, de vontade firme, curvada como para
presentear com o seu apoio ofatigado viajante: — assim se encontrava o mundo no
meu promontório.
Como se graciosas
mãos me estendessem um cofre — um cofre aberto para deleite dos ursos púdicos e
reverentes: — assim saiu o mundo ao meu encontro.
Enigma insuficiente
para afujentar o amor dos homens; solução incapaz de adormecer a sabedoria dos
homens; uma coisa humanamente boa: tal me pareceu hoje o mundo de que tanto mal
se diz.
Quanto agradecido
estou ao meu sonho da manhã por ter assim pesado o mundo à primeira hora! Como
uma coisa humanamente boa, me chegou esse consolador do coração!
E para proceder
como ele, para me servir de exemplo o melhor seu, quero pôr agora na balança os
três males maiores e pesar humanamente bem.
O que ensinou a
abençoar ensinou também a amaldiçoar; quais são as três coisas mais
amaldiçoadas no mundo? São essas que quero pôr na balança.
A volutuosidade,
o desejo de dominação, o egoísmo: estas três coisas têm sido as mais
difamadas e caluniadas até hoje; são estas três coisas que quero pesar
humanamente bem.
Belo! Eis aqui o
meu promontório, e eis ali o mar: com mil carícias se me dirige, correndo, o
mar ondeado, esse cão velho e fiel, monstro de cem cabeças a quem eu estimo.
Pois hei-de aqui
suster a balança, sobre o mar undoso; e elejo também uma testemunha; és tu,
árvore solitária, de forte perfume e de ampla abóbada, árvore querida!
Por que ponte vai o
presente para o futuro? Qual é a força que compele o alto a descer para baixo?
E que foi que obrigou a coisa mais alta a crescer ainda mais?
Agora a balança
está imóvel e em equilíbrio: lancei nela três pesadas perguntas: o outro prato
sustém três pesadas respostas.
II
Volutuosidade, és
para todos os desprezadores do corpo cingidos de cilício, o seu aguilhão e
mortificação, e o “mundo maldito” para todos os que crêem em além-mundos;
porque a volutuosidade se ri e moteja de todos os heréticos.
Volutuosidaide, és
para a canalha o fogo lento em que a queimam; para toda a madeira carcomida e
de todos os trabalhos hediondos o grande forno ardente.
Volutuosidade, és
para os corações livres qualquer coisa inocente e livre, as delícias do jardim
terrestre, transbordante gratidão do futuro presente.
Volutuosidade, só
és um veneno deleitoso para os melancólicos; para os que têm a vontade do leão,
és o maior cordial, o vinho dos vinhos, que se economiza religiosamente.
Volutuosidade és a
maior felicidade simbólica para a ventura e a esperança superior. Que há muitas
coisas a que é permitido o consórcio, e mais que o consórcio, muitas coisas que
são mais estranhas para si do que o homem para a mulher; e quem compreendeu,
até que ponto são estranhos um para o outro, o homem e a mulher?
Volutuosidade...
Mas quero limitar os meus pensamentos e também as minhas palavras, para os
sórdidos e os exaltados me não invadirem os jardins.
Desejo de dominar:
o açoite pungente dos mais duros de todos os corações endurecidos, o martírio
espantoso reservado ao mais cruel, a chama sombria das fogueiras vivas.
Desejo de dominar:
o afã que sentem os povos mais vãos, o que zomba de todas as virtudes incertas,
o que cavalga sobre todos os orgulhos.
Desejo de dominar:
o terremoto que quebra e desagrega tudo quanto é velho e oco, o furioso
destruidor de todos os sepulcros caídos, o sinal de interrogação que surge ao
lado das respostas prematuras.
Desejo de dominar:
ante cujo olhar se arrasta e humilha o homem, descendo abaixo da cobra e do
suíno, até que, enfim, clama nele o grande desprezo.
Desejo de dominar:
o terrível mestre que ensina o grande desprezo, que predica na cara de cidades
e de impérios: “Tira-te dai!” até que afinal exclamam eles próprios: “Fora
eu!”.
Desejo de dominar:
que ascende também até os puros e os solitários a fim de os atrair, que ascende
até às alturas da satisfação de si mesmo, ardente como um amor que pinta no céu
terrestre sedutoras beatitudes purpúreas.
Desejo de
dominar... Mas, quem quereria chamar a isto um desejo quando para baixo
é que a altura aspira ao poder!
Nada há de febril
nem doentio em tais desejos e decadências!
Não se condene a
altura solitária à eterna soledade, nem se contente de si! Desçam às montanhas
para os vales e os ventos das alturas para as planícies!
Ó! quem encontrasse
o verdadeiro nome para batizar e honrar semelhante desejo! “Virtude dadivosa”.
Assim chamou Zaratustra noutro tempo a essa coisa inefável.
E também então —
pela primeira vez, de certo — elogiou a sua palavra o egoísmo, o bom e o
são egoísmo que brota da sua alma poderosa a que corresponde o corpo elevado,
belo, vitorioso e reconfortante, em redor do qual tudo se troca em espelho: o
corpo flexível e persuasivo, o dançarino cujo símbolo e expressão é a alma
contente de si mesma.
Ao próprio
contentamento de tais corpos e tais almas chama-se “virtude”.
Com os seus
assertos sobre o bem e o mal essa alegria protege-se a si própria como se se
rodeasse de bosques sagrados; com os nomes da sua ventura, desterra para longe
de si tudo o que é desprezível.
Desterra para longe
de si tudo quanto é covarde; diz ela: Mau é o que é covarde.
Desprezível lhe
parece o que sofre, suspira e se queixa sempre e arrebanha até as menores
utilidades.
Despreza também
toda a sabedoria que floresce na obscuridade, uma sabedoria de sombra noturna,
como a que suspira sempre “tudo é vão”.
Não estima a
medrosa desconfiança, nem o que quer juramentos em vez de olhares e mãos,
tampouco a sabedoria desconfiada demais porque tudo isto é próprio de almas
covardes.
Ainda mais baixo
lhe parece o obsequioso, o cão que se deita depois de costas, o humilde; e
também há sabedoria humilde, piedosa e obsequiosa.
Odeia e tem asco
àquele que nunca se quer defender, àquele que engole as salivas venenosas e os
olhares de revés, ao pacientíssimo que tudo suporta e com tudo se contenta:
porque isso é próprio da ralé servil.
Se há alguém que é
servil ante os deuses e os pés divinos ou ante os homens e ante estúpidas
opiniões de homens, a todo esse servilismo cospe na cara este bendito
egoísmo.
Mau; assim chama a
tudo o que é baixo, ruim e servil, aos olhos vesgos e submissos, aos corações
contritos e essas criaturas falsas e rasteiras que beijam com lábios covardes.
E pseudo-sabedoria:
chama assim às insulsas pretensões da gente servil, dos velhos e dos
aborrecidos, e sobretudo à absurda loucura pedante dos sacerdotes.
Os falsos sábios,
todos os sacerdotes, os enfastiados do mundo, a gente de alma efeminada e
servil, ó! como tem conseguido o egoísmo com as suas manhas!
E propriamente
devia ser virtude e chamar-se virtude o perseguir o egoísmo!
E todos esses
covardes, e todas essas aranhas cansadas de viver desejam eximir-se com boas
razões de apego à própria pessoa!
Para todos eles,
porém, chega agora a luz, a espada da justiça, o Grande Meio dia:
manifestar-se-ão aqui muitas coisas!
E o que glorifica o
eu e santifica o egoísmo, esse, o adivinho, diz na verdade o que sabe: Vedes:
vem aí, aproxima-se já o Grande Meio dia!”
Assim falava
Zaratustra.
DO ESPÍRITO DO PESADUME
I
“A minha boca é a
do povo: falo grosseiro e singelamente demais para os hipócritas”. A minha
palavra, porém, ainda parece mais estranha aos escrevinhadores.
A minha mão é uma
mão de louco: pobres de todas as mesas e de todas as paredes e de quanto
ofereça espaço para rabiscos e borrões de louco!
O meu pé é casco de
cavalo; com ele troto e galopo por montes e vales, de cá para lá, e no
transporte de toda a carreira rápida sou da pele do diabo.
Meu estômago talvez
seja estômago de águia, pois a tudo prefere a carne de cordeiro; mas,
certamente, é estômago de ave.
Sustentado com
coisas inocentes e com pouco, pronto a voar e impaciente por tomar o vôo: assim
sou. De resto tenho o quer-que-seja de ave!
Eu sou como uma
ave, sobretudo por ser inimigo do espírito do pesadume: inimigo deveras mortal,
inimigo jurado, inimigo inato!
Aonde não voou já a
minha inimizade!
A este respeito
poderia entoar um canto... e quero entoá-lo, conquanto esteja só numa
casa vazia e tenha que o cantar aos meus próprios ouvidos.
Há também outros
cantores que não têm a garganta expedita, a mão eloqüente, expressivo o olhar e
o coração desperto, senão quando têm a casa cheia: não me pareço com eles.
II
Aquele que um dia
ensinar os homens a voar, destruirá todas as barreiras; para eles as próprias
barreiras voarão pelos ares; batizará novamente a terra chamando-lhe “a leve”.
O avestruz corre
mais depressa que o mais veloz corcel; também enterra a cabeça na pesada terra;
assim é o homem que ainda não sabe voar.
A terra e a vida
parecem-lhe pesadas, e é isso o que quer o espírito do pesadume! Aquele que,
porém, deseje ser leve como uma ave deve amar-se a si mesmo: assim predico eu.
Claro, não é
amar-se com o amor dos enfermos e dos febricitantes; porque nestes até o amor
próprio cheira mal.
É preciso aprender
a amar-se a si próprio com o amor são, a fim de aprender a suportar-se a si
mesmo e a não rondar fora de si.
Tal ronda chama-se
“amor ao próximo”; é com esta expressão que se tem mentido e fingido mais,
especialmente por parte daqueles a quem todo o mundo suporta dificilmente.
E não é um
mandamento para hoje nem para amanhã este de aprender a amar-se a si
mesmo. É, pelo contrário, a mais sutil, a mais astuta, a última e a mais
paciente de todas as artes.
Que toda a
propriedade está oculta para o seu possuidor, e de todos os tesouros o que mais
tarde se descobre é o que vos pertence em propriedades: é esta a obra do
espírito do pesadume.
Quase no berço ainda
nos dotam de pesadas palavras e pesados valores: “bem” e “mal” — assim se chama
o patrimônio. — Por causa dele nos desculpam viver.
E se os homens
deixam aproximar de si as crianças é para impedir a tempo que se amem a si
próprias: tal é a obra do espírito do pesadume.
E nós... Arrastamos
fielmente aquilo com que nos carregam, sobre duros ombros e por áridos montes!
Se suamos, dizem-nos: ”É verdade: a vida é uma carga pesada!”
A única coisa
pesada, porém, para o homem levar é o próprio homem! É que arrasta aos ombros
demasiadas coisas estranhas. Como o camelo, ajoelha-se e deixa-se carregar bem.
Mormente o homem
forte, resistente, cheio de veneração: esse carrega aos ombros demasiadas
palavras e valores estranhos e pesados; agora a vida parece-lhe um deserto.
E, na realidade,
muitas coisas que nos são próprias são também pesadas de levar!
E o interior do
homem parece-me muito com a ostra: repelente, viscosa e difícil de apanhar, de
forma que uma nobre concha de nobres adornos se vê obrigada a interceder pelo
resto, mas também se deve aprender essa arte: possuir casca, uma bela
aparência e uma sábia cegueira.
Também nos
enganamos muito acerca do homem, por haver muita casca pobre e triste de
excessiva grossura: Há muita força e bondade ocultas que jamais se adivinharam:
os manjares mais esquisitos não encontram afeiçoados.
As mais delicadas
mulheres o sabem: um pouco mais um pouco menos de carnes, varia muitos
destinos!
O homem é difícil
de descobrir, e ainda mais para si mesmo; a inteligência mente amiúde acerca do
coração. Eis a obra do espírito do pesadume.
Mas aquele que diz:
Este é o meu bem e o meu mal, esse descobriu-se a si mesmo. Com isso faz
emudecer o míope e o anão que dizem:
“Bem para todos,
mal para todos”.
Em verdade, também
me não agradam aqueles para quem todas as coisas são boas, e que chamam a este
mundo o melhor dos mundos.
Chamo-lhes os
insatisfeitos.
A facilidade de
gostar de tudo não é dos melhores gostos. Louvo as línguas delicadas e os
estômagos escrupulosos que aprendem a dizer: “Eu” e “Sim” e “Não”.
Mastigar e digerir
tudo, porém... é fazer como os suínos. Dizer sempre Sim, isso só os
asnos e os da sua espécie aprendem.
O que meu gosto
deseja é o amarelo intenso e o roxo quente — mistura de sangue com todas as
cores. — Mas aquele que caia de branco revela ter uma alma caiada de branco.
Uns enamorados de
música, outros de fantasmas e todos igualmente inimigos da carne e do sangue:
como são todos contrários ao meu gosto. Que a mim agrada-me o sangue.
Eu não quero estar
onde toda a gente escute: é este agora o meu gosto: preferia viver entre
perjuros e ladrões. Ninguém tem ouro na boca.
Mas ainda me
repugnam mais os engulidores de salivas; e ao animal mais repugnante que tenho
visto entre os homens chamei-lhes de parasitas: não queria amar e queria viver
do amor.
Chamo desgraçado a
todos aqueles que só podem escolher entre duas coisas: tornarem-se animais
ferozes ou ferozes domadores de animais; não queria erguer a minha tenda ao seu
lado.
Chamo desgraçado
também aos que têm que estar sempre à espera, são o contrário de mim,
todos esses aduaneiros e tendeiros e reis e demais guardiães de países e de
lojas.
Eu também aprendi
profundamente a esperar, mas a esperar-me a mim. E aprendi sobretudo a
ter-me de pé, a andar, a correr, a saltar, a trepar e a bailar.
Que a minha
doutrina é esta: o que quer aprender a voar um dia, deve desde logo aprender a
ter-se de pé a andar, a correr, a saltar, a trepar e a bailar: não se aprende a
voar logo à primeira!
Com escadas de
corda aprendi a escalar mais de uma janela; com pernas ágeis trepei a elevados
mastros. Não me parecia pequena ventura encontrar-me no cimo dos altos mastros
do conhecimento, oscilando como uma labaredazinha: uma luzinha tão só, mas um
grande consolo, todavia, para as embarcações encalhadas e para os náufragos.
Cheguei à minha
verdade por muitos caminhos e de muitas maneiras; não subi por uma escada só à
altura donde os meus olhos olham ao longe.
E nunca perguntei o
caminho sem me contrariar. — Sempre fui contrário a isso. — Sempre preferi
interrogar e submeter à prova os próprios caminhos.
Provando e
interrogando foi assim que caminhei, e naturalmente é mister aprender também
a responder a semelhantes perguntas.
Eis o meu gosto:
não é um gosto bom nem mau; mas é o meu gosto, e não tenho que o ocultar
nem que me envergonhar dele.
“Este é agora o meu
caminho; onde está o vosso?” Era o que eu respondia aos que me perguntavam
“o caminho”. Que o caminho... o caminho não existe”.
Assim falava
Zaratustra.
DAS ANTIGAS E DAS NOVAS TÁBUAS
I
“Aqui aguardo
sentado, rodeado de antigas tábuas quebradas, e também de tábuas novas
meio-escritas”. Quando chegará a minha hora? A hora do meu descimento, da minha
declinação: porque eu quero voltar outra vez para o laido dos homens.
Eis o que quero
agora: hão de vir os sinais indicadores de que chegou a minha hora: o
leão risonho com o bando de pombas.
Entretanto, como
tenho tempo falo comigo mesmo. Ninguém me conta coisas novas; por conseguinte,
narro-me eu a mim mesmo.
II
Quando vim para o
lado dos homens, achei-os fortificados numa estranha presunção: todos julgavam
saber há muito tempo o que é bem e mal para o homem.
Toda a discussão
sobre a virtude lhes parecia coisa velha e cansada, e o que queria dormir tranqüilamente
até falava do “bem” e do “mal” antes de se ir deitar.
Eu sacudi o torpor
desse sono quando ensinei: Ninguém sabe ainda o que é o bem e mal... a
não ser o criador.
Só o que cria o fim
dos homens e o que dá o sentido e futuro à terra, só esse cria o bem e o mal de
todas as coisas.
E eu ordenei-lhes
que derribassem as suas antigas cátedras, e onde quer que exista essa estranha
presunção, mandei-os rir dos seus grandes mestres de virtude, dos seus santos,
dos seus poetas e dos seus salvadores do mundo.
Mandei-os rir dos
seus sábios austeros, e punha-os em guarda contra os negros espantalhos
plantados na árvore da vida.
Sentei-me à beira
da sua grande rua de sepulturas, até entre os abutres, e ri-me de todo o seu
passado e do triste esplendor desse passado ruinoso.
À semelhança dos
pregadores de quaresma e dos loucos, fulminei anátemas contra as suas grandezas
e pequenezas. — Como é pequeno o melhor deles! E igualmente pequeno o pior! —
Assim me ria.
E freqüentemente o
meu desejo me levou muito longe, mais além, para o alto, por entre riso; eu
então voava estremecendo como uma flecha através dos êxtases ébrios de sol:
voava para remotos futuros que nenhum sonho viu, para meios-dias mais cálidos
dos que jamais pôde sonhar a fantasia — para além onde os deuses se envergonham
de todos os vestidos — a fim de falar em parábolas e balbuciar e coxear como os
poetas, e na verdade, envergonho-me de ser ainda poeta!
Voava aonde todo o
acontecimento me parecia bailes e travessuras divinas, e o mundo só e desenfreado
refugiando-se em si mesmo; como um eterno fugir e procurar muitos desses, como
o bendito contradizer-se, rir-se e tornar a si de muitos deuses.
Aonde todo o tempo
me parecia uma deliciosa zombaria dos instantes, aonde a necessidade era a
mesma liberdade, que brincava satisfeita com o aguilhão dessa liberdade.
Aonde tornei a
encontrar também o meu antigo demônio e inimigo inato, o espírito de pesadume e
tudo o que ele criou: a coação, a lei, a necessidade, a conseqüência, o fim, a
vontade, o bem e o mal.
Pois não é
necessário haver coisas sobre os quais se possa dançar e passear dançando? Não
é necessário que haja, por causa dos leves e dos mais leves, míopes e pesados
anões?
III
Também além apanhei
no meu caminho a palavra “Super-homem” e esta doutrina: o homem é uma coisa que
deve ser superada; o homem há de ser uma ponte, e não um fim: satisfeito do seu
meio-dia e da sua tarde. A palavra de Zaratustra sobre o grande Meio-dia,
suspendi aos ombros como um segundo manto de púrpura.
Fiz-lhes também ver
novas estrelas e novas noites, e sobre as nuvens e o dia e a noite estendi o
riso como um verdadeiro tapete de variadas cores.
Ensinei-lhes todos
os meus pensamentos e todas as minhas aspirações: a concentrar e a unir
tudo o que no homem não é mais que fragmento e enigma e pavoroso azar.
Como poeta, como
adivinho de enigmas, como redentor do azar, ensinei-os a serem criadores do
futuro e a salvar criando tudo o que foi.
Salvar o passado no
homem e transformar tudo “o que foi” até a vontade de dizer: “Mas eu queria que
fosse assim! Assim o hei de querer!”
Eis o que chamei a
sua salvação; só a isso lhes ensinei a chamar salvação.
Agora espero a minha
para voltar pela última vez ao lado deles.
Que mais uma vez
quero voltar para o lado dos homens: quero desaparecer entre eles, e
oferecer-lhes, ao morrer, o mais rico dos dons.
Eis o que aprendi
do sol, desse opulento sol de inesgotável riqueza que, ao pôr-se, derrama o seu
ouro pelo mar; por isso, até os mais pobres pescadores remam com dourados
remos! Vi isto uma vez, e enquanto o via, as minhas lágrimas não se
cansavam de correr...
À maneira do solo,
quer desaparecer também, Zaratustra: senta-se agora aqui a esperar, rodeado de
antigas tábuas quebradas e de tábuas novas... meio-escritas.
IV
Vede: tendes aqui
uma nova tábua; mas onde estão os meus irmãos para a levarem comigo ao vale e
aos corações de carne?
Assim o exige o meu
grande amor aos mais afastados: não vejas pelo teu próximo! O homem é
coisa que deve ser superada.
Pode uma pessoa
chegar a superar-se por múltiplos meios e caminhos: isso é coisa tua. Só
um jogral pensa: “Também se pode saltar por cima do homem:”.
Supera-te a ti
mesmo, até no teu próximo, e não consintas te dêem um direito que possas
conquistar.
O que tu fazes
ninguém to pode tornar a fazer. Fica sabendo: não há recompensa.
O que se não pode
mandar a si mesmo deve obedecer.
E há quem saiba
mandar, mas esteja ainda muito longe de saber obedecer.
V
Tal é a condição
das almas nobres: nada querem ter gratuitamente, e menos que tudo, a
vida.
O que forma parte
da populaça quer viver gratuitamente; mas nós, a quem a vida se deu, pensamos
sempre no melhor que poderíamos dar em troca.
E na verdade é
nobre a linguagem que diz: “O que a vida nos prometeu a nós, queremo-lo nós
cumprir... à vida!”
Não se deve querer
gozar onde se não é motivo de gozo. E... não se deve querer gozar!
Que o gozo e a
inocência são as coisas mais pudicas: nenhuma delas quer ser procurada.
É preciso possuí-las;
mas ainda vale mais procurar a culpa e a dor.
VI
Meus irmãos, aquele
que é uma primícia há de ser sempre sacrificado; e nós agora somos primícias.
Todos sangramos no
altar secreto dos sacrifícios, todos ardemos e nos assamos em honra dos velhos
ídolos.
O melhor de nós é
ainda novo: excita os paladares velhos. A nossa carne é tenra, a nossa pele não
é mais do que uma pele de cordeiro: como não havemos de tentar velhos
sacerdotes idólatras?
Em nós mesmos respira
ainda
o velho sacerdote idólatra que se prepara para celebrar um festim com o melhor
que temos.
Ai, meus irmãos!
como não hão de ser os precursores sacrificados!
Mas assim o quer a
nossa condição, e eu amo os que se não querem conservar. Amo de todo o meu
coração os que desaparecem, porque passam para o outro lado.
VII
Ser verídicos.. .
poucos o sabem! E o que o sabe não o quer ser! E menos que ninguém, os
bons.
Os tais bons. Os
homens bons nunca dizem a verdade: ser bom de tal maneira é uma enfermidade
para o espírito.
Esses bons cedem,
rendem-se; a sua memória repete como um eco e a sua razão obedece; não se
ouve a si mesma!
Tudo quanto os bons
chamam mau deve reunir-se para nascer uma verdade. Ó! meus irmãos! Sois
bastante maus para essa verdade?
A audácia
temerária, a prolongada desconfiança, o cruel Não, a versão, a incisão
no vivo... como é raro isto tudo reunir-se! De tais sementes nasce
todavia... a verdade.
Ao lado da
consciência réproba cresce todo o saber até hoje! Quebrai, quebrai as antigas
tábuas: vós que aspirais ao conhecimento!
VIII
Quando há madeiras
estendidas sobre a água, quando há pontes e parapeitos através do rio, não se
dá crédito a ninguém que diga:
“Tudo corre”.
Pelo contrário: até
os imbecis o contradizem. “Que! — exclamam. — Tudo corre? Então as madeiras e
os parapeitos que estão sobre o rio?” “Por cima do rio tudo é sólido; todos os
valores das coisas, os conceitos, todo o “bem e mal” tudo isso é sólido.
E quando vem o cru
inverno, o domador dos rios, os mais maliciosos aprendem a desconfiar; e não
são só os imbecis que dizem então: “Não estaria tudo imóvel?” “No fundo tudo
permanece imóvel”: eis um verdadeiro ensinamento do inverno, uma boa coisa para
os tempos estéreis, um bom consolo para o sono invernal e os sedentários.
“No fundo tudo
permanece imóvel”; mas o vento do degelo protesta contra esta palavra.
O vento do degelo,
um vento que não lavra, um touro furioso e destruidor que quebra o gelo, com
hastes coléricas! O gelo, por sua parte, quebra as pontes!
Ó! meus irmãos! Não
corre agora tudo! Não cairam à água todos os parapeitos e todas as
pontes! Quem esperaria ainda o bem e o mal?
Ai de nós! Glória a
nós! Sopra o vento do degelo! Pregai isto através de todas as ruas, meus
irmãos.
IX
Há uma estranha
loucura que se chama bem e mal.
A roda dessa
loucura girou até hoje em torno dos adivinhos e dos astrólogos.
Noutro tempo cria-se
nos adivinhos e nos astrólogos, e por isso se cria: “Tudo é
fatalidade: tu deves porque é necessário!”
Desconfiou-se
depois de todos os adivinhos e de todos os astrólogos, e por isso se
acreditou: “Tudo é liberdade: podes porque queres!”
Ó! meus irmãos! Sobre
as estrelas e sobre o futuro não se tem feito até hoje senão conjeturar, sem se
saber nunca; e por isso sobre o bem e o mal não se tem feito senão
conjeturar, sem se saber nunca.
X
“Não roubarás! Não
matarás!” Estas palavras chamavam-se santas noutro tempo; perante elas dobrava
a gente os joelhos e a cabeça, e descalçava-se.
Eu pergunto-vos,
porém: onde houve jamais no mundo melhores salteadores e assassinos que estas
santas palavras? Não há na mesma vida roubo e assassínio? E ao santificar estas
palavras, não se assassinou a própria verdade?
Ou seria predicar a
morte, santificar tudo o que contradizia e desaconselhava a vida? Ó! Meus
irmãos! Quebrai-me as antigas tábuas.
XI
Condôo-me do
passado inteiro quando vejo o seu abandono à mercê do arbítrio, das
disposições, dos desvarios de cada geração que chega e olha tudo o que existiu
como ponto de si mesma.
Poderia vir um
grande déspota, um gênio maléfico que violentasse arbitrariamente todo o
passado, até chegar a ser para ele uma ponte, um prognóstico, um arauto e um
canto de galo.
Mas eis aqui o
outro perigo e a minha outra compaixão: os pensamentos do que forma parte da
população remontam até o avô; mas com o avô acaba o tempo.
Por isso todo o
passado fica ao abandono: porque um dia poderia suceder a populaça tornar-se
senhor, e todo o tempo se afogasse em águas superficiais.
Por isso, meus
irmãos, é preciso uma nova nobreza adversária de toda a populaça e de
todo o despotismo, e que escreva novamente, em novas tábuas, a palavra “nobre”.
Que são necessários
muitos nobres para haver nobreza! Ou como em tempo disse uma parábola:
“A divindade consiste precisamente em haver deuses mas não Deus!”
XII
Ó! Meus irmãos! Ao
ensinar-vos que deveis ser para mim criadores e educadores — semeadores do
futuro — invisto-vos de uma nova pobreza; não é, na verdade, nobreza que
possais comprar como bufarinheiros, e com ouro de bufarinheiros, porque tudo
quanto tem preço, pouco valor tem.
O que vos honrará
para o futuro não será a origem donde vindes, mas o tempo para onde ides! A
vossa vontade e o vosso passo que querem ir mais longe do que vós: cifre-se
nisto a vossa nova honra!
Não em terdes
servido um príncipe — que importam já os príncipes! — ou em vos terdes tornado
muralha do existente para o existente ser mais sólido.
Não em ter-se a
vossa linhagem feito cortesã na corte, e me terdes aprendido como o flamengo, a
estar durante longas horas à beira do lago: porque saber estar de pé é
um mérito nos cortesãos; e todos os cortesãos julgam que ter a autorização de
se sentar faz parte da felicidade depois da morte.
Nem tampouco em que
um espírito a que chamam santo conduziu os vossos ascendentes a terras
prometidas, que eu não elogio; porque no país onde brotou a pior das
árvores — a cruz — nada há a elogiar!
E na verdade, onde
quer que esse “Espirito Santo” conduza os seus cavaleiros, tais cortejos são sempre...
precedidos de cabras, gansos, loucos e tresloucados.
Ó! Meus irmãos! Não
é para trás que a vossa nobreza deve olhar, mas para a frente! Deveis
ser expulsos de todas as pátrias e de todos os países dos vossos ascendentes.
Deveis amar o país
dos vossos filhos: seja este amor a vossa nobreza; o país inexplorado no meio
de longínquos mares; é isto que eu digo às vossas velas que procurem e tornem a
procurar!
Deveis redimir-vos
em vossos filhos de serdes filhos de vossos pais: assim libertareis o
passado todo! Ponho por cima de vós esta nova tábua.
XIII
“Para que viver?
Tudo é vão! Viver... é trilhar palha; viver... é queimar-se sem se chegar a
aquecer”.
Estas velhas
cantilenas passam ainda por “sabedoria”: são estranhas, transcendem a ranço; por
isso são mais honradas. Também a podridão enobrece.
Crianças é que
podiam falar assim por que temem o fogo que já os queimou. Há muita
puerilidade nos antigos livros da sabedoria.
E o que trilha
palha, como teria o direito de zombar quando se trilha o trigo?
Seria preciso
amordaçar tais loucos!
Estes sentam-se à
mesa sem levar nada, nem sequer um bom apetite, e agora blasfemam: “Tudo é
vão!”
Mas comer e beber
bem, meus irmãos, não é na verdade uma arte vã. Quebrai, quebrai-me as tábuas
dos eternamente descontentes.
XIV
“Para os puros tudo
é puro”. — Assim falava o povo. — Mas eu vos digo: para os porcos tudo é porco!
Por isso os
fanáticos e os que curvam a cerviz, que também têm o coração inclinado,
predicam desta forma:
“O próprio mundo é
um monstro lamacento!”
Porque todos esses
têm o espirito sujo, especialmente os que se não dão paz nem sossego enquanto
não vêm o mundo por detrás: são os crentes no mundo posterior!
A esses lhes
digo eu na cara, conquanto não soe muito bem: o mundo parece-se com o homem por
ter também traseiro: isto é muito verdade!
Há no mundo muita
lama: isto é muita verdade! Mas nem por isso o mundo é um monstro
lamacento!
É sensato haver no
mundo muitas coisas que cheirem mal: o próprio asco cria asas e forças que
pressentem mananciais!
Até nos melhores há
qualquer coisa repugnante, até o melhor é coisa que se deve superar!
Ó! Meus irmãos ! É
sensato haver muita lama no mundo!
XV
Tenho ouvido
piedosos crentes em além-mundos dizerem à sua consciência palavras como estas,
e de verdade, sem malícia nem zombaria, embora na terra nada haja mais falso
nem pior:
“Deixai o mundo ser
mundo! Não movais sequer um dedo contra ele!”
“Deixai as pessoas
estrangularem-se, transpassarem-se, e pulverizarem-se; não movais sequer a um
dedo para vos opordes a isso. Assim aprenderão a renunciar ao mundo”.
“E deverias abater
e estrangular a sua própria razão, porque essa razão é deste mundo; assim
aprenderás tu mesmo a renunciar ao mundo”.
Quebrai, quebrai,
meus irmãos, essas velhas tábuas dos devotos! Aniquilai as palavras dos
caluniadores do mundo!
XVI
“Aquele que aprende
muito esquece todos os desejos violentos”. Assim se murmura hoje em todas as
ruas escuras.
“A sabedoria
fatiga; nada vale a pena; não devo cobiçar”. Também encontrei esta nova tábua
suspensa nas praças públicas.
Quebrai, meus
irmãos, quebrai também essa nova tábua! Penduraram-na os enfastiados do
mundo, os predicadores da morte e os carcereiros: porque ela é também um apelo
ao servilismo.
Eles têm aprendido
mal, e não as coisas melhores, e tudo cedo e depressa de mais: comeram mal
e revolveu-se-lhes o estômago: que um estômago revolto é esse espírito que
aconselha a morte! Porque o espírito, meus irmãos, é verdadeiramente um
estômago.
A vida é uma fonte
de alegria! Mas para aquele que deixa falar o estômago sobrecarregado, a da
tristeza, todas as fontes estão envenenadas.
Conhecer é um gozo
para quem tem vontade de leão. Mas o que se fatigou é tão somente
“querido”; todas as ondas brincam com ele.
E assim fazem todos
os fracos: perdem-se no caminho. E o seu cansaço acaba por perguntar a si
mesmo: “Porque seguimos este caminho? Tudo é igual!”
É a eles que
agrada ouvir pregar: “Nada vale a pena! Não deveis querer!” Mas isso, todavia,
é um apelo ao servilismo.
Ó! Meus irmãos!
Zaratustra chega como uma rajada de vento fresco para todos os que estão
cansados do seu caminho; ainda há de fazer espirrar muitos narizes!
O meu hálito livre
sopra através das paredes, penetrando nas prisões e nos espíritos presos!
A vontade liberta,
porque a liberdade é criadora: assim ensino eu. E só para criar
precisais aprender!
E só de mim
necessitais aprender; a aprender, aprender bem. Quem tiver ouvidos que
ouça.
XVII
A barca está
pronta; voga ali, além, talvez para o grande nada.
Quem quererá,
porém, embarcar para esse “talvez?”
Nenhum de vós quer
embarcar na barca da morte? Como quereis então estar cansados do mundo!
Cansados do mundo!
E nem sequer estais desprendidos da terra! Eu sempre vos vi desejosos da terra,
enamorados do vosso próprio cansaço da terra!
Não é em vão que
tendes o lábio descaido: ainda nele pesa um desejo terrestre! E em vosso olhar
não flutua uma nuvem de alegria terrestre que ainda não esqueceste?
Há na terra muitas
boas invenções, umas úteis, outras agradáveis; por isso é preciso amar a terra.
E algumas invenções
são tão boas que, como o seio da mulher, são úteis e agradáveis ao mesmo tempo.
A vós, porém,
fatigados do mundo e preguiçosos, é preciso sacudir-vos com vergastas! É
necessário aligeirar-vos as pernas com vergastadas!
Que, se não sois
enfermos e seres gastos, de quem a terra está fatigada, sois preguiçosos
ladinos ou gatos gulosos e casmurros que só buscam o seu prazer.
E se não quereis
tornar a correr alegremente, o melhor é desaparecerdes.
Não há que ter
empenho em ser médico dos incuráveis; assim ensina Zaratustra. Desaparecei,
pois!
Mas é necessário mais
valor para rematar do que para fazer um verso novo: isto sabem-no todos os
médicos e todos os poetas.
XVIII
Ó! Meus irmãos! Há
tábuas criadas pela fadiga e tábuas criadas pela preguiça: conquanto falem de
igual modo querem ser ouvidas de maneira diferente.
Vede esse
prostrado! Falta-lhe apenas um passo para chegar ao fim; mas, por causa da
fadiga, o valente caiu irritado na areia.
Simplesmente
rendido boceja à vista do caminho da terra, do seu fim e de si mesmo: não quer
dar mais um passo, o valente!
O sol agora
derrete-o, e os cães quereriam lamber-lhe o suor; mas para ali está caido
pertinazmente e prefere consumir-se.
Consumir-se a um
passo do seu fim! A semelhante herói o melhor é erguê-lo pelos cabelos até a
sua reação!
Mais vale, em
verdade, que o deixeis onde caiu até que lhe venha o sono, o sono consolador,
com um rumor de chuva refrigerante.
Deixai-o deitado
até despertar; até que repila todo o cansaço e tudo o que nele demonstrava
cansaço.
O que haveis de
fazer, meus irmãos, é afastar dele os cães, os preguiçosos casmurros e toda
essa praga invasora.
Toda a praga
invasora da gente “ilustrada” que se alimenta do suor dos heróis!
XIX
Eu traço em torno de
mim círculos e santas fronteiras: cada vez são menos os que sobem comigo por
montanhas mais elevadas; eu levanto uma cadeia de montes cada vez mais santos.
Mas onde quer que
desejeis subir comigo, meus irmãos, olhai que não haja parasitas que
subam convosco!
Um parasita é um
verme rasteiro e insinuante que quer engordar com todas as vossas intimidades
enfermas e feridas.
É esta a sua
arte; adivinhar onde estão, fatigadas, as almas que sobem. Na vossa aflição, no
vosso descontentamento, no vosso frágil pudor constrói o seu repugnante ninho.
Onde o forte é
débil, onde o nobre é demasiado indulgente, é ali que constrói o seu repugnante
ninho; o parasita habita onde o grande tem recantos doentes.
Qual é espécie de
seres mais elevada, e qual a mais baixa?
O parasita é a
espécie mais baixa, mas o da espécie mais alta é o que alimenta mais parasitas.
Como não há de a
alma, que tem a escala mais vasta, descer mais baixo, transportar sobre si o
maior número de parasitas?
A alma mais vasta
que pode correr, extraviar-se e errar mais longe em si mesma; a mais
necessária, que por prazer se precipita no azar.
A alma que é e se
submerge na corrente do há de ser; a alma que possui e quer o querer e o
desejo.
A alma que foge de
si mesma, e que se alcança a si mesma no mais amplo círculo; a alma, mais
sensata a quem a loucura convida mais docemente.
A alma que ama mais
a si mesma, na qual todas as coisas têm a sua ascensão e a sua
descensão, o seu fluxo e o seu refluxo... Ó! Como não havia a alma mais
alta de ter os piores parasitas?
XX
Ó! Meus irmãos!
Acaso serei cruel? Mas eu vos digo; ao que cai é ainda mister empurrá-lo!
Tudo o que é de
hoje cai e se desconcerta: quem, pois, o quereria deter? Eu, pela minha parte,
ainda quero empurrá-lo.
Conheceis a
volutuosidade que precipita as pedra em profundidades? Vede os homens de hoje:
olhai como rondam pelas minhas profundidades!
Eu sou um prelúdio
para melhores tangedores, meus irmãos! Um exemplo! Procedei segundo meu
exemplo!
E a quem não
ensinardes a voar, ensinai-lhe... a cair mais depressa!
XXI
Agradam-me os
valentes; mas não basta ser uma boa espada; é preciso saber também a quem se
fere!
E muitas vezes mais
valentia em se abster e em passar adiante, a fim de se reservar para um
inimigo mais digno.
Vós deveis ter
somente inimigos dignos de ódio, mas não inimigos dignos de desprezo: é mister
estardes orgulhosos do vosso inimigo; já uma vez vo-lo ensinei.
É mister
reservarde-vos para o inimigo mais digno, meus amigos: por isso há muitos
adiante dos quais deveis passar; sobretudo ante a canalha numerosa que vos
apedreja os ouvidos, falando-vos do povo e das nações.
Livrai os vossos
olhos do seu “pró” e do seu “contra”! Há ali muita justiça e injustiça: ver tal
coisa revolta.
Vê-la é investir, é
tudo a mesma coisa. Ide-vos, pois, ao bosque e dai paz à vossa espada!
Segui os vossos caminhos!
E deixai os povos, e nações seguir os seus! Caminhos escuros na verdade, onde
já não trilha nenhuma esperança.
Reine o
bufarinheiro onde tudo quanto brilha é só ouro de bufarinheiro! Já não é tempo
de reis: o que hoje se chama povo merece rei.
Senão, olhai como
as nações imitam agora os bufarinheiros: aproveitam as menores utilidades em
todas as varreduras.
Espiam-se,
espreitam-se; é a isso que chamam “boa vizinhança”. Ditosos tempos aqueles em
que um povo dizia:
“Sobre nações quero
eu fazer-me senhor!”
Que, meus irmãos, o
melhor deve reinar, o melhor quer também reinar. E onde se ouve outra
doutrina, é que falta o melhor.
XXII
Se estes tivessem
o pão de graça, atrás de quem andariam a gritar? Em que se ocupariam se não
fosse da sua subsistência? E é necessário terem vida rigorosa!
São animais
rapaces: no seu “trabalho” há também roubo; nos seus “lucros”... há também
astúcia. Por isso devem ter vida rigorosa.
Devem, pois,
tornar-se melhores animais rapaces, mais finos e astutos, animais mais semelhantes
ao homem porque é o melhor animal rapace.
O homem arrebatou
já as suas virtudes a todos os animais; por isso, de todos os animais é o homem
que tem tido vida mais dura.
Só as aves estão
acima dele. E se o homem aprendesse também a voar, ó! a que altura voaria
a sua rapacidade!
XIII
Eis como quero o
homem e a mulher: um apto para a guerra, a outra, apta para dar à luz; mas os
dois aptos para dançar com cabeças e pernas.
E que todo o dia em
que se não haja dançado, pelo menos uma vez, seja para nós perdido! E toda a
verdade que não traga ao menos um riso nos pareça verdade falsa.
XXIV
Quanto à maneira
por que “atais” os vossos matrimônios, cuidai não seja um mau nó.
Atastes com
demasiada pressa? Pois disso se segue um rompimento, um adultério.
E ainda vale mais
romper o vínculo do que sujeitar-se a mentir. Eis o que me disse uma mulher: “É
verdade que quebrei os laços do matrimônio, mas os laços do matrimônio
tinham-me quebrado a mim”.
Sempre vi os
mal-avindos sedentos da pior vingança: vingam-se em toda a gente de não poderem
já andar separados.
Por isso quero que
os que estão de boa fé digam: “Nós não nos amamos: procuremos conservar
o afeto!” Ou então: “Seria a nossa promessa um equívoco?”
“Dai-nos um prazo,
uma breve união para vermos se somos capazes de uma longa união! Grave coisa é
ser sempre dois!”
Assim aconselho a
todos que estão de boa fé; e a que se reduziria o meu amor ao Super-homem e a
tudo o que deve vir, se aconselhasse e falasse doutro modo?
E não só vos deveis
multiplicar, mas elevar. Ó! Meus irmãos, ajude-vos nisso o jardim do
matrimônio!
XXV
Aquele que conhece
a fundo as antigas origens acabará por procurar as fontes do futuro e novas
origens.
Meus irmãos, já não
passará muito tempo sem novos mananciais soarem em novas profundidades.
Que o terremoto
funda muitas fontes e cria muita sede; eleva também à luz forças interiores e
secretas.
O tremor de terra
revela mananciais. Do cataclismo dos povos antigos surgem mananciais novos.
E se alguém exclama
“Olhai: aqui tendes uma fonte para muitos sedentos, um coração
para muitos desmaiados, uma vontade para muitos instrumentos”, em torno
desse alguém se reúne o povo, quer dizer, muitos homens que tentam a prova.
O que ali se
ensaia é quem sabe mandar e quem deve obedecer.
A sociedade humana
é uma tentativa: eis o que eu ensino: uma longa investigação; mas procura o que
mando.
Uma tentativa, meus
irmãos, e não um “contrato”. Rompei com tais palavras dos corações
covardes e dos amigos de composições!
XXVI
Ó! Meus irmãos! Em
quem se encontra o maior perigo do futuro humano? Não é nos bons e nos justos?
Nos que dizem e
sentem no seu coração: “Nós sabemos já o que é bom e justo, e possuímo-lo:
desgraçados dos que ainda querem procurar aqui!”
E por muito mal que
os maus possam fazer, o que fazem os bons é o mais nocivo de tudo!
E por muito mal que
os caluniadores do mundo possam fazer, o que fazem os bons é o mais
nocivo de tudo!
Meus irmãos, alguém
olhou uma vez o coração dos bons e dos justos, e disse: “São os fariseus”.
Ninguém, porém, o entendeu.
Os bons e os justos
mesmos, não o deviam compreender: o espírito deles é um prisioneiro da sua
consciência.
A verdade, porém, é
esta: é forçoso os bons serem fariseus: não têm escolha!
É forçoso os bons
crucificarem o que inventa a sua própria virtude! É esta a verdade!
Outro que descobriu
o seu país — o país, o coração, e o terreno dos bons e dos justos — foi aquele
que perguntou: “A quem odeiam mais?”
O criador é
quem eles mais odeiam: aquele que quebrar tábuas e estranhos valores, ao
destruidor, a esse é que chamam criminoso.
Que os bons... não
podem criar: são sempre o princípio do fim.
Crucificam aquele
que escreve novos valores em tábuas novas; sacrificam para si o futuro;
crucificam o futuro inteiro dos homens!
Os bons sempre o
princípio do fim.
XXVII
Meus irmãos,
compreendestes também estas palavras, e o que disse um dia o “último homem?”.
Em quem se
encontram os maiores perigos para o futuro dos homens? Não nos bons e nos
justos?
Acabai, acabai com
os bons e os justos! Meus irmãos, compreendestes também
esta palavra?
XXVIII
Fugis de mim?
Assustai-vos? Tremeis ante esta palavra?
Meus irmãos,
enquanto vos não disse que acabasseis com os bons e com as tábuas dos bons, não
embarquei o homem no seu alto mar.
Só agora é que lhe
sobrevem o grande terror, o grande olhar inquieto, a grande enfermidade, a
grande náusea, o grande enjôo.
Os bons
ensinaram-vos coisas enganadoras e falsas seguranças: tínheis nascido entre as
mentiras dos bons e havíeis-vos refugiado nelas.
Os bons falsearam e
desnaturalizaram radicalmente as coisas.
Mas o que descobriu
o país “homem” descobriu ao mesmo tempo o país “futuro dos homens”. Agora
deveis ser para mim corajosos e pacientes marinheiros!
Caminhai direitos a
tempo, meus irmãos! Aprendei a caminhar direitos! O mar está agitado; há muitos
que necessitam de vós para se encaminharem.
O mar brama: tudo
está no mar! Eia! Avante! velhos corações de marinheiros!
Que importa a
pátria? Nós queremos governar lá em baixo onde está o país de nossos filhos!
Além, ao longo, mais fogoso do que o mar, se desencadeia o nosso grande desejo.
XXIX
“Porque serei tão
duro? — disse um dia o diamante ao carvão comum. — Não somos próximos
parentes?”
Porque sois tão
brandos? vos pergunto eu, meus irmãos: então não sois meus irmãos?
Porque sois tão
brandos, tão pegajosos, tão frouxos? Porque há tanta renúncia, tanta abdicação
em vossos corações? Tão pouco alvo no vosso olhar?
E se não quereis
ser destinos, se não quereis ser inexoráveis, como poderíeis um dia vencer comigo?
E se a nossa dureza
não quer cintilar e cortar a sachar, como poderíeis um dia criar comigo?
Que os criadores
são duros. E deve-nos parecer beatitude imprimir a vossa mão em séculos como em
cera branda, e escrever sobre a vontade de milenários como sobre bronze — mais
duros que o bronze, mais nobres que o bronze. — E o mais duro é mais nobre.
Meus irmãos, eu
coloco sobre vós esta nova tábua: Fazei-vos duros!
XXX
Ó! tu, vontade,
necessidade minha, trégua de toda a miséria! Livra-me de todas as
pequenas vitórias!
Azar da minha alma
a que chamo destino! Tu que estás em mim e sobre mim, livra-me e reserva-me
para um grande destino!
E tu, última
grandeza, vontade minha, conserva-a para um fim, para que sejas implacável na
tua vitória! Ai! Quem não sucumbirá à sua vitória?
Ai! Que olhos se
não têm turvado nessa embriaguez de crepúsculo? Que pé não tem tropeçado e
perdido a sua firmeza na vitória?
A fim de estar
preparado e maduro quando chegar o Grande Meio-dia, preparado e maduro
como o bronze reluzente, como a nuvem cheia de relâmpagos e o seio cheio de
leite.
Preparado para mim
mesmo e para a minha vontade mais oculta: um arco anelante da sua flecha, uma
flecha anelante da sua estrela.
Uma estrela
preparada e madura no seu meio-dia, ardente e trespassada, satisfeita da flecha
celeste que a destrói.
Sol e implacável
vontade de sol, pronta a destruir na vitória.
Ó! vontade,
necessidade minha, trégua de toda a miséria! “Reserva-me para uma grande
vitória”.
Assim falava
Zaratustra.
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