sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

OS DISCURSOS DE ZARATUSTRA


                          
                 
                            DAS TRÊS TRANSFORMAÇÕES

“Três transformações do espírito vos menciono: como o espírito se muda em camelo, e o camelo em leão, e o leão, finalmente, em criança”.
Há muitas coisas pesadas para o espírito, para o espírito forte e sólido, respeitável. A força deste espírito está bradando por coisas pesadas, e das mais pesadas.
Há o quer que seja pesado? — pergunta o espírito sólido. E ajoelha-se como camelo e quer que o carreguem bem. Que há mais pesado, heróis — pergunta o espírito sólido — a fim de eu o deitar sobre mim, para que a minha forca se recreie?
Não será rebaixarmo-nos para o nosso orgulho padecer? Deixar brilhar a nossa loucura para zombarmos da nossa sensatez?
Ou será separarmo-nos da nossa causa quando ela celebra a sua vitória? Escalar altos montes para tentar o que nos tenta?
Ou será sustentarmo-nos com bolotas e erva do conhecimento e padecer fome na alma por causa da verdade?
Ou será estar enfermo e despedir a consoladores e travar amizade com surdos que nunca ouvem o que queremos?
Ou será submerjirmo-nos em água suja quando é a água da verdade, e não afastarmos de nós as frias rãs e os quentes sapos?
Ou será amar os que nos desprezam e estender a mão ao fantasma quando nos quer assustar?
O espírito sólido sobrecarrega-se de todas estas coisas pesadíssimas; e à semelhança do camelo que corre carregado pelo deserto, assim ele corre pelo seu deserto.
No deserto mais solitário, porém, se efetua a segunda transformação: o espírito torna-se leão; quer conquistar a liberdade e ser senhor no seu próprio deserto.
Procura então o seu último senhor, quer ser seu inimigo e de seus dias; quer lutar pela vitória com o grande dragão.
Qual é o grande dragão a que o espírito já não quer chamar Deus, nem senhor?
“Tu deves”, assim se chama o grande dragão; mas o espírito do leão diz: “Eu quero”.
O “tu deves” está postado no seu caminho, como animal escamoso de áureo fulgor; e em cada uma das suas escamas brilha em douradas letras: “Tu deves!”
Valores milenários brilham nessas escamas, e o mais poderoso de todos os dragões fala assim:
“Em mim brilha o valor de todas as coisas”.
“Todos os valores foram já criados, e eu sou todos os valores criados. Para o futuro não deve existir o “Eu quero”!” Assim falou o dragão.
Meus irmãos, que falta faz o leão no espírito? Não bastará a besta de carga que abdica e venera?
Criar valores novos é coisa que o leão ainda não pode; mas criar uma liberdade para a nova criação, isso pode-o o poder do leão.
Para criar a liberdade e um santo NÃO, mesmo perante o dever; para isso, meus irmãos, é preciso o leão.
Conquistar o direito de criar novos valores é a mais terrível apropriação aos olhos de um espírito sólido e respeitoso. Para ele isto é uma verdadeira rapina e coisa própria de um animal rapace.
Como o mais santo, amou em seu tempo o “tu deves” e agora tem que ver a ilusão e arbitrariedade até no mais santo, a fim de conquistar a liberdade à custa do seu amor. É preciso um leão para esse feito.
Dizei-me, porém, irmãos: que poderá a criança fazer que não haja podido fazer o leão? Para que será preciso que o altivo leão se mude em criança?
A criança é a inocência, e o esquecimento, um novo começar, um brinquedo, uma roda que gira sobre si, um movimento, uma santa afirmação.
Sim; para o jogo da criação, meus irmãos, é preciso uma santa afirmação: o espírito quer agora a sua vontade, o que perdeu o mundo quer alcançar o seu mundo.
“Três transformações do espírito vos mencionaram: como o espírito se transformava em camelo, e o camelo em leão, e o leão, finalmente, em criança”.
Assim falava Zaratustra. E nesse tempo residia na cidade que se chama “Vaca Malhada”.

                                                         DAS CÁTEDRAS DA VIRTUDE

Elogiaram a Zaratustra um sábio que falava doutamente do sono e da virtude; por isso se via cumulado de honrarias e recompensas, e todos os mancebos acorriam à sua cátedra. Zaratustra foi ter com ele, e, como todos os mancebos, sentou-se diante da sua cátedra. E o sábio falou assim:
“Honrai o sono e respeitai-o”! É isso o principal. E fugi de todos os que dormem mal e estão acordados de noite.
O próprio ladrão se envergonha em presença do sono. Sempre vagueia silencioso durante a noite: mas o relento é insolente.
Não é pouco saber dormir; para isso é preciso aprontar-se durante o dia.
Dez vezes ao dia deves saber vencer-te a ti mesmo; isto cria uma fadiga considerável, e esta é a dormideira da alma.
Dez vezes deves reconciliar-te contigo mesmo, porque é amargo, vencermo-nos, e o que não está reconciliado dorme mal.
Dez verdades hás de encontrar durante o dia; se assim não for, ainda procurarás verdades durante a noite e a tua alma estará faminta.
Dez vezes ao dia precisas rir e estar alegre, senão incomodar-te-á de noite o estômago, esse pai da aflição.
Ainda que poucas pessoas o saibam, é preciso ter todas as virtudes para dormir bem.
Levanto falsos testemunhos? Cometi adultério?
Cobiço a serva do próximo? Tudo isto se combina mal com um bom sono.
E se se tivessem as virtudes, seria preciso saber fazer coisa: adormecer a tempo todas as virtudes.
É mister que estas lindas mulheres se não desavenham! E por tua causa, infeliz!
Paz com Deus e com o próximo: assim o quer o bom sono. E também paz com o diabo do próximo, senão, atormentar-te-á de noite.
Honra e obediência à autoridade, mesmo à autoridade que claudique! Assim o exige o bom sono! Acaso tem uma pessoa culpa do poder gostar de andar com pernas coxas?
Aquele que conduz as suas ovelhas ao prado mais viçoso, para mim será melhor pastor: isto é conveniente ao bom sono.
Não quero muitas honras nem grandes tesouros; isto exacerba a bilis. Dorme-se mal, porém, sem uma boa reputação e um pequeno tesouro.
Prefiro pouca ou má companhia; mas é mister que venha e se vá embora no momento oportuno. É isto o que convém ao bom sono.
Também me agradam muito os pobres de espírito: apressam o sono. São bem-aventurados, mormente quando se lhes dá sempre razão.
Assim passam o dia os virtuosos. Quando chega a noite, livro-me bem de chamar o sono. O sono, que é o rei das virtudes, não quer ser chamado.
Somente penso no que fiz e pensei durante o dia. Ruminando, interrogo-me pacientemente como uma vaca. Então, quais foram as tuas dez vitórias sobre ti mesmo?
E quais foram as dez reconciliações, e as dez verdades, e os dez risos, com que se alegrou o meu coração?
Maquinando nestas coisas e acalentado por quarenta pensamentos, o sono, que eu não chamei, logo me surpreende.
O sono dá-me nos olhos, e sinto-os pesados. O sono aflora à minha boca, e a boca fica aberta.
Sutilmente se introduz em mim o ladrão predileto e rouba-me os pensamentos. “Estou de pé, feito um tronco; mas ainda há pouco de pé, logo me estendo”.
Ouvindo falar o sábio, Zaratustra riu-se consigo mesmo.
“Parece-me doido este sábio com os seus quarenta pensamentos, mas creio que compreende bem o sono”.
Bem-aventurado o que habite ao pé deste sábio! Um sono assim é contagioso, mesmo através de uma parede espessa.
Na sua cátedra mesmo há um feitiço. E não era debalde que os mancebos estavam sentados ao pé do pregador da virtude.
Diz a sua sabedoria: “Velar para dormir bem”. E, na verdade, se a vida faltasse senso e eu tivesse que eleger um contrassenso, esse contrassenso parecer-me-ia o mais digno de eleição.
Agora compreendo o que se procurava primeiro que tudo em nossos dias, quando se procurava mestres de virtude. O que se procurava era um bom sono, e para isso virtudes coroadas de dormideiras.
Para todos estes sábios catedráticos, tão ponderados, a sabedoria era dormir sem sonhar: não conheciam melhor sentido da vida.
Hoje ainda há alguns como este pregador da virtude, e nem sempre tão honestos como ele; mas o seu tempo já passou.
E ainda bem não estão em pé, já se estendem.
“Bem-aventurados tais dormentes porque não tardarão a dormir de todo”.
Assim falava Zaratustra.

                                                                      DOS CRENTES EM ALÉM MUNDOS (1)

Um dia, Zaratustra elevou a sua ilusão mais além da vida dos homens, à maneira de todos os que crêem em além-mundos.
Obra de um deus dolente e atormentado lhe pareceu então o mundo.
“Sonho me parecia, e ficção de um deus: vapor colorido ante os olhos de um divino descontente”.
Bem e mal, alegria e desgosto, eu e tu, vapor colorido me parecia tudo ante os olhos criadores. O criador queria desviar de si mesmo o olhar... e criou o mundo.
Para quem sofre é uma alegria esquecer o seu sofrimento. Alegria inebriante e esquecimento de si mesmo me pareceu um dia o mundo.
Este mundo, o eternamente imperfeito, me pareceu um dia, imagem de uma eterna contradição, e uma alegria inebriante para o seu imperfeito criador.
Da mesma maneira projetei eu também a minha ilusão mais para além da vida dos homens à semelhança de todos os crentes em além-mundos.
Além dos homens, realmente?
Ai, meus irmãos! Este deus que eu criei, era obra humana e humano delírio, como todos os deuses.
Era homem, tão somente um fragmento de homem e de mim. Esse fantasma saía das minhas próprias cinzas e da minha própria chama, e nunca veio realmente do outro mundo.
Que sucedeu, meus irmãos? Eu, que sofria, dominei-me; levei a minha própria cinza para a montanha; inventei para mim uma chama mais clara. E vede! O fantasma ausentou-se!
Agora que estou curado, seria para mim um sofrimento e um tormento crer em semelhantes fantasmas. Assim falo eu aos que creem em além-mundos.
Sofrimentos e incompetências; eis o que criou todos os além-mundos, e esse breve desvario da felicidade que só conhece quem mais sofre.
A fadiga, que de um salto quer atingir o extremo, uma fadiga pobre e ignorante, que não quer ao menos um maior querer; foi ela que criou todos os deuses e todos os além-mundos.
Acreditai-me, meus irmãos! Foi o corpo que desesperou do corpo: tateou com os dedos do espírito extraviado as últimas paredes.
Acreditai-me, meus irmãos! Foi o corpo que desesperou da terra: ouviu falar as entranhas do ser.
Quis então que a sua cabeça transpassasse as últimas paredes, e não só a cabeça: até ele quis passar para o “outro mundo”.
O “outro mundo”, porém, esse mundo desumanizado e inumano, que é um nada celeste, está oculto aos homens, e as entranhas do ser não falam ao homem, a não ser como homem.
É deveras difícil demonstrar o Ser, e difícil é fazê-lo falar. Dizei-me, porém, irmãos: a mais estranha de todas as coisas não será a melhor demonstrada?
E, este Eu que cria, que quer, e que dá a medida e o valor das coisas, este Eu, e a contradição e confusão do Eu falam com a maior lealdade do seu ser.
E este ser lealíssimo, o Eu, fala do corpo, e quer o corpo, embora sonhe e divague e esvoace com as asas partidas.
O Eu aprende a falar mais realmente de cada vez, e quanto mais aprende, mais palavras acha para honrar o corpo e terra.
O meu Eu ensinou-me um novo orgulho que eu ensino aos homens: não ocultar a cabeça nas nuvens celestes, mas levá-la descoberta; sustentar erguida uma cabeça terrestre que creia no sentido da terra.
Eu ensino aos homens uma nova vontade: querer o caminho que os homens têm seguido cegamente, e considerá-lo bom e fugir dele como os enfermos e os decrépitos.
Enfermos e decrépitos foram os que menosprezaram o corpo e a terra, os que inventaram as coisas celestes e as gotas de sangue redentor; mas até esses doces e lúgubres venenos foram buscar no corpo e na terra!
Queriam fugir da sua miséria, e as estrelas estavam demasiado longe para eles. Então suspiraram: “Oh! se houvessem caminhos celestes para alcançar outra vida e outra felicidade!” E inventaram os seus artifícios e as suas beberagens sangrentas.
E julgaram-se arrebatados para longe do seu corpo e desta terra, os ingratos! A quem deviam, porém, o seu espasmo e o deleite do seu arroubamento? Ao seu corpo e a esta terra.
Zaratustra é indulgente com os enfermos. Não o enfadam as suas formas de se consolarem, nem a sua ingratidão. Curem-se, dominem-se, criem um corpo superior!
Zaratustra também se não enfada com o que sara quando este olha com carinho as suas ilusões, e vai à meia-noite rodear a tumba do seu Deus; mas as suas lágrimas continuam sendo para mim enfermidade e corpo enfermo.
Houve sempre muitos enfermos entre os que sonham e suspiram por Deus; odeiam furiosamente o que procura o conhecimento e a mais nova das virtudes, que se chama lealdade.
Olham sempre para trás, para tempos obscuros; nesse tempo, de certo, a ilusão e a fé eram outra coisa. O delírio da razão era coisa divina, e a dúvida, pecado.
Conheço demasiado esses semelhantes a Deus; querem que se acredite neles e que a dúvida seja pecado. Também sei de sobra no que é que eles crêem mais.
Não é, certamente, em além-mundos e em gotas de sangue redentor; eles também crêem sobretudo no corpo, e ao seu próprio que olham como a coisa em si.
O seu corpo, porém, é coisa enfermiça e de boa vontade se livrarão dele. Por isso escutam os pregadores da morte e eles mesmos pregam os além-mundos.
Preferi, meus irmãos, a voz do corpo curado; é uma voz mais leal e mais pura.
O corpo são, o corpo cheio de ângulos retos, fala com mais lealdade e mais pureza; fala do sentido da terra”.
Assim falava Zaratustra.

                                                                         DOS QUE DESPREZAM O CORPO

Aos que desprezam o corpo quero dizer a minha opinião. O que devem fazer não é mudar de preceito, mas simplesmente despedirem-se do seu próprio corpo, e por conseguinte, ficarem mudos.
“Eu sou corpo e alma” — assim fala a criança. — E porque sei não há de falar como as crianças?
Mas o que está desperto e atento diz: — “Tudo é corpo, e nada mais; a alma é apenas nome de qualquer coisa do corpo”.
O corpo é uma razão em ponto grande, uma multiplicidade com um só sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor.
Instrumento do teu corpo é também a tua razão pequena, a que chamas espírito: um instrumentozinho e um pequeno brinquedo da tua razão grande.
Tu dizes “Eu” e orgulhas-te dessa palavra. Porém, maior — coisa que tu não queres crer — é o teu corpo e a tua razão grande. Ele não diz Eu, mas: procede como Eu.
O que os sentidos apreciam, o que o espírito conhece, nunca em si tem seu fim; mas os sentidos e o espirito quereriam convencer-te de que são fim de tudo; tão soberbos são.
Os sentidos e o espírito são instrumentos e joguetes; por detrás deles se encontra o nosso próprio ser (1). Ele esquadrinha com os olhos dos sentidos e escuta com os olhos do espirito.
Sempre escuta e esquadrinha o próprio ser: combina, submete, conquista e destrói.
Reina, e é também soberano do Eu.
Por detrás dos teus pensamentos e sentimentos, meu irmão, há um senhor mais poderoso, um guia desconhecido, chama-se “eu sou”.
Habita no teu corpo; é o teu corpo.
Há mais razão no teu corpo do que na tua melhor sabedoria. E quem sabe para que necessitará o teu corpo precisamente da tua melhor sabedoria?
O próprio ser se ri do teu Eu e dos seus saltos arrogantes. Que significam para mim esses saltos e vôos do pensamento? — diz. — Um rodeio para o meu fim. Eu sou o guia do Eu e o inspirador de suas idéias.
O nosso próprio ser diz ao Eu: “Experimenta dores!” E sofre e medita em não sofrer mais; e para isso deve pensar.
O nosso próprio ser diz ao Eu: “Experimenta alegrias!” regozija-se então e pensa em continuar a regozijar-se freqüentemente; e para isso deve pensar.
Quero dizer uma coisa aos que desprezam o corpo: desprezam aquilo a que devem a sua estima. Quem criou a estima e o menosprezo e o valor e a vontade?
O próprio ser criador criou a sua estima e o seu menosprezo, criou a sua alegria e a sua dor. O corpo criador criou a si mesmo o espírito como emanação da sua vontade.
Desprezadores do corpo: até na vossa loucura e no vosso desdém sereis o vosso próprio ser. Eu vos digo: o vosso próprio ser quer morrer e se afasta da vida.
Não pode fazer o que mais desejaria: criar superando-se a si mesmo. É isto o que ele mais deseja; é esta a sua paixão toda.
É, porém, tarde demais para isso: de maneira que até o vosso próprio ser quer desaparecer, desprezadores do corpo.
O vosso próprio ser quer desaparecer: por isso desprezais o corpo! Porque não podeis criar já, superando-vos a vós mesmos.
Por isso vos revoltais contra a vida e a terra. No olhar oblíquo do vosso menosprezo transparece uma inveja inconsciente.
Eu não sigo o vosso caminho, desprezadores do corpo! Vós, para mim não sois pontes que se encaminhem para o Super-homem!”
Assim falava Zaratustra.

                       
                                                                              DAS ALEGRIAS E PAIXÕES

“Irmão, quando possues uma virtude e essa virtude é tua, não a tens em comum com pessoa nenhuma.
A falar verdade, tu queres chamá-la pelo seu nome e acariciá-la; queres puxar-lhe a orelha e divertir-te com ela.
E já vês! Tens agora o seu nome em comum com o povo, e tornaste-te povo e rebanho com a tua virtude!
Farias melhor dizendo: “Coisa inexprimível e sem nome é o que constitui o tormento e a doçura da minha alma, e o que é também a fome das minhas entranhas”.
Seja a tua virtude demasiado alta para a familiaridade de denominações; e se necessitas falar dela não te envergonhes de balbuciar.
Fala e balbucia assim: “Este é o meu bem, o que amo; só assim me agrada inteiramente; só assim é que quero bem”!
Não o quero como mandamento de um Deus, nem como uma lei e uma necessidade humana; não há de ser para mim um guia de terras superiores e paraísos.
O que eu amo é uma virtude terrena, que se não relaciona com a sabedoria e o sentir comum.
Este pássaro, porém, construiu o seu ninho em mim; por isso lhe quero e o estreito ao coração. “Agora incuba em mim os seus dourados ovos”.
É assim que deves balbuciar e elogiar a tua virtude.
Dantes tinhas paixões e chamava-lhes males. Agora, porém, só tens as tuas virtudes: nasceram das tuas paixões.
Puseste nessas paixões o teu objetivo mais elevado; então passaram a ser tuas virtudes e alegrias.
Fostes da raça dos coléricos, ou dos volutuosos ou dos fanáticos, ou dos vingativos, todas as tuas paixões acabaram por se mudar em virtudes, todos os teus demônios em anjos.
Dantes tinhas no teu antro, cães selvagens, mas acabaram por se converter em pássaros e aves canoras.
Com os teus venenos preparaste o teu bálsamo; ordenhaste a tua vaca de tribulação e agora bebes o saboroso leite dos seus úberes.
E nenhum mal nasce em ti, a não ser aquele que brota da luta das tuas virtudes.
Irmão, quando gozas de boa sorte tens uma virtude, e nada mais; assim passas mais ligeiro a ponte. É uma distinção ter muitas virtudes, mas é sorte bem dura; e não são poucos os que se têm ido matar ao deserto por estarem fartos de ser combatente e campo de batalha de virtudes.
Irmão, a guerra e as batalhas são males? Pois são males necessários; a inveja, a desconfiança e a calúnia são necessárias entre as tuas virtudes.
Repara como cada uma das virtudes deseja o mais alto que há: quer todo o teu espírito para seu arauto, quer a tua força toda na cólera, no ódio e no amor.
Cada virtude é ciosa das outras virtudes, e os ciúmes são uma coisa terrível. Também há virtudes que podem morrer por ciúmes.
O que anda em redor da chama dos ciúmes, acaba qual escorpião, por voltar contra si mesmo o aguilhão envenenado.
Ai, meu irmão! Nunca viste uma virtude caluniar-se e aniquilar-se a si mesma?
O homem precisa ser superado. “Por isso necessitas amar as tuas virtudes, porque por elas morrerás”.
Assim falava Zaratustra.

                   
                                                                         DO PÁLIDO DELINQÜENTE

 “Vós, juízes e sacrificadores, não quereis matar enquanto a besta não haja inclinado a cabeça”? Vede: o pálido delinqüente inclinou a cabeça; em seus olhos fala o supremo desprezo.
“O meu Eu deve ser superado: o meu Eu é para mim o grande desprezo do homem”. Assim falam os olhos dele. O seu momento maior foi aquele em que a si mesmo se julgou. Não deixeis o sublime tornar ai cair na sua baixeza!
Para aquele que tanto sofre por si, só há salvação na morte rápida.
O vosso homicídio, oh! juízes! deve ser compaixão, e não vingança. E ao matar, tratai de justificar a própria vida.
Não vos basta reconciliar-vos com aquele que matais. Seja a vossa tristeza amor ao Super-homem; assim justificais a vossa supervivência!
Dizei “inimigo”, “malvado” não; dizei “enfermo” e não “infame”; dizei “insensato” e não “pecador”.
E tu, vermelho juiz, se dissesses em voz alta o que fizeste já em pensamento, toda gente gritaria: Abaixo essa imundície e esse verme venenoso!...
Uma coisa, porém, é o pensamento, outra a ação, outra a imagem da ação. A roda da causalidade não gira entre elas.
Uma imagem fez empalidecer esse homem pálido. Ele estava à altura do seu ato quando o realizou, mas não suportou a sua imagem depois de o ter consumado.
Sempre se viu só, como o autor de um ato. Eu chamo isso loucura; a exceção converteu-se para ele em regra.
O golpe que deu fascina-lhe a pobre razão: a isso chamo eu a loucura depois do ato.
Ouvi, Juízes! Ainda há outra loucura: a loucura antes do ato. Ah! não penetrastes profundamente nessa alma.
O juiz vermelho fala assim: “Por que foi que este criminoso matou? Queria roubar”.
Mas eu vos digo: a sua alma queria sangue e não o roubo; tinha sede do gozo da faca!
A sua pobre razão, porém, não compreendia essa loucura e decidiu-o. “Que importa o sangue? — disse ela. — Nem ao menos desejas roubar ao mesmo tempo? Não te desejas vingar?”
E atendeu a sua pobre razão, cuja linguagem pesava sobre ele como chumbo; então roubou ao assassinar. Não se queria envergonhar da sua loucura.
E agora pesa sobre ele o chumbo do seu crime; mas a sua pobre razão está tão paralisada, tão torpe!...
Se ao menos pudesse sacudir a cabeça, a sua carga cairia, mas, quem sacudirá esta cabeça?
Quem é este homem? Um conjunto de enfermidades que, pelo espírito, abrem caminho para fora do mundo, onde querem apanhar a sua presa.
Que é este homem? Um magote de serpentes ferozes que se não podem entender; por isso cada qual vai por seu lado procurar presa pelo mundo.
Vede este pobre corpo! O que ele sofreu e o que desejou, a alma o interpretou a seu favor; interpretou-o como gozo e desejo sanguinário do prazer da faca.
O que enferma agora, vê-se dominado pelo mal, que é mal agora; quer fazer sofrer com o que o faz sofrer; mas houve outros tempos e outros males e bens.
Dantes era um mal a dúvida e a vontade própria. Então o enfermo torna-se hereje e bruxa; como hereje e bruxa padecia e fazia padecer.
Mas isto não quer entrar nos vossos ouvidos; prejudica, dizeis, os vossos bons; mas que me importam a mim os vossos bons?
Nos vossos bons há muitas coisas que me repugnam, e de certo não é o seu mal.
Quereria que tivessem uma loucura que os levasse a sucumbir, como esse pálido criminoso.
Quereria que a sua loucura se chamasse verdade, ou fidelidade, ou justiça; mas têm virtude para viver em mísera conformidade.
Eu sou um anteparo na margem do rio; aquele que puder prender-me, que o faça. “Saiba-se, porém, que não sou vossa muleta”.
Assim falava Zaratustra.

                                                                               LER E ESCREVER

“De todo o escrito só me agrada aquilo que uma pessoa escreveu com o seu sangue”. Escreve com sangue e aprenderás que o sangue é espírito.
Não é fácil compreender sangue alheio: eu detesto todos os ociosos que lêm.
O que conhece o leitor já nada faz pelo leitor. Um século de leitores, e o próprio espírito terá mau cheiro.
Ter toda a gente o direito de aprender a ler é coisa que estropia, não só a letra mas o pensamento.
Noutro tempo o espírito era Deus; depois fez-se homem; agora fez-se populaça.
O que escreve em máximas e com sangue não quer ser lido, mas decorado. Nas montanhas, o caminho mais curto é o que medeia de cimo a cimo; mas para isso é preciso ter pernas altas. Os aforismos devem ser cumieiras, e aqueles a quem se fala devem ser homens altos
e robustos.
O ar leve e puro, o próximo perigo e o espírito cheio de uma alegre malícia, tudo isto se harmoniza bem.
Eu quero ver duendes em torno de mim porque sou valoroso. O valor que afugenta os fantasmas cria os seus próprios duendes: o valor quer rir.
Eu já não sinto em unísono convosco; essa nuvem que eu vejo abaixo de mim, esse negrume e carregamento de que me rio, é precisamente a vossa nuvem tempestuosa.
Vós olhais para cima quando aspirais a vos elevar. Eu, como estou alto, olho para baixo.
Qual de vós pode estar alto e rir ao mesmo tempo?
O que escala elevados montes ri-se de todas as tragédias da cena e da vida.
Valorosos, despreocupados, zombeteiros, violentos, eis como nos quer a sabedoria. É mulher e só lutadores podem amar.
Vós dizeis-me: “A vida é uma carga pesada”. Mas, para que é esse vosso orgulho pela manhã e essa vossa submissão, à tarde?
A vida é uma carga pesada; mas não vos mostreis tão contristados. Todos somos jumentos carregados.
Que parecença temos com o cálice de rosa que treme porque o oprime uma gota de orvalho?
É verdade: amamos a vida não porque estejamos habituados à vida, mas ao amor.
Há sempre o seu quê de loucura no amor; mas também há sempre o seu quê de razão na loucura.
E eu, que estou bem com a vida, creio que para saber de felicidade não há como as borboletas e as bolhas de sabão, e o que se lhes assemelhe entre os homens.
Ver revolutear essas almas aladas e loucas, encantadoras e buliçosas, é o que arranca a Zaratustra lágrimas e canções.
Eu só poderia crer num Deus que soubesse dançar.
E quando vi o meu demônio, pareceu-me sério, grave, profundo e solene: era o espírito do pesadelo. Por ele caem todas as coisas.
Não é com cólera, mas com riso que se mata. Adiante! matemos o espírito do pesadelo!
Eu aprendi a andar; por conseguinte corro. Eu aprendi a voar; por conseguinte não quero que me empurrem para mudar de sítio.
“Agora sou leve, agora vôo; agora vejo por baixo de mim mesmo, agora salta em mim um Deus”.
Assim falava Zaratustra.

                                                                      DA ÁRVORE DA MONTANHA

Os olhos de Zaratustra tinham visto um mancebo que evitava a sua presença. E, uma tarde, ao atravessar sozinhas as montanhas que rodeiam a cidade denominada “Vaca Malhada”, encontrou esse mancebo sentado ao pé de uma árvore, dirigindo ao vale um olhar fatigado. Zaratustra agarrou a árvore a que o mancebo se encostava e disse:
“Se eu quisesse sacudir esta árvore com as minhas mãos não poderia; mas o vento, que não vemos, açoita-a e dobra-a como lhe apraz. Também a nós outros, mãos invisíveis nos açoitam e dobram rudemente.”
A tais palavras, o mancebo ergueu-se assustado, dizendo: “Ouço Zaratustra, e positivamente estava a pensar nele”
“Por que te assustas? O que sucede à árvore, sucede ao homem.
“Quanto mais se quer erguer para as alturas e para a luz, mais vigorosamente enterra as suas raízes para baixo, para o tenebroso e profundo: para o mal.”
“Sim; para o mal! — exclamou o manicebo — Como é possível teres descoberto a minha alma?”
Zaratustra sorriu e disse: “Há almas que nunca se descobrirão, a não ser que se principie por inventá-las”.
“Sim; para o mal”! — exclamou outra vez o mancebo.
Dizias a verdade, Zaratustra. Já não tenho confiança em mim desde que quero subir às alturas, e já nada tem confiança em mim. A que se deve isto?
Eu transformo-me depressa demais: o meu hoje contradiz o meu ontem. Com freqüência salto degraus quando subo, coisa que os degraus me não perdoam.
Quando chego em cima, sempre me encontro só. Ninguém me fala; o frio da soledade faz-me tiritar. Que é que quero, então, nas alturas?
O meu desprezo e o meu desejo crescem a par; quanto mais me elevo mais desprezo o que se eleva?
Como me envergonho da minha ascensão e das minha quedas! Como me rio de tanto anelar! Como odeio o que voa! Como me sinto cansado nas alturas!”
O mancebo calou-se. Zaratustra olhou atento a árvore a cujo pé se encontravam e falou assim:
“Esta árvore está solitária na montanha”. Cresce muito sobranceira aos homens e aos animais.
E se quisesse falar ninguém haveria que a pudesse compreender: tanto cresceu.
Agora espera, e continua esperando. Que esperará, então? Habita perto demais das nuvens: acaso esperará o primeiro raio?”
Quando Zaratustra acabava de dizer isto, o mancebo exclamou com gestos veementes:
“É verdade, Zaratustra: dizes bem. Eu desejei a minha queda ao querer chegar às alturas, e tu eras o raio que esperava. Olha: que sou eu, desde que tu nos apareceste? A inveja aniquilou-me!” Assim falou o mancebo, e chorou amargamente. Zaratustra cingiu-lhe a cintura com o braço e levou-o consigo.
Depois de andarem juntos durante algum tempo, Zaratustra começou a falar assim:
“Tenho o coração desfibrado”. Melhor do que as tuas palavras, dizem-me os teus olhos todo o perigo que corres.
Ainda não és livre, ainda procuras a liberdade. As tuas buscas desvelaram-te e envaideceram-te demasiadamente.
Queres escalar a altura livre; a tua alma está sedenta de estrelas; mas também os teus maus instintos têm sede de liberdade.
Os teus cães selvagens querem ser livres; ladram de alegria no seu covil quando o teu espírito tende a abrir todas as prisões.
Para mim, és ainda um preso que sonha com a liberdade. Ai! a alma de presos assim torna-se prudente, mas também astuta e má.
O que libertou o seu espírito necessita ainda purifioar-se. Ainda lhe restam muitos vestígios de prisão e de lodo: é preciso, todavia, que a sua vista se purifique.
Sim; conheço o teu perigo; mas, por amor de mim te exorto a não afastares para longe de ti o teu amor e a tua esperança!
Ainda te reconheces nobre, assim como nobre te reconhecem os outros, os que estão mal contigo e te olham com maus olhos. Fica sabendo que todos tropeçam com algum nobre no seu caminho.
Também os bons tropeçam com algum nobre no seu caminho, e se lhe chamam bom é tão somente para o pôr de parte.
O nobre quer criar alguma coisa nobre e uma nova virtude. O bom deseja o velho e que o velho se conserve.
O perigo do nobre, porém, não é tornar-se bom, mas insolente, zombeteiro e destruidor.
Ah! eu conheci nobres que perderam a sua mais elevada esperança. E depois caluniaram todas as elevadas esperanças.
Agora têm vivido abertamente com minguadas aspirações, e apenas planearam um fim de um dia para outro.
“O espírito é também voluptuosidade” — diziam. E então o seu espírito partiu as asas; arrastar-se-á agora de trás para diante, maculando tudo quanto consome.
Noutro tempo pensavam fazer-se heróis; agora são folgazões. O herói é para ele aflição e espanto.
Mas, por amor de mim e da minha esperança te digo: não expulses para longe de ti o herói que há na tua alma! Santifica a tua mais elevada esperança!”
Assim falava Zaratustra.

                                                                              DOS PREGADORES DA MORTE

“Há pregadores da morte, e a terra está cheia de indivíduos a quem é preciso pregar que desapareçam da vida”.
A terra está cheia de supérfluos, e os que estão demais prejudicam a vida. Tirem-nos desta com o engodo da “eterna”!
“Amarelos” se costuma chamar aos pregadores da morte, ou então “pretos”. Eu, porém, quero apresentá-los também sob outras cores.
Terríveis são os que têm dentro de si a terra, e que só podem escolher entre as concupiscências e as mortificações.
Nem sequer chegariam a ser homens esses seres terríveis.
Preguem, pois, o abandono da vida, e vão-se eles também!
Eis os tísicos da alma. Mal nasceram e já conteçaram a morrer, e sonham com as doutrinas do cansaço e da renúncia.
Quereriam estar mortos, e nós devemos santificar-lhes a vontade. Livremo-nos de ressuscitar esses mortos e de lhes violar as sepulturas.
Encontram um doente, um velho ou um cadáver, e depois dizem: “Reprove-se a vida!”
Os reprovados, contudo, são eles unicamente, assim como os seus olhos que só vêem um aspecto da sua existência.
Sumidos na densa melancolia e ávidos dos leves acidentes que matam, esperam cerrando os dentes.
Ou então estendem a mão para doces e zombam das suas próprias criancices: estão encostados à vida como uma palha, e escarnecem de se apoiarem a uma palha.
A sua sabedoria diz: “Louco é aquele que pertence à vida, mas, assim somos nós loucos! E esta é a maior loucura da vida!”
“A vida não é mais do que sofrimento”, dizem outros, e não mentem.
Tratai pois de abreviar a vossa. Fazei cessar a vida que é só sofrimento!
Eis o ensinamento da vossa virtude: “Deves matar-te a ti mesmo! Deves desaparecer diante de ti mesmo!”
“A luxúria é pecado — dizem alguns dos que pregam a morte. — Separemo-nos e não engendremos filhos!”
“É doloroso dar à luz — dizem os outros. — Para que se há de continuar a dar à luz?” E também eles são pregadores da morte.
“É preciso ser compassivo — dizem os terceiros — Recebei o que tenho. Recebei o que sou! Assim me prendo menos à vida”.
Se fossem verdadeiramente compassivos procurariam desgostar da vida o próximo. Serem maus, seria a verdadeira bondade.
Eles, porém, querem libertar-se da vida. Que lhes importa prender outros a ela mais estreitamente com as suas cadeias e as suas dádivas?
E vós outros também, vós que levais uma vida de inquietação e de trabalho furioso, não estais cansadíssimos da vida? Não estais bastante sazonados para a pregação da morte?
Vós todos que amais o trabalho furioso e tudo o que é rápido, novo, singular, suportai-vos mal a vós mesmos: a vossa atividade é fuga e desejo de vos esquecerdes de vós mesmos.
Se tivésseis mais fé na vida, não vos entregaríeis tanto ao momento corrente; mas não tendes fundo suficiente para esperar nem tão pouco para a preguiça.
Por toda parte ressoa a voz dos que pregam a morte, e a terra está cheia de seres a que é mister pregar a morte.
“Ou “a vida eterna” — que para mim é o mesmo — contanto que se vão depressa”.
Assim falava Zaratustra.

                                                                   DA GUERRA E DOS GUERREIROS

“Não queremos que os nossos inimigos nos tratem com indulgência, nem tão pouco aqueles a quem amamos de coração”. Deixai-me, portanto, dizer-vos a verdade!
Irmãos na guerra! Amo-vos de todo o coração; eu sou e era vosso semelhante. Também sou vosso inimigo. Deixai-me, portanto, dizer-vos a verdade!
Conheço o ódio e a inveja do vosso coração. Não sois bastante grandes para não conhecer o ódio e a inveja. Sede, pois, bastante grandes para não vos envergonhardes disso!
E se não podeis ser os santos do conhecimento, sede ao menos os seus guerreiros. Eles são os companheiros e os precursores dessa entidade.
Vejo muitos soldados; oxalá possa ver muitos guerreiros. Chama-se “uniforme” o seu traje; não seja, porém, uniforme o que esse traje oculta!
Vós deveis ser daqueles cujos olhos procuram sempre um inimigo, o vosso inimigo. Em alguns de vós se descobre o ódio à primeira vista.
Vós deveis procurar o vosso inimigo e fazer a vossa guerra, uma guerra por vossos pensamentos. E se o vosso pensamento sucumbe, a vossa lealdade, contudo, deve cantar vitória.
Deveis amar a paz como um meio de novas guerras, e mais a curta paz do que a prolongada.
Não vos aconselho o trabalho, mas a luta. Não vos aconselho a paz, mas a vitória. Seja o vosso trabalho uma luta! Seja vossa paz uma vitória!
Não é possível estar calado e permanecer tranqüilo senão quando se têm flechas no arco; a não ser assim questiona-se. Seja a vossa paz uma vitória!
Dizeis que a boa causa é a que santifica também a guerra? Eu vos digo: a boa guerra é a que santifica todas as coisas.
A guerra e o valor têm feito mais coisas grandes do que o amor do próximo. Não foi a vossa piedade mas a vossa bravura que até hoje salvou os náufragos.
Que é bom? — perguntais. — Ser valente. Deixai as raparigas dizerem: “Bom é o bonito e o meigo”.
Chamam-vos gente sem coração; mas o vosso coração é sincero, e a mim agrada-me o pudor da vossa cordialidade. Envergonhai-vos do vosso fluxo, e os outros se envergonham do seu refluxo.
Sois feios? Pois bem, meus irmãos; envolvei-vos no sublime, o manto da fealdade.
Quando a vossa alma cresce, torna-se arrogante, e há maldade na vossa elevação. Conheço-vos.
Na maldade, o arrogante encontra-se com o fraco, mas não se compreendem. Conheço-vos.
Só deveis ter inimigos para os odiar, e não para os desprezar. Deveis sentir-vos orgulhosos do vosso inimigo; então os triunfos dele serão também triunfos vossos.
A revolta é a nobreza do escravo. Seja a obediência a vossa nobreza. Seja a obediência o vosso próprio mandato!
Para o verdadeiro homem de guerra soa mais agradavelmente “tu deves” do que “eu quero”. E vós deveis procurar ordenar tudo o que quiserdes.
Seja o vosso amor à vida amor às mais elevadas esperanças, e que a vossa mais elevada esperança seja o mais alto pensamento da vida.
E o vosso mais alto pensamento deveis ouvi-lo de mim, e é este: o homem deve ser superado.
Vivei assim a vossa vida de obediência e de guerra. Que importa o andamento da vida! Que guerreiro quererá poupar-se?
Eu não uso de branduras convosco, amo-vos de todo o coração, irmãos na guerra!”
Assim falava Zaratustra.

                                                                                DO NOVO ÍDOLO

“Ainda em algumas partes há povos e rebanhos; mas entre nós, irmãos, entre nós há Estados”.
Estados? Que é isso? Vamos! Abri os ouvidos, porque vos vou falar da morte dos povos.
Estado chama-se o mais frio dos monstros. Mente também friamente, e eis que mentira rasteira sai da sua boca: “Eu, o Estado, sou o Povo”.
É uma mentira! Os que criaram os povos e suspenderam sobre eles uma fé e um amor, esses eram criadores: serviam a vida.
Os que armam laços ao maior número e chamam a isso um Estado são destruidores; suspendem sobre si uma espada e mil apetites.
Onde há ainda povo não se compreende o Estado que é detestado como uma transgressão aos costumes e às leis.
Eu vos dou este sinal: cada povo fala uma língua do bem e do mal, que o vizinho não compreende. Inventou a sua língua para os seus costumes e as suas leis.
Mas o Estado mente em todas as línguas do bem e do mal, e em tudo quanto diz mente, tudo quanto tem roubou-o.
Tudo nele é falso; morde com dentes roubados. Até as suas entranhas são falsas.
Uma confusão das línguas do bem e do mal: é este o sinal do Estado. Na Verdade, o que este sinal indica é a vontade da morte; está chamando os pregadores da morte.
Vêm ao mundo homens demais, para os supérfluos inventou-se o Estado!
Vede como ele atrai os supérfluos! Como os engole, como os mastiga e remastiga!
“Na terra nada há maior do que eu; eu sou o dedo ordenador de Deus” — assim grita o monstro. E não são só os que têm orelhas compridas e vista curta que caem de joelhos!
Ai! também em vossas almas grandes murmuram as suas sombrias mentiras! Aí eles advinham os corações ricos que gostam de se prodigalizar!
Sim; adivinha-vos a vós também, vencedores do antigo Deus. Saistes rendido do combate, e agora a vossa fadiga ainda serve ao novo ídolo!
Ele queria rodear-se de heróis e homens respeitáveis. A este frio monstro agrada-lhe acalentar-se ao sol da pura consciência.
A vós outros quer ele dar tudo, se adorardes. Assim compra o brilho da vossa virtude e o altivo olhar dos vossos olhos.
Convosco quer atrair os supérfluos! Sim; inventou com isso uma artimanha infernal, um corcel de morte, ajaezado com adorno brilhante das honras divinas.
Inventou para o grande número uma morte que se preza de ser vida, uma servidão à medida do desejo de todos os pregadores da morte.
O Estado é onde todos bebem veneno, os bons e os maus; onde todos se perdem a si mesmos, os bons e os maus; onde o lento suicídio de todos se chama “a vida”.
Vede, pois, esses supérfluos! Roubam as obras dos inventores e os tesouros dos sábios; chamam a civilização ao seu latrocínio, e tudo para eles são doenças e contratempo.
Vede, pois, esses supérfluos. Estão sempre doentes; expelem a bilis, e a isso chamam periódicos. Devoram-se e nem sequer se podem dirigir.
Vede, pois, esses adquirem riquezas, e fazem-se mais pobres. Querem o poder, esses ineptos, e primeiro de tudo o palanquim do poder: muito dinheiro!
Vede trepar esses ágeis macacos! Trepam uns sobre os outros e arrastam-se para o lodo e para o abismo.
Todos querem abeirar-se do trono; é a sua loucura — como se a felicidade estivesse no trono! — Freqüentemente também o trono está no lodo.
Para mim todos eles são doidos e macacos trepadores e buliçosos. O seu ídolo, esse frio monstro, cheira mal; todos eles, esses idólatras, cheiram mal.
Meus irmãos quereis por agora afogar-vos na exalação de suas bocas e de seus apetites? Antes disso, arrancai as janelas e saltai para o ar livre!
Evitai o mau cheiro! Afastai-vos da idolatria dos supérfluos.
Evitai o mau cheiro! Afastai-vos do fumo desses sacrifícios humanos!
Ainda agora o mundo é livre para as almas grandes. Para os que vivem solitários ou aos pares ainda há muitos sítios vagos onde se aspira a fragrância dos mares silenciosos.
Ainda têm franca uma vida livre as almas grandes. Na verdade, quem pouco possui tanto menos é possuído. Bendita seja a nobreza!
Além onde acaba o Estado começa o homem que não é supérfluo; começa o canto dos que são necessários, a melodia única e insubstituível.
Além, onde acaba o Estado... olhai, meus irmãos! Não vedes o arco-íris e a ponte do Super-Homem?”

Assim falava Zaratustra.

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