“...e só quando todos me houverdes
renegado, tornarei para vós.
Em verdade, meus
irmãos, então buscarei com outros olhos as minhas ovelhas desgarradas; eu vos
amarei então com outro amor”.
Da virtude dadivosa — III pág.
ZARATUSTRA.
A CRIANÇA DO ESPELHO
Depois disto
Zaratustra tornou para a montanha e para a soledade da sua caverna,
apartando-se dos homens. E esperou, como o semeador que lançou a sua semente;
mas a alma, se lhe encheu de impaciência e desejo do que amava, por que ainda
tinha muitas coisas que lhes dar. Que isto é o mais difícil: fechar por amor a
mão aberta e conservar o pudor ao dar.
Assim decorreram
para o solitário meses e anos; mas a sua sabedoria aumentava e fazia-o padecer
com a sua plenitude.
Certa manhã,
despertando antes de amanhecer, meditou por muito tempo na cama, e por fim
disse consigo: “Assustei-me tanto a sonhar que acordei”! Não se aproximou de
mim uma criança que levava um espelho?
“Zaratustra — disse
ela — olha-te a este espelho!”
Quando, porém,
olhei para o espelho, soltei um grito e o coração deu-me um baque; porque não
foi a mim que vi, mas a carranca sarcástica de um demônio.
Na verdade,
compreendo demais o significado e a advertência do sonho: ia minha doutrina corre
perigo; o joio quer chamar-se trigo.
Os meus inimigos
tornaram-se poderosos e desfiguraram a imagem da minha doutrina, a ponto de
meus prediletos se envergonharem dos dons que lhes fiz.
Perdi os meus
amigos! Chegou o momento de ir procurar os que perdi!”
Dizendo estas
palavras, Zaratustra sobressaltou-se, não como quem tem medo e perde alento,
mas como um visionário possuído do Espírito. A águia e a serpente olharam-no
estupefatos: porque à semelhança da aurora, uma próxima ventura lhe pairava no
semblante.
“Que me sucedeu,
animais meus? — disse Zaratustra. — Não estou transformado?! Não se abeirou de
mim a ventura como uma tempestade?
A minha ventura é
louca e apenas dirá loucuras; ainda é nova demais. Suportai-a, pois, com
paciência!
Aniquila-me a
ventura! Sejam meus médicos os que sofrem!
Posso tornar a
descer para o pé dos meus amigos e também dos meus inimigos! Zaratustra pode
tornar a falar e dar e a fazer bem aos seus prediletos!
O meu impaciente
amor transborda em torrentes, precipitando-se desde o oriente até o ocaso. Até
minha alma se agita nos vales, abandonando os montes silenciosos e as
tempestades da dor.
Demasiado tempo
sofri e estive em perspectiva. Demasiado tempo me possuiu a solidão. Agora
esqueci o silêncio.
Todo eu me tornei
qual boca e murmúrio de um rio que salta de elevadas penhas: quero precipitar
as minhas palavras nos vales.
Corre o rio do meu
amor para o insuperável! Como não encontraria um rio enfim o caminho do mar?
Sem dúvida há um
lago em mim, um lago solitário que se basta a si mesmo; mas o meu rio de amor
arrasta-o consigo para o mar.
Eu sigo novas
sendas e encontro uma linguagem nova; à semelhança de todos os criadores,
cansei-me das línguas antigas. O meu espírito já não quer correr com solas
gastas.
Toda a linguagem me
torna moroso. Salto para o teu carro, tempestade! E a ti também quero fustigar
com a minha malícia!
Quero passar por
vastos mares como uma exclamação ou um grito de alegria, até que encontre as
ilhas bem-aventuradas onde moram os meus amigos... e entre eles os meus
inimigos! Como amo agora todos a quem posso falar! Os meus inimigos também
formam parte da minha ventura.
E quando quero
montar no meu mais fogoso cavalo, nada me ajuda tanto como a minha lança;
sempre está pronta a servir-me, a lança que brando contra os meus inimigos.
É muito grande a
tensão da minha nuvem; por entre os risos dos relâmpagos quero lançar granizo
às profundidades.
Formidavelmente se
alevantará o meu peito; formidavelmente soprará a sua tempestade; assim se
aliviará.
Verdadeiramente, a minha
felicidade e minha liberdade sobrevém como tempestades! É mister, porém, que os
meus inimigos imaginem que o mal desencadeia sobre as suas cabeças.
Sim; também a vós,
meus amigos, vos assombrará a minha selvagem sabedoria, e talvez vos ponhais em
fuga com os meus inimigos.
Ah! Saiba eu tornar
a atrair-vos com flautas pastoris! Aprenda a rugir com ternura a minha leonina
sabedoria! Já temos aprendido tanta coisa juntos!
A minha selvagem
sabedoria emprenhou nos montes solitários; nas duras pedras pariu o mais novo
dos seus filhos.
Agora corre louca
pelo deserto árido e procura sem cessar o branco céspede.
No mais branco
céspede de vossos corações, meus amigos... no vosso amor desejaria eu depositar
o mais caro que possuo!”
Assim falava
Zaratustra.
NAS ILHAS BEM-AVENTURADAS
“Os figos caem das
árvores: são bons e doces; e conforme caem assim se lhes abre a vermelha pele”.
Eu sou um vento do Norte para os figos maduros.
Assim como os
figos, caem em vós estas práticas; recebei o seu suco e a sua doce polpa. Em
torno de nós reina o outono, reina a tarde como um céu sereno.
Vede que plenitude
em nosso redor! E que belo, do seio da abundância, olhar para fora, para os
mares longínquos!
Noutro tempo,
quando se olhava para os mares longínquos, dizia-se: “Deus”; mas agora eu vos
ensinei a dizer: “Super-Homem”.
Deus é uma
conjectura; mas eu quero que a vossa conjectura não vá mais longe do que a
vossa vontade criadora.
Poderíeis criar um
Deus? Pois então não me faleis de deuses! Poderíeis, contudo, criar um
Super-homem.
Talvez vós o não
sejais, meus irmãos! Podeis transformar-vos em pais e ascendentes do
Super-homem: seja essa a vossa melhor criação!
Deus é uma
conjectura; mas eu quero que a vossa conjectura se circunscreva ao imaginável.
Poderíeis imaginar
um Deus? Signifique, para vós outros, a vontade de verdade, que tudo se
transforme no que o homem pode pensar, ver e sentir! Deveis cuidar até o último
os vossos próprios sentidos!
E o que chamáveis
mundo deve ser criado já por vós outros; a vossa razão, a vossa imagem, a vossa
vontade, o vosso amor devem tornar-se o vosso próprio mundo. E verdadeiramente,
será para ventura vossa!
Vós, que pensais e
compreendeis, como havíeis de suportar a vida sem essa esperança? Não deveríeis
persistir no que é incompreensível nem no que é irracional.
Hei de vos abrir,
porém, inteiramente o meu coração, meus amigos; se existissem deuses como
poderia eu suportar não ser um deus?!
Por conseguinte, não há deuses.
Fui eu, na verdade,
quem tirou essa conseqüência; mas agora é ela que me tira a mim mesmo.
Deus é uma
conjectura; mas, quem beberia sem morrer, todos os tormentos desta conjectura?
Acaso se quererá
tirar ao criador a sua fé, e à águia o seu vôo pelas regiões longínquas?
Deus é um
pensamento que torce tudo quanto está fixo.
Que!? Não existiria
já o tempo, e todo o perecível seria mentira?
Pensar tal produz
vertigem nos ossos humanos e náuseas no estômago; verdadeiramente, pensar assim
é como sofrer modorra.
Chamo mau e
desumano a isso: a todo esse ensinamento do único, do pleno, do imóvel, do
saciado, do imutável.
O imutável é apenas
um símbolo! E os poetas mentem demais.
As melhores
parábolas devem falar do tempo e do acontecer; devem ser um elogio e uma
justificação de tudo o que é perecível.
Criar é a grande
emancipação da dor e do alívio da vida; mas, para o criador existir são
necessárias muitas dores e transformações.
Sim, criadores, é
mister que haja na vossa vida muitas mortes amargas. Sereis assim os defensores
e justificadores de tudo o que é perecível.
Para o criador ser
o filho que renasce, é preciso que queira ser a mãe com as dores de mãe.
Em verdade, o meu
caminho atravessou cem almas, cem berços e cem dores de parto. Muitas vezes me
despedi; conheço as últimas horas que desgarram o coração.
Mas assim o quer a
minha vontade criadora, o meu destino. Ou, para o dizer mais francamente: esse
destino quer ser minha vontade.
Todos os meus
sentimentos sofrem em mim e estão aprisionados; mas o meu querer chega sempre
como libertador e mensageiro de alegria.
“Querer, libertar”:
é essa a verdadeira doutrina da vontade e da liberdade; tal é a que ensina
Zaratustra.
Não querer mais,
não estimar mais e não criar mais! Ó! fique sempre longe de mim, esse grande
desfalecimento.
Na investigação do
conhecimento só sinto a alegria da minha vontade, a alegria do engendrar; e se
há inocência no meu conhecimento,
é porque nele há
vontade de engendrar.
Essa vontade
apartou-me de Deus e dos deuses. Que haveria, pois, que criar se houvesse
deuses?
A minha ardente
vontade de criar impele-me sempre de novo para os homens, assim como é impelido
o martelo para a pedra.
Ai, homens! Uma
imagem dormita para mim na pedra, a imagem das minhas imagens. Ó! haja de
dormir na pedra mais feia e mais rija!
Agora o meu martelo
desencadeia-se cruelmente contra a sua prisão. A pedra despedaça-se: que me
importa?
Quero acabar esta
imagem, porque uma sombra me visitou; qualquer coisa muito silenciosa e leve se
dirigiu para mim!
A excelência do
Super-homem visitou-me como uma sombra. Ai, meus irmãos! Que me importam já os
deuses?”
Assim falava
Zaratustra.
DOS COMPASSIVOS
“Meus amigos, aos
ouvidos do vosso amigo chegaram palavras zombeteiras: “Olhem para Zaratustra”!
Então não passa por entre nós como por entre animais?”
Mais valeria dizer:
“Aquele que pensa passa pelo meio dos homens como por entre animais”.
O que pensa chama
ao homem animal de faces vermelhas. E por que é isto? Não será por que teve que
se envergonhar demasiadas vezes?
Ó! meus amigos!
Assim fala o pensador: Vergonha, vergonha! é esta a história do homem;!
E por isso o homem
nobre impõe a si mesmo o dever de não envergonhar; quer ter recato perante todo
o que sofre.
Em verdade, não me
agradam os misericordiosos, os que se comprazem na sua piedade; são demasiado
faltos de pudor.
Se hei de ser
compassivo, não quero ao menos que se diga que o sou; e quando o for, que o
seja só à distância.
Agrada-me também
ocultar a cara e fugir antes de ser reconhecido. Meus amigos, convido-vos a
fazer o mesmo.
Depare-me sempre o
meu destino, no caminho que percorro, aqueles que, como vós, não sofrem, e
aqueles com quem posso repartir esperanças, comidas e o mel.
Em verdade, tenho
feito isto e aquilo pelos que sofrem; mas sempre me pareceu melhor quando
aprendia a divertir-me mais.
Desde que há
homens, o homem tem-se divertido muito pouco: é esse, meus irmãos, o único
pecado original.
E quando aprendemos
melhor a divertir-nos, esquecemo-nos melhor de fazer mal aos outros e de
inventar dores.
Por isso lavo a mão
que auxiliou o que sofre. Por isso ainda agora restrinjo a alma.
Envergonho-me de
ter visto sofrer o que sofre, por causa da vergonha dele; e quando acudi em seu
auxílio, feri-lhe rudemente o orgulho.
Grandes favores não
tornam ninguém agradecido, mas apenas vingativo; e mesmo o pequeno benefício,
não sendo esquecido, torna-se um verme roedor.
Sede pertinazes em
obter! E distingui ao aceitar! Aconselho isto aos que não têm que oferecer.
Eu, porém, sou dos
que dão: agrada-me dar, como amigo, aos amigos. Colham, todavia, os estranhos e
os pobres, por si sós, o fruto da minha árvore: é menos humilhante para eles.
Dever-se-iam,
porém, suprimir totalmente os mendigos. Na verdade, desgosta-se uma pessoa por
lhes dar; e desgosta-se por lhes não dar.
Assim sucede com os
pecadores e com as consciências manchadas! Crede-me, meus amigos: os remorsos
impelem a morder.
O pior de tudo, no
entanto, são os pensamentos mesquinhos. Vale mais fazer mal do que pensar
ruimente.
De certo que vós
dizeis: “O prazer das pequenas maldades poupa-nos mais de uma ação má”. Mas
nisso não se deveria querer economizar.
A má ação é como
uma úlcera: desgasta, irrita e faz erupção: fala lealmente.
“Vede: sou uma
enfermidade”. Assim fala a má ação: isto é nobreza.
O pensamento
mesquinho, porém, é como a lama: arrasta-se, agacha-se, e não quer estar em
parte nenhuma, até que as pequenas excrescências apodrecem e abatem o corpo
todo.
Pois eu digo estas
palavras ao ouvido do que está em poder do demônio: “Ainda vale mais que deixes
crescer o teu demônio! Para ti também existe ainda um caminho da grandeza!”
Ai, meus irmãos!
Sabemos demais uns dos outros! E há quem chegue a ser transparente para nós,
mas isso não basta, nem com muito, para o podermos penetrar.
É difícil viver com
os homens, uma vez que é tão difícil guardar silêncio.
E aquele com quem
somos mais injustos não é o que nos é antipático, mas aquele com quem nos não
importamos. Se tens, contudo, um amigo que sofre, sê um asilo para o seu
sofrimento, mas até certo ponto um leito muito duro, um leito de campanha;
assim ser-lhes-ás mais útil.
E se um amigo te
faz mal, diz-lhe: “Perdoo-te o mal que me fizeste; mas se o houvesses feito a ti,
como poderia eu perdoar-to?” Assim fala todo o amor grande: sobrepuja até o
perdão e a piedade.
É preciso conter o
coração: porque, se o deixamos livre, depressa perdemos a cabeça!
Ai! Onde se fizeram
mais loucuras na terra do que entre os que têm dó, e que haverá que mais dano
fizesse na terra do que a loucura dos que têm dó?
Pobres dos que amam
sem estar acima da sua piedade!
O diabo disse-me
assim um dia.: “Deus também tem o seu inferno: é o seu amor pelos homens”.
E ultimamente
ouvi-lhe dizer estas palavras: “Deus morreu; foi a sua piedade pelos homens que
o matou”.
Livrai-vos, pois,
da piedade: por causa dela paira sobre ele uma densa nuvem!
Eu conheço os
sinais do tempo.
Relembrai também
estas palavras: todo o grande amor está ainda superior à piedade, porque aquele
que ama quer também... criá-lo.
“Ofereço-me ao meu
amor, e ao meu próximo como a mim mesmo”. Assim se exprimem todos os
criadores.
Contudo, “todos os
criadores são cruéis”.
Assim falava
Zaratustra.
DOS
SACERDOTES
Um dia Zaratustra
fez um sinal aos discípulos e falou-lhes assim:
“Olhai estes sacerdotes;
conquanto sejam meus inimigos, passai por diante deles silenciosamente e com a
espada embainhada”.
Também entre eles
há muitos heróis, muitos sofreram demais: por isso querem fazer sofrer os
outros.
São maus inimigos:
nada há mais vingativo do que a sua humildade. E quem os ataca, facilmente se
macula.
“O meu sangue é,
porém, igual ao deles; e eu quero que o meu sangue seja honrado até no deles.”
Quando passaram, a
dor embargou Zaratustra; depois de lutar uns momentos com a dor, começou a
falar assim:
“Aqueles sacerdotes
causam-me pena e são-me antipáticos; mas desde que estou entre os homens, isso
é o que menos me importa.
Fizeram-me e
fazem-me sofrer; vejo-os prisioneiros e marcados. Aquele a quem chamam o
Salvador pôs-lhes as algemas.
As algemas dos
valores falsos e das palavras ilusórias! Ai! Haja quem os salve do seu
Salvador!
Quando o mar um dia
os arrojou julgaram arribar a uma ilha; mas afinal deram com um monstro
adormecido!
Falsos valores e
palavras ilusórias: eis quais são para os mortais os monstros mais perigosos:
neles dormita e aguarda largo tempo o destino.
Afinal desperta e
devora aquele que nele se albergou.
Ó! Aquela luz
artificial! aquela atmosfera pesada! A alma ali não pode voar até à sua
própria alma.
A sua crença ordena
isto: “Vós, pecadores, subi de joelhos as escadas”
Em verdade, prefiro
ver o impúdico a esses olhos deslocados pela vergonha e pela devoção!
Quem, pois, criou
semelhantes antros e semelhantes graus de penitência? Não eram os que queriam
esconder-se e a quem o céu límpido ofendia?
E só quando o céu
límpido olhe novamente através das abóbadas rendilhadas e contemple a erva e as
vermelhas papoulas dos ruinosos muros, só então inclinarei o meu coração
novamente ante as moradias desse Deus.
Chamaram Deus ao
que os contrariava e prejudicava, e, na verdade havia na sua adoção muito
heroísmo!
E não souberam amar
ao seu Deus senão crucificando o homem!
Pensaram viver como
cadáver; amortalharam de negro os seus cadáveres, e até nas suas palavras
percebo o mau cheiro das câmaras mortuárias.
E o que habita
junto deles, habita junto dos negros tanques onde se ouve cantar o sapo com
doce melancolia.
Seria preciso
entoarem melhores cânticos para eu crer no seu Salvador; seria preciso que os
seus discípulos tivessem mais aparência de redimidos.
Quereria vê-los
nus: porque só a beleza devia pregar o arrependimento. Quem convencerá essa
compunção mascarada?
Mesmo os salvadores
desses homens não descendiam da liberdade e do sétimo céu da liberdade! Nunca
andaram sobre as alfombras do conhecimento!
O espírito desses
salvadores era todo vácuo, e nesse vácuo tinham posto a sua loucura o seu
supre-faltas a que chamaram Deus.
O seu espírito
estava mergulhado em piedade, e quando se enchiam de piedade sempre sobrenadava
uma grande loucura.
Ousadamente
lançavam o seu rebanho ao caminho, dando gritos: como se não houvesse mais do
que um caminho que fosse dar ao futuro! Em verdade, esses pastores também
formavam parte das ovelhas.
Tais pastores
tinham espírito pequeno e almas grandes sensitivas; mas, meus irmãos, quão
pequenas foram até agora as almas sensitivas, mesmo as maiores!
No caminho que
trilharam escreviam sinais de sangue, e a sua loucura ensinava que com o sangue
se dá testemunho da verdade.
O sangue, porém, é
o pior testemunho da verdade; o sangue envenena a doutrina mais pura e muda-a
em loucura e ódio dos corações.
E quando alguém
atravesse o fogo pela sua doutrina, isso que prova? Coisa muito divina é quando
do própria incêndio surge a própria doutrina.
O coração ardente e
a cabeça fria: quando estas duas coisas se reúnem, nasce o torvelinho, o
“Salvador”.
Em verdade, houve
nascidos melhores e maiores do que aqueles a que o povo chama salvadores, esses
arrebatadores torvelinhos. E é mister, meus irmãos, que sejais salvos por outros
maiores ainda do que todos os salvadores, se quereis encontrar o caminho da
liberdade.
Nunca houve um
Super-homem. Tenho visto a nu todos os homens, o maior e o mais pequeno.
“Parecem-se ainda
demais uns com os outros: até o maior era demasiado humano”.
Assim falava
Zaratustra.
DOS VIRTUOSOS
“A força de tronos
e de fogos de artifício celestes, é preciso falar aos sentidos frouxos e
adormecidos.
A voz da beleza,
porém, fala baixo: só se insinua nas almas mais despertas.
Hoje o meu escudo
riu-se e estremeceu brandamente: era o estremecimento e o riso sagrado da
beleza!
De vós, ó!
virtuosos, se ria a minha beleza. E a sua voz chegava assim até mim: “Ainda
querem ser pagos”.
Virtuosos, ainda
quereis ser pagos? Quereis recompensa por vossa virtude, e o céu em vez da
terra e a eternidade em vez do vosso hoje?
E antipatizais
comigo porque ensino que não há remunerador nem pregador? E na verdade, nem
sequer ensino que a virtude seja recompensa de si própria.
Ah! É essa a minha
pena! Introduziu-se astutamente a recompensa e o castigo no fundo das coisas e
até no fundo das vossas almas, virtuosos!
A minha palavra,
porém, semelhante ao colmilho do javali, deve dilacerar o fundo de vossas almas
e eu quero ser para vós relha de arado.
Saiam à luz todos
os segredos do vosso íntimo, e quando os virdes expostos ao sol, rasgados e
despedaçados, então ficará a vossa mentira também separada da vossa verdade.
Porque esta é a
vossa verdade: sois demasiado limpos para a mancha da palavra vingança,
castigo, recompesa, represálias.
Amais a vossa
virtude como a mãe ama o filho, e quando se ouviu dizer que uma mãe quisesse
ser paga do seu amor?
A vossa virtude é o
melhor de vós mesmos. Tendes desejo do anel que se retorce para tornar sobre
si.
E toda a obra da
vossa virtude é como estrela que se apaga: a sua luz caminha ainda e continua
viajando. Quando deixará de caminhar?
Assim a luz da
vossa virtude caminha ainda, mesmo depois da obra cumprida. Fique, pois,
esquecida e morta: o seu raio de luz prossegue a sua viagem.
Seja a vossa
virtude o vosso próprio ser, e não qualquer coisa estranha, uma epiderme, uma
capa: eis a verdade do fundo da vossa alma, ó! virtuosos!
Mas há também
alguns para quem a virtude é um espasmo produzido pelas disciplinas, e vós
ouvistes de sobra os gritos desses!
E há outros que
chamam virtude à preguiça do seu vício; e quando alguma vez desprezam o seu
ódio e a sua inveja, a sua “justiça” desperta e esfrega os olhos sonolentos.
E há outros que se
vêm arrastados para baixo; tiram de si mesmos os seus demônios; mas quanto mais
se fundem, mais os olhos se lhes incendeiam e mais cobiçam o seu Deus.
Ai! Também o grito
destes chegou aos vossos virtuosos ouvidos: “O que eu não sou é isso que
é para mim Deus e a virtude”.
E há outros que
andam pesadamente, chiando como carros transportando pedra ladeira abaixo:
falam muito de dignidade e de virtude: chamam virtude ao seu freio.
E há outros que
parecem relógios a que se dá corda; produzem o seu tique-taque e querem que
esse tique-taque se chame virtude.
Na verdade, estes
divertem-me: onde quer que encontre tais relógios dar-lhes-ei corda com a minha
ironia, e não terão outro remédio senão pôr-se a andar.
E outros
orgulham-se do seu punhado de justiça, e em nome disso atropelam tudo, de modo
que o mundo se afoga na sua injustiça.
Que náuseas, quando
lhes sai da boca a palavra virtude! E quando dizem: “Sou justo”, é num tom em
que se percebe: “Estou vingado!”
Querem despojar os
seus inimigos com a sua virtude, e só se elevam para rebaixar os outros.
E há outros ainda
que apodrecem no seu pântano e que falam por entre o caniçado: “Virtude é estar
quieto no pântano.
“Não mordemos a
ninguém e afastamo-nos daquele que quer morder; e em todas as coisas somos da
opinião que se nos dá.”
E há ainda outros
que gostam da mímica, e pensam: “A virtude é uma espécie de mímica”.
Os seus joelhos
estão sempre em adoração, e as suas mãos juntam-se em louvor à virtude; mas o
coração está alheio a tudo isso.
E há outros que
julgam que é virtuoso dizer: “A virtude é necessária”; mas no fundo só crêm
numa coisa.
E alguns, que não
sabem ver quanto de elevado há no homem, falam de virtude quando vêm perto
demais a sua baixeza: deste modo chamam “virtude” aos seus maus olhos.
Uns querem ser
elevados e nomeados, e chamam a isso virtude; os outros querem ser
derribados... e também chamam a isso virtude.
E assim quase todos
julgam ter alguma parte na virtude; e todos querem, pelo menos, ser
inteligentes em questão de “bem” e de “mal”.
Zaratustra, porém,
chegou, para dizer a todos esses embusteiros e insensatos: “Quem sabeis vós da
virtude? Que podereis saber da virtude?”
Vim aqui, meus
amigos, para que vos canseis das alheias palavras que tereis aprendido dos
embusteiros e dos insensatos.
Para que vos
canseis das palavras “recompensa”, “represálias”, “castigo”, “vingança na
justiça”.
Para que vos
canseis de dizer que “uma ação é boa porque é desinteressada”.
Ai, meus amigos!
Esteja o vosso próprio ser na ação como a mãe no filho; seja esta a vossa palavra
de virtude!
Verdadeiramente, eu
tirei-vos com palavras os mais caros brinquedos da vossa virtude; e agora
fazeis “beicinho” como as crianças.
Brincavam à
beira-mar e veio a onda e levou-lhes os brinquedos para as profundezas. Agora
choram.
A mesma onda,
porém, lhes trará novos brinquedos e espalhará aos pés deles novas conchas
coloridas.
“Assim se
consolarão, e vós também, meus amigos, tereis como eles vossos consolos e novas
conchas coloridas”.
Assim falava
Zaratustra.
DA CANALHA
A vida é uma fonte
de alegria, mas onde quer que a canalha vá beber, todas as fontes estão
envenenadas.
Agrada-me tudo o
que é limpo; mas não posso ver as bocarras grotescas e a sede dos impuros.
Lançaram as suas
vistas para o fundo do poço; agora reflete-se do fundo o seu odioso sorriso.
Envenenaram a água
santa com a sua concupiscência; e ao chamar alegria aos seus torpes sonhos, até
envenenaram as palavras.
A chama indigna-se
quando eles põem ao fogo os seus úmidos corações; o próprio espírito ferve e
fumega quando a canalha se abeira do fogo.
A fruta mela-se e
torna-se enjoativa nas suas mão; o seu olhar é vento abrasador que seca a
árvore de fruto.
E mais de um dos
que se apartaram da vida, tão somente se apartaram da canalha; que queiram
repartir com a canalha a água, a chama e o fruto.
E mais de um que se
retirou ao deserto para lá sofrer a sede com os animais selvagens, fê-lo para
se não sentar junto da cisterna em companhia de imundos cameleiros.
E mais de um que
avançava como exterminador e como saraivada pelos campos de semeadura, só
queria pôr o pé na boca da canalha para lhe tapar o gasnete.
E o que mais me
perturba não era saber que até a vida se encontra necessitada de inimizade, de
morte, e de cruzes de mártires; mas tão somente me perguntei um dia, e a
pergunta quase me sufocava:
Que? Teria a vida
também necessidade da canalha?
As fontes
envenenadas, os fogos pestilentos, os sonhos maculados, os vermes no pão da
vida, são coisas necessárias?
Não era o ódio, mas
o nojo o que me devorava a vida! Ai! muitas vezes chegou a enfastiar-me o
engenho, o ver que também a canalha era engenhosa!
E voltei costas aos
dominadores assim que vi o que hoje chamam dominar, traficar e regatear em
matérias de poder... com a canalha!
E permaneci entre
os povos como estrangeiro, e com os ouvidos cerrados, a fim de que fossem
coisas estranhas para mim a linguagem do seu tráfico e o seu regatear pelo
poder.
E apertando as
narinas atravessei com desalento todo o ontem e o hoje; na verdade, o ontem e o
hoje empestam a populaça de pena.
Como um válido que
ficou surdo, cego e mudo, assim vivi muito tempo, para não viver com a canalha
do poder, da pena e dos prazeres.
Dificilmente e com
cautela o meu espírito subiu escadas; as esmolas da alegria foram a sua
consolação; a vida do cego deslizava apoiada num báculo.
Que me sucedeu,
então? Como me curei da aversão? Quem rejuvenesceu meus olhos? Como remontei às
alturas onde já há canalha sentada à beira das fontes?
A minha própria
aversão me deu asas e forças que pressentiam os mananciais? Na verdade tive que
voar ao mais alto para tornar a encontrar a fonte da alegria.
Ó! encontrei-a,
meus amigos! Aqui, no mais alto brota para mim a fonte de alegria! E há uma
vida em que se pode beber sem a canalha!
Fonte da alegria,
quase brotas com demasiada violência! E amiúde esvazias a taça em vez de a
encher!
Ainda tenho que
aprender a aproximar-me de ti mais moderadamente; o meu coração acorre ao teu
encontro com demasiada pressa: este coração onde arde o meu estio, o breve,
ardente, melancólico e venturoso estio. Como anela pela sua frescura o meu
coração estival!
Passou a aflição da
minha primavera! Passaram os malignos corpos de neve em pleno junho! Já sou
interessante estival e tarde de estio!
Um estio nas
maiores alturas, com frescos mananciais e ditosa tranqüilidade. Ó! Vinde,
amigos meus! seja ainda mais ditosa esta tranqüilidade!
Porque esta é a nossa
altura e nossa pátria; e nossa mansão é demasiado elevada e escarpada para
todos os impuros e para a sede dos impuros.
Lançai, pois, os
vossos puros olhares à fonte da minha alegria, meus amigos!
Como poderia
turvar-se? Sorrir-vos-á com a sua preguiça.
Nós outros,
solitários, construímos o nosso ninho na árvore do futuro; as águias nos trarão
no bico o sustento.
E de certo não será
um sustento de que possam participar os impuros! Porque os impuros julgariam
que devoravam fogo e que as fauces se lhes abrasavam.
Não preparamos
aqui, em verdade, moradias para os impuros! A vossa ventura pareceria glacial
aos seus corpos e aos seus espíritos!
E nós queremos
viver por cima deles como ventos fortes, vizinhos das águias, vizinhos do sol;
assim vivem os ventos fortes.
E à semelhança do
vento, quero soprar entre eles um dia e cortar a respiração ao seu espírito;
assim o quer o meu futuro.
Zaratustra, em
verdade, é um vento forte para todas as terras baixas, e dá estes conselhos aos
seus inimigos e a quantos cospem e vomitam; “Livrai-vos de cuspir para o ar!”
Assim falava
Zaratustra.
DAS TARÂNTULAS
“Olha: é esta a
toca da tarântula”! Queres vê-la a ela mesma? Está aqui a sua teia; toca-lhe
para a veres tremer.
Olha: ei-la aqui,
sem se fazer rogar. Bem-vinda tarântula! No teu escuro lombo negreja a
característica marca triangular, e eu também sei o que há na tua alma.
Em tua alma
aninha-se a vingança; onde quer que fiques, forma-se uma crosta negra. A
vingança levanta na tua alma torvelinhos de vingança.
Assim vos falo em
parábola a vós que levantais torvelinhos na alma, pregadores da igualdade!
Vós outros sois, para mim tarântulas sedentas de secretas vinganças.
Eu, porém, acabarei
de revelar os vossos esconderijos, por isso me rio na vossa cara com o meu riso
das alturas!
Por isso despedaço
a vossa teia, para que a cólera vos faça sair do vosso antro de mentira e para
que a vossa vingança apareça por detrás das vossas palavras de “justiça”.
Seja o homem salvo
da vingança;
é esta para mim a ponte da esperança superior, e um arco-íris anuncia grandes
tormentas.
As tarântulas, todavia,
compreendem doutra forma. “Justamente quando as tempestades da nossa vingança
enchem o mundo, é quando nós dizemos que haja justiça”. Assim falam elas entre
si.
“Queremos exercer
nossa vingança e lançar nossos ultrajes sobre todos os que não são semelhantes
a nós outras”. Isso juram a si mesmas as tarântulas.
E acrescentam:
“Vontade de igualdade, isto será daqui por diante o nome da virtude, e queremos
erguer o grito contra tudo o que é poderoso!”
Sacerdotes da
igualdade: a tirânica loucura da vossa impotência reclama em brados a
“igualdade”, por detrás das palavras de virtudes esconde-se a vossa mais
secreta concupiscência de tiranos!
Vaidade acre,
inveja contida — talvez a vaidade e a inveja de nossos pais — de vós saem essas
chamas e essas loucuras de vingança.
O que o pai calou,
fala o filho, e muitas vezes vi revelado no filho o segredo do pai.
Parecem-se com os
extáticos; não é, porém, o coração que os extasia, mas a vingança.
E se tornam frios e
sutis, não é por agudeza, mas por inveja.
Também levam os
zelos à senda dos pensadores; é este o sinal da sua emulação; sempre vão tão
longe, tão longe, que afinal o seu cansaço tem sempre que adormecer até o meio
da neve.
Todos os seus
lamentos têm acentos de vingança; todos os seus elogios ocultam malefícios, e
para eles serem juizes é a suprema felicidade.
Eis aqui, todavia,
o conselho que vos dou, meus amigos: desconfiai de todos os que sentem
poderosamente o instinto de castigar!
São pessoas de má
raça e de má casta; por eles assomam o polícia e o verdugo.
Desconfiai de todos
os que falam muito da sua justiça! Não é só mel o que falta às suas almas.
E se se chamam a si
mesmos “os bons e os justos” não esqueçais que, agora, para serem fariseus só
lhes falta... o poder.
Meus amigos, não
quero que se me misture e se me confunda.
Há quem pregue a
minha doutrina da vida, mas são a um tempo pregadores da igualdade e
tarântulas.
Estas aranhas
venenosas falam a favor da vida, apesar de estarem acaçapadas nas suas cavernas
e afastadas da vida: porque assim querem prejudicar.
Querem prejudicar
os que têm agora o poder; porque entre estes é ainda a coisa mais familiar a
prática da morte.
A ser doutro modo,
doutro modo pregariam as tarântulas: porque noutro tempo foram elas
precisamente as que melhor souberam caluniar o mundo e queimar hereges.
Com estes
pregadores da igualdade é que eu não quero ser misturado nem confundido. Porque
a justiça me fala assim: “Os homens não são iguais”.
Não devem tampouco
chegar a sê-lo. Que seria, pois, o meu amor ao Super-homem, se eu falasse
doutro modo?
Por mil pontes e
por mil caminhos se devem precipitar para o porvir, e sempre haverá que colocar
entre eles mais guerras, e desigualdades: assim me faz falar o meu grande amor!
Devem-se tornar
inventores de imagens e de fantasmas em suas inimizades, e com as suas imagens
e os seus fantasmas devem travar entre si o maior combate.
Bom e mau, rico e
pobre, alto e baixo, todos os nomes de valores devem ser armas e símbolos
bélicos, em sinal de que a vida sempre se há de superar novamente a si mesma.
Ela, a própria
vida, quer elevar-se às alturas com pilares e grades: quer escrutar os
longínquos horizontes e penetrar com os seus olhares as supremas belezas: para
isso necessita as alturas.
Por conseguinte
necessita alturas, necessita degraus e contradição dos degraus e dos que se
elevam! A vida quer elevar-se e superar-se a si mesma.
E vede, meus
amigos! Aqui, onde está a caverna da tarântula, elevam-se as ruínas de um
templo antigo: olhai com olhos iluminados.
O que aqui em
outros dias elevou na pedra os seus pensamentos para as alturas, esse deve ter
conhecido o segredo da vida toda, como o mais sábio.
Haja até na beleza
luta e desigualdade e guerra pelo poder e pela supremacia; isto nos ensina ele
aqui no símbolo mais luminoso.
Assim como aqui
abóbadas e arcos travam corpo a corpo um divino combate, e assim como luz e
sombra pugnam entre si em divina competência, assim fortes e nobres, sejamos
nós também inimigos, meus amigos! Pugnemos divinamente uns contra os outros!
Desventura! Também
me picou a tarântula, minha antiga inimiga! Divinamente firme e bela picou-me
no dedo!
“Há de haver
castigo e justiça — pensa a tarântula: — não é em vão que canta aqui o hino em
honra da inimizade!”
Sim; está vingada!
Pobre de mim; vai minha alma girar como um turbilhão de vingança!
Mas, para ela não
girar, meus amigos, atai-me fortemente a esta coluna. Antes quero ser um
estilista do que um turbilhão de vingança!
Zaratustra não é um
turbilhão nem uma tromba, e se é bailarino, não é bailarino de tarantela!”
Assim falava
Zaratustra.
DOS SÁBIOS CÉLEBRES
“Todos vós, ó
sábios célebres, tendes servido o povo e a superstição do povo, e não a
verdade”! E é precisamente por isso que vos têm honrado.
E por isso também
foi tolerada a vossa incredulidade, porque era um rodeio engenhoso para o povo.
Assim procede o amo com os seus escravos, e por seu desaforo o mantém.
O povo, porém, a
quem detesta, tanto como os cães ao lobo, o espírito livre, inimigo dos
preconceitos, aquele que a ninguém presta culto e que habita nos bosques.
Escorraçá-lo do seu
esconderijo é o que o povo chamou sempre o “sentido da justiça”, e até açula
contra o espírito livre os seus mais ferozes mastins.
“Porque a verdade
está onde está o povo! Desgraçado, três vezes desgraçado aquele que investiga!”
Eis o que em todos os tempos se tem repetido.
Queríeis justificar
a veneração do vosso povo: a isto chamastes “desejo de verdade”. Ó! sábios
célebres!
E o vosso coração
disse sempre: “Eu saí do povo: dele me veio também a voz de Deus”.
Pacientes e astutos
como o asno sempre intercedestes pelo povo.
E mais de um
potentado, que queria estar bem com o povo, atrelou à dianteira dos seus
corcéis, um burrico, um sábio célebre.
E agora, ó! sábios
célebres! quisera que arrojasseis para longe de vós a pele de leão.
A pintada pele da
fera e o pêlo do explorador, do investigador e do conquistador.
Para aprender a
crer na vossa “veracidade” necessitava ver-vos romper com a vossa vontade
veneradora.
Por mim, chamo
verídico àquele que vai para os desertos sem Deus, aniquilando o seu coração
reverente.
No meio da amarela
areia e abrasado pelo sol acontece-lhe olhar com avidez para as ilhas de
copiosas fontes onde, sob um brosas árvores, repousa a vida.
A sua sede, porém,
não o decide a imitar esses sibaritas porque onde há oásis há também ídolos.
Faminta, violenta,
solitária, sem deuses: assim se quer a si própria a vontade-leão.
Livre dos deleites
dos servos, livre dos deuses e das adorações, sem espanto e espantosa, grande e
solitária: tal é a vontade do verídico.
No deserto têm
vivido sempre os verídicos, os espíritos livres, como senhores do deserto; mas
nas cidades residem os sábios célebres e bem alimentados: os animais de tiro.
Que eles puxem
sempre, como burros, pelo carro de povo!
E não é porque lho
queira lançar em cara, mas não passam de servidores e de seres jungidos, embora
usem dourados arreios.
E muitas vezes têm
sido bons servidores, dignos de louvor; porque assim fala a virtude: “Se é
forçoso seres servidor procura aquele a quem mais aproveitem os teus serviços”.
“O espírito e a
virtude do teu amo devem aumentar por estares ao serviço dele: e assim tu mesmo
te engrandeces com o seu espírito e a sua virtude”.
E na verdade,
sábios célebres, servidores do povo, aumentastes com o espírito e a virtude do
povo, e o povo aumentou por vossa causa.
Digo isto em vossa
honra.
Continuais, porém,
a ser povo, até nas vossas virtudes, povo de olhos fracos, povo que não sabe o
que é o espírito.
O espírito é a vida
que clarifica a própria vida; como o seu mesmo sofrimento aumenta o seu saber:
já o sabíeis?
E a felicidade do
espírito consiste nisto: em ser ungido pelas lágrimas, em ser vítima sagrada do
holocausto: já o sabíeis?
E o que pensa e
compreende deve aprender a construir com montanhas! Transportar
montanhas é para o espírito pouca coisa: já o sabíeis?
Vós só vedes as
centelhas do espírito; mas não a qualidade de bigorna que é, nem aonde chega a
crueldade do seu martelo.
Na verdade, vós não
conheceis a altivez do espírito! Ainda suportaríeis menos a sua modéstia, se a
modéstia do espírito quisesse falar!
E nunca pudestes
guindar o vosso espirito a cumieiras de neve; não tendes bastante valor para
isso! Ignorais também, por conseguinte, os arroubamentos da sua frescura.
Em todas as coisas,
porém, me pareceis tomar demasiadas liberdades com o espírito, e muitas vezes
fizestes da sabedoria um hospital de maus poetas.
Vós não sois
águias: por isso não conhecestes o gozo no assombro do espírito. Quem não é ave
não deve voar sobre abismos.
Pareceis-me tíbios,
e a corrente de todo o conhecimento profundo é fria. São glaciais as fontes
interiores do espirito: um consolo para mãos e trabalhadores ardentes.
Vós, sábios
célebres, permaneceis aí, respeitáveis e eretos, com a espinha direita! Não vos
impele o vento forte de uma vontade poderosa.
Nunca vistes cruzar
o mar uma vela trêmula enfunada pela impetuosidade do vento?
Como vela que treme
com a impetuosidade do espírito, assim cruza o mar a minha sabedoria, a minha
selvática sabedoria!
Mas vós, servidores
do povo, sábios célebres, como poderíeis acompanhar-me?
Assim falava
Zaratustra.
O CANTO DA NOITE
“É noite; agora
eleva-se mais a voz das fontes. E a minha alma é também uma fonte.
É noite; agora
despertam todos os cantos dos amantes. E a minha alma é também um canto de
amante.
Há qualquer coisa
em mim não aplicada nem aplicável, que quer elevar a voz. Há em mim um anelo de
amor que fala a linguagem do amor.
Eu sou luz. Ah! se
fosse noite! Mas é esta a minha soledade: ver-me rodeado de luz.
Ah! se eu fosse
sombrio e noturno! Como sorveria os seios da luz!
E também vos
bendiria a vós, estrelinhas que brilhais lá em cima como pirilampos! E seria
venturoso com vossos mimos de luz.
Eu, porém, vivo da
minha própria luz, absorvo em mim mesmo as chamas que de mim brotam.
Eu não conheço o
prazer de receber, e freqüentemente tenho sonhado que roubar deve ser ainda
maior deleite do que receber.
A minha pobreza
reside em que a minha mão nunca se cansa de dar, a minha inveja são os olhos
que vejo esperando, e as noites vazias do desejo.
Ó! miséria de todos
os que dão! Ó! eclipse do meu sol! Ó! desejo de desejar! Ó! fome devoradora na
fartura!
Eles recebem de
mim; mas, acaso lhes tocarei eu sequer a alma? Entre dar e receber há um
abismo; e é muito difícil transpor o mais pequeno abismo.
Nasceu um homem da
minha beleza: quereria prejudicar os que ilumino; quereria saquear os que
cumulo de presentes: assim tenho ânsia de maldade.
Retirando a mão,
quando a mão já se estende; vacilando como a cascata que vacila até na sua
queda; assim eu tenho sede de maldade.
Tais vinganças
medita a minha exuberância; tais malícias nascem da minha soledade.
O meu prazer de dar
morreu à força de dar; a minha virtude cansou-se de si mesmo por sua própria
exuberância.
O que dá sempre,
corre perigo de perder o pudor; aquele que reparte sempre, à forca de repartir
acaba por se lhe calejarem as mãos e o coração.
Os meus olhos já se
não arrasam de lágrimas ao ver a vergonha dos que imploram; a minha mão endureceu
demais para experimentar o tremor das mãos cheias.
Para aonde foram às
lágrimas dos meus olhos e a plumagem do meu coração? Ó! soledade de todos que
dão! Ó! silêncio dos que brilham!
Muitos sóis
gravitam no espaço vazio; a sua luz fala a tudo que é obscuro; só para mim
emudeceu.
Ó! É a inimizade da
luz contra o luminoso! Desapiedade, segue o seu caminho. Profundamente injusto
contra o luminoso, frio para com os sóis, assim caminha todo o sol.
Como uma
tempestade, voam os sóis por suas órbitas: é esse o seu caminho. Seguem a sua
vontade inexorável: é essa a sua frialdade.
Ai! só vós obscuros
e noturnos, que tirais o vosso calor do luminoso, só vós bebeis o leite
balsâmico dos úberes da luz!
Ai! há gelo em
torno de mim, gelo que queima as minhas mãos! Tenho uma sede que suspira por
vossa sede!
É noite. Ai! Por
que hei de eu ser luz? E sede do noturno! E soledade!
É noite... como uma
fonte, brota o meu anelo — meu anelo de fulgor.
É noite: agora
eleva-se mais a voz das fontes; e a minha alma é também uma fonte.
É noite: agora
despertam todos os cantos dos namorados. “E a minha alma é também um canto de
namorado”.
Assim falava
Zaratustra.
O CANTO DO
BAILE
Uma tarde,
atravessava Zaratustra o bosque com os seus discípulos, e procurando uma fonte,
chegou a um verde prado rodeado de árvores e matagais: estavam ali bailando
umas jovens. Logo que viram Zaratustra deixaram de bailar; mas Zaratustra
aproximou-se-lhes amigavelmente e disse estas palavras: “Não pareis de bailar,
encantadoras meninas”! Quem se aproxima de vós não é um obstáculo ao vosso
recreio, não é um inimigo das jovens.
Sou o advogado de
Deus ante o diabo, e o diabo é o espírito da gravidade. Como, ó! vaporosas!
Poderia eu ser inimigo das divinas danças ou dos pés juvenis de lindos
tornozelo?
É certo que sou uma
selva e uma noite de escuras árvores; mas aquele que não temer a minha
obscuridade encontrará sob os meus ciprestes sendas de rosas.
Saberá também
encontrar o pequenino deus preferido das donzelas: está junto da fonte,
silencioso, com os olho cerrados.
Adormeceu em pleno
dia o folgazão! Andou azafamado demais à procura de mariposas?
Não vos agasteis
comigo, formosas bailadeiras, se fustigo um tanto o pequenino deus. Pode ser
que ele se ponha a gritar e a chorar; mas até chorando se presta ao riso.
E com lágrimas nos
olhos vós deveis pedir uma dança; e eu mesmo acompanharei essa dança com uma
canção.
Uma canção de baile
e uma sátira sobre o espírito da gravidade, sobre o meu diabo soberano
onipotente, que dizem ser o “dono do mundo”.
Eis aqui a canção
que Zaratustra cantou. Cupido e as jovens dançavam:
“Ainda há pouco
olhei os teus olhos, ó”! vida! e parecia-me cair no insondável!
“Assim falam todos
os peixes — dizias — o que eles não podem penetrar é insondável”.
“Eu, porém, sou
volúvel e selvagem, mulher em tudo, e nunca virtuosa”.
“Posto que para
vós, homens, eu seja “a profunda”, ou “a fiel”, “a eterna”, “a misteriosa”“.
“Mas vós, homens,
ó! virtuosos! emprestais-nos sempre as vossas próprias virtudes”.
Assim ria ela, a
inacreditável; que nunca a acredito, nem a ela nem ao seu riso, quando fala de
si própria.
E quando eu falava
a sós com a minha selvagem sabedoria, disse-me ela irritada:
“Tu queres, tu
desejas, tu amas! e só por isso lisonjeias a vida”.
Pouco me faltou
para responder mal e dizer a verdade à irritada; e ninguém pode responder pior
do que quando “diz a verdade” à sua sabedoria.
Assim sucede
convosco. Eu nada amo mais profundamente do que a vida, e ainda mais quando a
detesto.
Se me inclino para
a sabedoria, e amiúde com excesso, é porque me lembra bastante a vida.
Tem os seus olhos,
o seu riso e até o seu dourado anzol. Que hei de fazer, se se parecem tanto as
duas?
E quando um dia a
vida me perguntou:
“Mas, que é
sabedoria?” — eu respondi pressuroso: “Ah! sim! a sabedoria!
Estamos sedentos
dela, e não nos saciamos; olhamo-la através de uma bruma; queremos alcançá-la
através de uma rede.
É formosa? Não sei!
Até as carpas mais velhas, porém, se deixam colher por ela.
É versátil e
obstinada: muitas vezes lhe vi morder os lábios e eriçar o cabelo com o pente.
“Talvez seja má e
falsa mulher em tudo; mas quando fala mal de si mesma, é quando seduz mais”.
Quando disse isto à
vida, ela riu-se maldosamente e cerrou os olhos. “Mas, de quem falas tu? —
disse. É de mim?
E conquanto
tivesses razão, dizeres-me isso na minha cara. Fala, pois da tua sabedoria!”
Ai! E então
tornaste a abrir os olhos, ó! amada vida! E parecia-me tornar a cair no
insondável!”
Assim cantou
Zaratustra. Mas quando, acabado o baile, as donzelas se afastaram, ficou
triste.
“O sol já se pôs há
muito — disse por fim”. — O prado está úmido, sente-se a frescura dos bosques.
Há algo
desconhecido em torno de mim, que olha pensativo. Que? Ainda vives, Zaratustra?
Por que? Para que?
Onde? Como? Não é uma loucura viver ainda?
Ai, meus amigos! É
a noite que assim me interroga. Perdoai-me a tristeza!
Cerrou-se a noite!
Perdoai-me ter-se cerrado a noite!”
Assim falava Zaratustra.
O CANTO DO
SEPULCRO
“Além está a ilha
dos sepulcros, a silenciosa; além estão também os sepulcros da minha juventude.
Além quero levar uma coroa imarcescível da vida”.
E atravessei o mar.
“Ó! imagens e
visões da minha juventude! Ó! olhares de amor, momentos divinos! Como vos
desvanecesteis depressa! Penso hoje em vós como nos meus mortos.
De vós, mortos
prediletos, chega até mim um suave perfume que alivia o coração e faz correr as
lágrimas. Verdadeiramente esse perfume agita e alivia o coração do que navega
solitário.
Sou eu sempre o
mais rico e invejável, — eu, o solitário! — Porque vos possuí a vós
outros, e vós me possuís ainda; dizei-me: para quem caíram da árvore maçãs mais
vermelhas do que para mim?”
Eu sou sempre o
herdeiro e o terreno próprio do vosso amor, onde florescem, em memória, meus
amados, silvestres virtudes de todas as cores.
Ai! nós outros
éramos feitos para permanecer uns ao pé dos outros; e vós outras, estranhas e
deliciosas maravilhas, não vos apaixonastes por mim e pelo meu desejo como
tímidas aves, não visteis como o confiado naquele que confia.
Sim; feitos para a
fidelidade como eu, e para a doce eternidade, agora terei de vos lembrar por
vossa infidelidade; ó! olhares e momentos divinos! ainda não aprendi outro
nome.
Demasiado cedo
morresteis para mim, fugitivos. Não fugisteis, todavia, de mim, nem eu de vós:
não somos culpados uns para com os outros da nossa infidelidade.
Estrangularam-vos
para me matarem a mim, aves das minhas esperanças! Sim; para vós, amados meus,
atira sempre flechas a maldade, para me alcançar o coração.
E alcançou! Porque
vós fosteis sempre o mais caro para mim, o meu bem, a minha posse; por isso
tivesteis que morrer novos e cedo demais.
Para o mais
vulnerável que havia em mim se disparou a flecha: para vós, cuja pele é
semelhante ao pulmão, ainda mais o sorriso que morre de um olhar.
Eu, porém, hei de
dizer aos meus inimigos: Que é matar um homem, em comparação com o que me
fizesteis?
O que fizesteis
comigo é pior que um assassínio: tirasteis-me o irrestituível. Assim vos falo
eu, inimigos meus! Matasteis as visões da minha juventude e as minhas mais
caras maravilhas. Tirasteis-me os meus companheiros de recreio, os espíritos
bem-aventurados! Em memória deles deposito esta coroa e esta maldição.
Esta maldição
contra vós, inimigos! Porque encurtasteis a minha eternidade como se interrompe
um som na fria noite! Sozinho, veio para mim a eternidade como olhar de olhos
divinos, como um relance.
Assim me disse um
dia minha pureza na hora propícia: “Para mim todos os seres devem ser divinos”.
Então
precipitasteis sobre mim imundos fantasmas. Ai! para onde fugiu aquela hora
propícia?
“Todos os dias
devem ser sagrados para mim”.
Assim me falou um
dia a sabedoria da minha juventude; palavras, na verdade, de uma prazenteira
sabedoria.
Vós, porém,
inimigos meus, roubasteis-me as minhas noites para trocar por tormentoso velar.
Ai! Para onde fugiu aquela prazenteira sabedoria?
Noutro tempo já
suspirava por presságios felizes, e vós fizesteis passar pelo meu caminho uma
monstruosa e sinistra coruja. Ai! Para onde fugiu então o meu doce desejo?
Um dia fiz voto de
renunciar a toda a repugnância e vós convertesteis em úlceras tudo quanto me
rodeia! Ai! Para onde fugiram então os meus mais nobres votos?
Como cego percorri
venturosos caminhos; vós arrojasteis imundícies ao caminho do cego, e agora
repugna-me a antiga senda.
E quando consumi o
mais árduo para mim, e celebrava o triunfo dos meus esforços, fizesteis calar
aos que me estimavam que eu lhes acarretava maior dano.
Assim procedesteis
sempre; amargasteis o meu melhor mel e a atividade das minhas melhores abelhas.
Sempre enviasteis à
minha caridade os mendigos mais insolentes; sempre apinhasteis em torno da
minha compaixão os mais incuráveis desvergonhados. Assim feristeis as minhas
virtudes na sua fé.
E quando fazia a
oferta do mais sagrado que possuía, a vossa “devoção” apressurava-se a ajuntar
dádivas mais pingues; de modo que as emanações da vossa gordura afogavam o mais
sagrado que eu tinha.
E uma vez quis
bailar como nunca bailara; quis bailar além de todos os céus. Então
alcançasteis o meu mais querido cantor.
E entoou o seu
canto mais lúgubre e sombrio. Ai! zumbiu-me aos ouvidos como a mais fúnebre
trompa! “Cantor mortífero, instrumento de maldade, tu, que eras o mais
inocente”! Eu estava disposto para o melhor baile, e tu com as tuas notas
mataste-me o êxtase.
“Só no baile eu sei
dizer os símbolos das coisas mais sublimes; e agora os meus membros não puderam
representar o meu mais alto símbolo.”
Inexpressiva ficou
a minha mais alta esperança!
E todas as visões e
todos os consolos da minha mocidade morreram.
Como pude suportar?
Como pude ser superior a semelhantes feridas? Como ressuscitou a minha alma
desses túmulos?
Sim! Há algo
invulnerável em mim, qualquer coisa que se não pôde enterrar e que faz saltar
os rochedos; chama-se a minha vontade.
Essa atravessa os
anos silenciosa e imutável.
A minha antiga
vontade quer andar no seu passo pelos meus pés; o seu sentido é duro e
invulnerável.
Eu só sou
vulnerável no calcanhar! “Assim vives tu sempre, pacientíssima, igual a ti
mesma”. Passastes sempre todos os túmulos!
Em ti ainda vive o
irredimido da minha mocidade, e viva e moça permaneces sentada, cheia de
esperança, sobre os amarelos escombros das sepulturas.
Sim; tu para mim
ainda és a destruidora de todas as sepulturas. Salve, minha vontade! E só onde
há sepulturas é que há ressurreições!”
Assim falava
Zaratustra.
DA VITÓRIA SOBRE SI
MESMO
Chamais “desejo de
verdade” ao que vos impele e incendiai, a vós, os mais sábios.
Desejo de imaginar
tudo quanto existe; assim chamo eu ao vosso desejo.
Quereis tornar imaginável
tudo quanto existe; porque duvidais com justa desconfiança que tudo seja
imaginável.
É mister, porém,
que tudo se amolde e curve perante vós! Assim o quer a vossa vontade. É mister
que fique punido e submisso ao espírito como seu espelho e sua imagem.
Eis aqui toda a
vossa vontade, sapientíssimos, como uma vontade de poder; e isto ainda que
faleis do bem e do mal e das apreciações de valores.
Quereis ainda criar
o mundo perante o qual possais ajoelhar-vos: é esta a vossa última esperança e
a vossa última embriaguez.
Os simples, todavia,
o povo, são semelhantes ao rio por onde avança um barquinho, e no barquinho
vão, solenes e mascaradas, as apreciações dos valores.
Pusesteis a vossa
vontade e os vossos valores no rio do porvir; o que o povo considera bom e mau
revela-me uma antiga vontade de domínio.
Vós, os mais
sábios, fosteis quem pôs esses hóspedes nesse barquinho; fosteis vós e a vossa
vontade dominante que os enfeitou com adornos e nomes suntuosos.
Agora o rio arrasta
mais para longe o vosso barquinho: tem que o arrastar. Pouco importa que
a quebrada onda espume e, irada, lhe contrarie a quilha.
Não é o rio o vosso
perigo e o fim do vosso bem e do vosso mal, sapientíssimos, mas essa mesma
vontade, a vontade do poder, a vontade vital, inexgotável e criadora.
Mas, para
compreenderdes a minha palavra sobre o bem e o mal, dir-vos-ei a minha palavra
sobre a vida e a condição de todo o vivo.
Eu tenho seguido o
que é vivo, persegui-o pelos caminhos grandes e pequenos, a fim de lhe conhecer
a natureza.
Quando a vida
emudecia, apanhava-lhe o olhar num espelho de cem facetas, a fim dos seus olhos
me falarem.
Mas por onde quer
que encontrasse o ser vivo, ouvi a palavra obediência. Todo o vivente é
obediente.
Eis aqui a segunda
coisa: manda-se ao que não sabe obedecer a si mesmo.
Tal é a condição
natural do vivo.
Eis o que ouvi em
terceiro lugar: Mandar é mais difícil do que obedecer; porque aquele que manda
suporta o peso de todos os que obedecem, e essa carga facilmente o derruba.
Mandar parece-me um
perigo e um risco. E quando manda, o vivo sempre se arrisca.
E quando se manda a
si próprio também tem que expiar a sua autoridade, tem que ser juiz, vingador e
vítima das suas próprias leis.
Como é então isto?
— perguntei a mim mesmo. — Que é que decide o vivo a obedecer, a mandar, e a
ser obediente, mesmo mandando?
Escutai a minha
palavra, sapientíssimos! Examinai seriamente se penetrei no coração da vida!
Onde quer que
encontrasse o que é vivo, encontrei a vontade de domínio, até na vontade do que
obedece encontrei a vontade de ser senhor.
Sirva o mais fraco
ao mais forte: eis o que lhe incita a vontade, que quer ser senhora do mais
fraco. É essa a única alegria de que se não quer privar.
E como o mais
pequeno se entrega ao maior, para gozar do mais pequeno e dominá-lo, assim o
maior se entrega também e arrisca a vida pelo poder.
É este o abandono
do maior; haja temeridade e perigo e jogue-se a vida num lanço de dados.
E onde há
sacrifício e serviço e olhar de amor há também vontade de ser senhor. Por
caminhos secretos desliza o mais fraco até à fortaleza, e até mesmo ao coração
do mais poderoso, para roubar o poder.
E a própria vida me
confiou este segredo: “Olha — disse — eu sou o que deve ser superior a si
mesmo.”
Certamente vós
chamais a isso vontade de criar ou impulso para o fim, para o mais sublime,
para o mais longínquo, para o mais múltiplo; mas tudo isso é apenas uma só
coisa e um só segredo.
Prefiro desaparecer
a renunciar a essa coisa única: e, na verdade, onde há morte e queda de folhas,
é onde se sacrifica a vida pelo poder.
É mister que eu
seja luta e sucesso e fim e contradição dos fins. Ai! Aquele que adivinha a
minha vontade adivinha também os caminhos tortuosos que precisa seguir.
Seja qual for a
coisa que eu crie e o amor que lhe tenha, em breve devo ser adversário e o
adversário do meu amor: assim o quer a minha vontade.
E tu também,
investigador, não és mais do que a senda e a pista da minha vontade: a minha
vontade de domínio segue também os vestígios da tua vontade de verdade.
Certamente não
encontrou verdade aquele que falava da “vontade de existir”; não há tal
vontade.
Porque o que não
existe não pode querer; mas como poderia o que existe ainda desejar a
existência!
Só onde há vida há
vontade; não vontade de vida, mas como eu predico, vontade de domínio.
Há muitas coisas
que o vivente aprecia mais do que a vida; mas nas próprias apreciações fala a
“vontade de domínio”.
Isto ensinou-me um
dia a vida, e por isso, sapientíssimos, eu resolvo o enigma do vosso coração.
Em verdade vos
digo. Bem e mal imorredouros não existem. É preciso que incessantemente se
excedam a si mesmos.
Com os vossos
valores e as vossas palavras do bem e do mal, vós, os apreciadores de valor,
exerceis poderio; e é este o vosso amor oculto e o esplendor, o tremor e o
transbordar da vossa alma.
Dos vossos valores,
porém, surge um poder mais forte e uma nova vitória sobre si, que parte os ovos
e as cascas do ovo.
E o que deve ser
criador no bem e no mal deve começar por ser destruidor e quebrar os valores.
Assim a maior
malignidade forma parte da maior benignidade; mas esta benignidade é a
criadora.
Digamo-lo,
sapientíssimos, embora nos custe muito; calarmo-nos é ainda mais duro: todas as
verdades caladas se tornam venenosas.
Aniquile-se tudo
quanto pode ser aniquilado pelas nossas verdades! Há ainda muitas casas a
edificar!”
Assim falava
Zaratustra.
DOS HOMENS SUBLIMES
Tranqüilo é o fundo
do meu mar. Quem adivinharia que oculta monstros divertidos!
A minha
profundidade é inabalável, mas radiante de enigmas e gargalhadas!
Hoje vi um homem
sublime, solene, um purificador do espírito. Como a minha alma se riu da sua
fealdade!
Inflando o peito,
como quem aspira, estava ali silencioso o homem sublime, engalanando com feias
verdades, sua polaina de caça, e rico com vestidos rotos também nele havia
muitos espinhos, mas não vi nenhuma rosa.
Ainda não conhece o
riso nem a beleza.
Com semblante
desabrido voltou esse caçador do conhecimento.
Lutou com animais
selvagens; mas a sua rígida fisionomia ainda reflete o animal selvagem: um animal
não subjugado.
Ei-lo sempre como
um tigre preparando o salto; mas a mim não me agradam essas almas mesquinhas;
não são do meu gosto todos esses retraídos.
E vós, amigos,
dizeis-me que questões de gostos não se discutem. Toda a vida, contudo, é luta pelos
gostos. O gosto é a um tempo o peso, a balança, e o pesador; e ai de toda a
coisa viva que quisesse viver sem luta pelos pesos, as balanças e os pesadores.
Se este homem
sublime se enfastiasse da sua sublimidade, só então principiaria a sua beleza,
e só então quereria eu gostar dele, só então lhe acharia gosto.
E só quando se
apartar de si saltará por cima da sua sombra e penetrará no seu sol.
Demasiado tempo
esteve sentado à sombra; o purificador do espírito viu empalidecer as faces, e
quase o matou de fome a espera.
Ainda, nos seus
olhos há desdém, e repugnância oculta nos seus lábios.
É verdade que
descansa agora, mas ainda não descansou ao sol.
Deveria fazer como
o touro, e a sua felicidade deveria rescender a terra, e não ao desprezo da
terra.
Quereria vê-lo como
um touro branco que sopra e muge diante do arado e o seu mugido deveria cantar
o louvor de tudo o que é terrestre.
O seu semblante
ainda é sombrio; nele se projeta, a sombra da mão. Ainda está na sombra o seu
olhar.
A sua própria ação
nele não é mais do que uma sombra; a mão escurece o que atua. Ainda não está
superior ao seu ato.
Agrada-me ver nele
o pescoço de um touro, mas agora também me agradaria ver-lhe o olhar de anjo.
É preciso
igualmente que esqueça a sua vontade de herói: deve ser para mim um homem
elevado, e não só sublime: até o éter deveria elevar esse homem sem vontade.
Venceu monstros,
adivinhou enigmas; mas precisava também salvar os seus monstros e os seus
enigmas; precisava transformá-los em filhos divinos.
O seu conhecimento
ainda não aprendeu a sorrir e a não ter inveja: a onda da sua paixão ainda se
não acalmou na beleza.
Não é de certo na
sociedade que se deve calar e submergir o seu desejo, mas na beleza. A graça
forma parte da generosidade dos que pensam com elevação.
Com o braço sobre a
cabeça: eis como deveria repousar o herói; assim até deveria estar superior ao
seu repouso.
Mas, precisamente
para o herói, a beleza é a mais difícil de todas as coisas. A beleza é
inexequível para toda a vontade violenta.
Um tanto mais, um
tanto menos, esse pouco aqui é muito.
Permanecer com os
músculos inativos e a vontade desembaraçada é o que há de mais difícil para
vós, homens sublimes.
Quando o poder se
torna clemente e desce ao visível, a essa clemência chamo eu beleza.
De ninguém exijo
tanto a beleza como de ti, que és poderoso; seja a tua bondade a tua última
vitória sobre ti mesmo.
Julgo-te capaz de
todas as maldades: mas exijo de ti o bem.
Na verdade tenho-me
rido amiúde dos fracos que se julgam bons por terem as patas tolhidas!
Deveis imitar a
virtude da coluna, que vai sendo mais bela e mais fina, porém mais dura e
resistente interiormente à medida que se alteia.
Sim, homem sublime:
um dia serás belo e apresentarás ao espelho a tua própria beleza.
Então estremecerá a
tua alma com desejos divinos, e na tua vaidade haverá adoração!
“Porque eis aqui o
segredo da tua alma: quando o herói a abandona, é então que se aproxima em
sonhos o super-herói”.
Assim falava
Zaratustra.
DO PAÍS DA
CIVILIZAÇÃO
“Voei demasiado
longe pelo futuro, e horrorizei-me”.
Quando olhei em
torno de mim reparei que o tempo era o meu único contemporâneo.
Tornei então para
trás, cada vez mais apressado: assim cheguei até vós, homens atuais; assim
cheguei ao país da civilização.
Pela primeira vez
vos olhei com olhos favoráveis e com bons desejos.
E que me sucedeu?
Apesar do medo que me invadiu... tive que me pôr a rir! Nunca meus olhos viram
o que quer que fosse tão bizarro.
Eu ria, ria, ao
passo que me tremiam os pés e também o coração. “Mas este — disse comigo — é o
país dos vasos coloridos!”
Com a face e os
membros pintados de mil maneiras, assim me assombrasteis, homens atuais.
E com mil espelhos
à vossa roda, que adulavam e repetiam o efeito das vossas cores.
Certo, não podíeis
usar melhores máscaras do que a vossa própria cara, homens atuais.
Quem vos poderia reconhecer?
Pintalgados com os
sinais do passado, cobertos por seu turno com outros sinais: assim vos
ocultasteis de todos os intérpretes!
E embora se
soubesse examinar as entranhas, quem acreditaria que tivésseis entranhas?
Pareceis feitos de cores e de papéis pegados.
Todos os tempos e
todos os povos olham revoltadamente através dos vossos véus; todos os costumes
e todas as crenças falam confundidos através de vossa atitude.
Aquele que vos
tirasse os véus, os retoques, as cores e as atitudes, não deixaria mais do que
um espantalho.
Na verdade, eu
mesmo sou um pássaro espantado que uma vez vos viu nu e sem cores! e quando tal
esqueleto me acenou amoroso, fugi espavorido.
Porque preferiria
descer aos profundos e confundir-me nas sombras do passado! As sombras dos que
existiram têm mais consistência do que vós.
A minha íntima
amargura, homens atuais, é que vos não posso suportar nem nus, nem vestidos!
Tudo o que inquieta
no futuro e tudo o que pode afugentar um pássaro espantado inspira
verdadeiramente mais quietude e calma do que a vossa “realidade”.
Porque vós dizeis:
“Somos inteiramente reais, não temos crenças nem superstições”; assim
encheis o papo, sem ter papo sequer.
Sim. Como seria
possível vós crerdes, tão pintados! Vós que sois pinturas de tudo quanto se tem
acreditado! Sois uma refutação da própria fé, e a rutura de todos os
pensamentos.
Seres incríveis!
Assim vos chamo eu a vós, “homens da realidade”.
Todas as épocas
declamaram umas contra as outras em vossos espíritos: e os sonhos e as
declamações de todas as épocas eram mais reais do que a vossa vigília.
Sois estéreis: por
isso vos falta a fé. Aquele, porém, que devia criar, tinha também sempre os
seus sonhos de verdade e os seus sinais estelares, e tinha fé na fé!
Sois portas
entreabertas onde aguardam os coveiros. Eis a vossa realidade: “Tudo
merece desaparecer”.
Ah! Como estais aí
diante de mim, homens estéreis? Que pobreza de costelas! E quantos dentre vós
que o não têm visto.
E dizem:
“Tirar-me-ia algum deus qualquer coisa enquanto eu dormia? Certamente, o
suficiente para formar uma mulher! É prodigiosa a pobreza das minhas costelas!”
Assim têm falado já muitos homens célebres.
Sim; fazeis-me rir,
homens atuais e, sobretudo quando vos assombrais de vós mesmos.
Pobre de mim se me
não pudesse rir do vosso assombro e se tivesse de tragar tudo quanto há de
repugnante em vossas escudelas!
Eu, porém, tomo-vos
ao de leve, pois tenho coisas pesadas para levar; e que me importa
pousem na minha carga insetos e moscas?
A verdade é que a
minha carga não será mais pesada por isso. Não sois vós, contemporâneos, que me
haveis de ocasionar maior fadiga.
Aonde devo subir
ainda com o meu desejo? Olho do alto de todos os píncaros à procura de pátrias
e de terras natais.
Em nenhuma parte,
porém, as encontro: ando errante por todas as cidades e saio de todas as
portas.
Os homens atuais,
para quem há pouco se inclinava o meu coração, agora são-me estranhos e
provocam-me o riso: e vejo-me expulso das pátrias e das terras natais.
Já não amo, pois,
senão o país dos meus filhos, a terra incógnita entre mares longínquos:
é essa que a minha vela deve, incessante, procurar.
“Em meus filhos
quero remediar o ser filho de meus pais; e, no futuro todo, quero remediar este
presente”.
Assim falava
Zaratustra.
DO IMACULADO
CONHECIMENTO
“Ontem a lua, ao
nascer, pareceu-me que ia dar à luz um sol: tão avultada e prenhe jazia no
horizonte”.
Mentia, porém, com
a sua prenhez, e mais julgaria a lua homem do que mulher.
Claro que também é
muito pouco homem este tímido notâmbulo. Anda pelos telhados com a consciência
turva.
Que a solitária lua
está cheia de cobiça e de inveja: cobiça a terra e todas as alegrias dos que
amam.
Nada; não me agrada
esse gato dos telhados; previnem-me todos os que espreitam as janelas voltadas.
De manso e
silencioso anda por alfombras de estrelas; mas eu detesto todos os pés
cautelosos em que nem mesmo as esporas tilintam.
Os passos do homem
leal falam; mas o gato anda em segredo. Vede: a lua caminha deslealmente como o
gato.
A vós, hipócritas
afetados, que procurais o “conhecimento puro”, ofereço esta parábola. A vós eu
chamo lascivos.
Vós também amais a
terra e tudo quanto é terrestre: compreendi-vos bem! O vosso amor, porém,
envergonha-se com uma consciência tortuosa: pareceis-vos com a lua.
O vosso espírito
convenceu-se de que deve menosprezar tudo quanto é terreno; mas não se
convenceram as vossas entranhas. Elas são, todavia, o mais forte que há
em vós.
E agora o vosso
espírito envergonha-se de obedecer às vossas entranhas, e segue caminhos
escusos e ilusórios para se livrar da sua própria vergonha.
“Para mim seria a
coisa mais elevada (assim diz a si mesmo o vosso falso espírito) olhar a vida
sem cobiça, e não como cães, com a língua de fora”.
Ser feliz na
contemplação, com a vontade morta, isento de capacidade e de apetite egoísta,
frio de corpo, mas com os olhos embriagados de lua.
Para mim seria o
melhor (assim se engana a si mesmo o enganado) amar a terra como a luz a ama, e
tocar na sua beleza apenas com os olhos.
“Eis o que eu chamo
o imaculado conhecimento de todas as coisas: não querer das coisas mais do que
poder estar diante delas”.
Hipócritas afetados
e lascivos! Falta-vos a inocência no desejo, e por isso caluniais o desejo!
Vós não amais a
terra como criadores, como geradores satisfeitos de criar.
Onde há inocência?
Onde há vontade de engendrar. E o que criar qualquer coisa superior a si mesmo,
esse, para mim, tem a vontade mais pura.
Onde há beleza?
Onde é mister que eu queira com toda a minha vontade, onde eu quero amar
e desaparecer, para que uma imagem não fique reduzida a uma simples imagem.
Amar e desaparecer:
são coisas que andam a par há eternidades. Querer amar é também estar pronto a
morrer. Assim vos falo eu, covardes!
Mas o vosso olhar
ambíguo e afeminado quer ser contemplativo! E para vós, que maculais os nomes
nobres, o que se pode tocar com olhos pusilânimes deve-se chamar “belo!”
A vossa maldição,
porém, — ó! imaculados que procurais o simples conhecimento! — há de ser nunca
chegardes a dar à luz, por muito avultados e prenhes que apareçais no
horizonte.
Na verdade, encheis
a boca de palavras nobres, e havíamos de crer que o vosso coração transborda,
embusteiros?
As minhas palavras,
porém, são grosseiras, desprezadas e informes: a mim agrada-me recolher o que
nos vossos festins cai da mesa.
Com as minhas
palavras chego sempre a dizer a verdade aos hipócritas! Sim, as minhas arestas,
as minhas conchas e as minhas folhas espinhosas devem fazer-vos cócegas nos
narizes, hipócritas!
Sempre há ar
viciado em redor de vós e dos vossos festins: porque no ar flutuam os vossos
lascivos pensamentos, as vossas mentiras e as vossas dissimulações.
Atreveis-vos, pois,
em primeiro lugar a ter fé em vós mesmos — em vós e nas vossas entranhas! — o
que não tem fé em si mesmo mente sempre.
Pusesteis diante de
vós a máscara de um deus, homens “puros”: a vossa ignominiosa e rasteira larva
ocultou-se detrás da máscara de um deus.
A verdade é que vos
enganais, “contemplativos!” Zaratustra também foi joguete das vossas divinas
peles; não suspeitou que eram serpentes que enchiam essa pele.
Nos vossos
divertimentos julgava eu ver divertir-se a alma de um deus, simples
investigadores! Eu não conhecia arte melhor que os vossos artifícios!
A vossa distância
ocultava-me imundícies de serpente e maus cheiros, e eu não sabia que por aqui
rondava, lasciva, a astúcia de um lagarto.
Abeirei-me, porém, de vós:
então chegou a mim a luz — e agora chega a vós; — os amores da lua estão no seu
declive.
Olhai-a. Aí a
tendes surpreendida e pálida ante a aurora!
Porque já surge
ardente a aurora: o seu amor pela terra aproxima-se! Todo o amor solar é
inocência e desejo do criador.
Vede como a aurora
passa impaciente pelo mar! Não sentis a sede e o cálido alento do seu amor?
Quer aspirar o mar
e beber as suas profundidades, e o desejo do mar eleva-se com mil ondas.
Porque o mar quer
ser beijado e aspirado pelo sol; quer tornar-se ar e altura e senda
de luz também.
Eu, à semelhança do
sol, como a vida e todos os mares profundos.
“E tal é para mim o
conhecimento: todo o profundo deve subir à minha altura”.
Assim falava
Zaratustra.
DOS
DOUTOS
“Estando eu
adormecido, pôs-se uma ovelha a despinicar a coroa de hera da minha cabeça,
dizendo enquanto comia: “Zaratustra já não é um sábio”. Dito isto retirou-se
altiva e desdenhosa.
Assim me contou um
rapazinho.
Gosto de me deitar
onde as crianças estão brincando, junto do muro gretado, sob os cardos e as
vermelhas papoulas.
Ainda sou um sábio
para as crianças, e também para os cardos e para as papoulas vermelhas. Todos
eles são inocentes até na sua maldade.
Já não sou um sábio
para as ovelhas: assim o quer a minha sorte. Bendita seja!
Porque é esta a
verdade: saí da casa dos sábios atirando com a porta.
Demasiado tempo
esteve a minha alma faminta sentada à sua mesa; eu não estou assim como eles,
adestrado para o conhecimento como para descascar nozes.
Amo a liberdade e o
ar na terra fresca; e até me agrada mais dormir em peles de bois do que nas
suas honrarias e dignidades.
Sou ardente demais
e estou demasiado consumido pelos meus próprios pensamentos; falta-me amiúde a
respiração; então necessito procurar o ar livre e sair de todos os compartimentos
empoeirados.
Eles, porém, estão
sentados muito frescos à fresca sombra: em parte alguma querem passar de
espectadores, e livram-se bem de se sentar onde o sol caldeia os degraus.
À semelhança dos
que se postam no meio da rua a olhar de boca aberta quem passa, assim eles
aguardam de boca aberta os pensamentos dos outros.
Se se lhes toca com
as mãos, involuntariamente levantam pó em torno de si, como sacos de farinha;
mas quem suspeitaria que o seu pó procede do grão e das douradas delícias dos
campos de estio?
Se dão mostras de
sábios, horrorizam-me com as suas sentenças e as suas verdades: a sua sabedoria
cheira amiúde como se saísse de um pântano, e indubitavelmente já nele ouvi
cantar as rãs.
São destros e têm
dedos hábeis: que tem que ver a minha simplicidade com a sua complexidade? Os
seus dedos estendem à maravilha tudo quanto seja fiar, ajuntar e tecer; tanto
assim que fazem as meias do espírito.
São bons relógios —
sempre que haja o cuidado de lhes dar corda. — Indicam então a hora sem falar e
com um ruído modesto.
Trabalham como
moinhos e morteiros: basta lançar-lhes grão! Eles já sabem moer bem o grão e
convertê-lo em branca farinha.
Olham os dedos uns
dos outros com desconfiança. Inventivos em pequenas maldades, espreitam aqueles
cuja ciência coxeia; espreitam-nos como aranhas.
Sempre os vi
preparar veneno com precaução, tapando as mãos com luvas de cristal.
Também jogam com
dados falsos, e vi-os jogar com tal entusiasmo que estavam banhados de suor.
Somos estranhos uns
aos outros, e as suas virtudes ainda me contrariam mais do que as suas
falsidades e trapaças.
E quando eu andava
entre eles, mantinha-me sempre por cima deles; e é por isso que me olham de
soslaio.
Não querem ouvir
andar ninguém por cima das suas cabeças; por isso entre mim e as suas cabeças
puseram ramagem, terra e lixo.
Assim abafaram o
ruído dos meus passos; e até agora os mais doutos são os que menos me têm
ouvido.
Entre mim e eles
interpuseram todas as fraquezas e todas as faltas dos homens: “andar falso” eis
como chamam a isto nas suas casas.
Eu, porém, apesar
de tudo, ando sempre por cima da cabeça deles com os meus pensamentos; e
se quisesse andar com os meus próprios defeitos, ainda assim andaria sobre eles
e sobre as suas cabeças.
Que os homens não
são iguais: assim fala a justiça. E o que eu quero não poderiam eles
querer!”
Assim falava
Zaratustra.
DOS
POETAS
“Desde que conheço
melhor o corpo — dizia Zaratustra a um dos seus discípulos — para mim o
espírito já não é espírito senão até certo ponto; e todo o “imorredouro” não é
também mais do que símbolo”.
“Já te ouvi falar
assim — respondeu o discípulo — e nesse tempo acrescentavas: “Os poetas, porém,
mentem demais”. Por que dizias que os poetas mentem demais?”
“Por que? — disse
Zaratustra. — Perguntas por que?
Eu não pertenço ao
número daqueles a quem é lícito interrogar sobre o seu porque.
Será de ontem por
acaso o que eu tenho experimentado? Há muito tempo que experimento os
fundamentos das minhas opiniões.
Precisaria ser um
tonel de memória para poder arrecadar as minhas razões.
Bastante me custa
já arrecadar as minhas opiniões e mais de um pássaro me foge.
E também acontece
introduzir-se-me no pombal qualquer bicho estranho para mim, o qual treme
quando o agarro.
No entanto, que te
dizia um dia Zaratustra? Que os poetas mentem demais?
Zaratustra,
contudo, também é poeta.
Julgas então que eu
falava verdade?
Por que julgas
isso?”
O discípulo
respondeu: “Eu creio em Zaratustra”, Zaratustra, porém, meneou a cabeça
sorrindo.
“Não me salve a fé
— respondeu — e a fé em mim mesmo, ainda menos do que nenhuma”.
Supondo, todavia,
que alguém dissesse seriamente que os poetas mentem demais, esse alguém teria
razão: nós mentimos demasiado.
Sabemos também
pouco demais e aprendemos mal demais; por conseguinte, forçoso é mentirmos.
Logo, quem entre
nós, poetas, não terá adulterado o seu vinho? Muitas misturas envenenadas se
têm feito em nossas tabernas: tem-se realizado nelas o indiscritível.
E é por sabermos
pouco que nos seduzem os pobres de espírito, especialmente quando são mulheres
novas.
E até desejamos as
coisas que as velhas contam entre si à noite. É o que em nós mesmos chamamos o
eterno feminino.
E como se existisse
um caminho secreto que conduzisse ao saber e se subtraísse aos que
aprendem qualquer coisa, assim cremos no povo e na sua sabedoria.
Todos os poetas,
porém, julgam que aquele que está deitado na erva ou numa encosta solitária,
com o ouvido à escuta, aprende algo do que se passa entre o céu e a terra.
E se experimentam
ternas comoções os poetas supõem sempre que a própria Natureza está apaixonada
por eles.
E que se lhe acerca
ao ouvido a murmurar coisas secretas e palavras carinhosas. Disso se gabam e se
gloriam, perante todos os mortais.
Ai! Existem tantas
coisas entre o céu e a terra que só os poetas sonharam!
E mormente no céu:
porque todos os deuses são símbolos e artifícios de poeta.
A verdade é que
sempre nos sentimos atraídos para o alto, isto é, para o reino das nuvens: lá
colocamos os nossos manequins de mil cores, e chamamos-lhes deuses e
Super-homens.
Que todos esses
deuses e Super-homens são bastante leves para poder ocupar esses lugares.
Ah! Como estou
farto de todo o deficiente que se empenha em ser um acontecimento!
Ah! como estou
farto dos poetas!”
Quando Zaratustra disse
isto, o discípulo ficou irritado contra ele, mas calou-se. Zaratustra emudeceu
igualmente e os olhos volveram-se-lhes para o íntimo como se olhassem ao longe.
Por fim começou a suspirar e a tomar alento!
“Eu sou hoje e de
antes — disse — mas em mim há qualquer coisa que é amanhã, de depois de amanhã
e do futuro”.
Estou enfastiado
dos poetas, dos antigos e dos novos: para mim todos são superficiais, todos são
mares esgotados.
Não pensaram
profundamente; por isso mesmo não sentiram fundo.
Um tanto de voluptuosidade
e um tanto de tédio; eis ao que se reduziram as suas meditações.
Os seus arpejos
apenas me parecem hálito e fuga de fantasmas. Até hoje que sabem eles da
alacridade dos sons?
Também os acho
pouco asseados: todos turvam as suas águas para parecer profundas.
Gostam de se fazer
passar por conciliadores; mas, para mim, são sempre pessoas de meios termos, de
composições e miscelâneas, e sórdidos.
Ai! Lancei as
minhas redes aos mares deles para apanhar peixes, mas tão só pesquei a cabeça
de um deus antigo.
Assim deu o mar uma
pedra ao faminto. E os próprios poetas parecem vir do mar.
Certo, neles
encontram-se pérolas: devem parecer-se ainda mais a duros testáceos. E ao invés
de alma tenho visto freqüentemente no seu interior espuma salgada.
Também do mar
aprenderam a sua vaidade: não é o mar o primeiro dos pavões reais?
Até diante do mais
feio búfalo abre a sua cauda: nunca se há de cansar do seu leque de rendas,
prata e seda.
O búfalo olha essas
coisas com enfado, pois tem o pensamento em areias, matas e pântanos.
Que lhe importam a
ele a beleza e o Oceano, e as galas do pavão? Eis o símbolo que ofereço aos
poetas.
O seu espírito
próprio é o rei dos pavões e um oceano de vaidade.
O espírito do poeta
quer espectadores; assim fossem búfalos!
Eu, porém, enfastiei-me
desse espírito e vejo chegar um tempo em que ele próprio se enfastiará de si
mesmo.
Já vi poetas
transformarem-se e procederem contra si próprios.
“Tenho visto
redentores do espírito: saíram dos poetas”.
Assim falava
Zaratustra.
DOS GRANDES ACONTECIMENTOS
Há uma ilha no mar
— perto das Ilhas Bem-aventuradas de Zaratustra — onde fumega constantemente
uma montanha de fogo. O povo, e mormente as velhas, dizem que essa ilha está
colocada como um penhasco diante da porta do inferno; mas o mesmo atalho que
leva a essa porta atravessa a ígnea montanha.
Sucedeu, pois, que
na época em que Zaratustra vivia nas Ilhas Bem-aventuradas, ancorou um baixel
na ilha onde se acha a montanha fumegante, e a sua tripulação saltou para terra
para atirar aos coelhos. Ao meio dia, porém, quando novamente estavam reunidos
o capitão e a sua gente, viram de súbito um homem atravessar o ar perto deles,
e uma voz pronunciou nitidamente estas palavras: “Já é tempo! não há um
instante a perder!”
Quando a visão se
aproximou mais — passava rápida, como uma sombra, em direção da montanha de
fogo — reconheceram sobressaltados que era Zaratustra: porque já todos o
conheciam, exceto o capitão, e lhe queriam como quer o povo, misturando em
partes iguais o amor e o receio.
“Olhem — disse o
piloto — é Zaratustra que vai para o inferno”!
Pela mesma época em
que estes marinheiros arribaram à ilha do fogo, correu o rumor de que
desaparecera Zaratrustra, e, interrogados os amigos, responderam que durante a
noite embarcara sem dizer para onde.
Houve, por
conseguinte, certa inquietação; mas ao fim de três dias essa inquietação
aumentou com a narrativa dos marinheiros, e todo o povo julgava que o demônio
levara Zaratustra. A verdade é que os discípulos dele se riam desses rumores, e
até um deles chegou a dizer:
“Prefiro acreditar
que foi Zaratustra quem levou o demônio”. No íntimo, porém, todos estavam
cheios de angústia e de sobressalto!
Grande foi,
portanto, o seu alvoroço quando ao fim de cinco dias, Zaratustra lhes apareceu.
Eis a descrição da
conversa que Zaratustra teve com o cão do fogo:
“A terra — disse —
tem pele, e essa pele sofre enfermidades; uma delas, por exemplo, chama-se
“homem”“.
E a outra chama-se
“cão do fogo”. Acerca dele têm os homens dito e deixado dizer muitas mentiras.
Para aprofundar
esse segredo cruzei o mar e vi a verdade, nua, nua dos pés à cabeça.
Sei agora a que me
hei de ater sobre o cão do fogo, assim como sobre todos os estragos que
atemorizam, e não só as velhas.
Sai da tua
profundidade, cão do fogo — exclamei — e confessa quão profundo é essa
profundidade! Donde tiras o que vomitas?
Bebes copiosamente
do mar: é isso o que revela o sal da tua facúndia. Verdadeiramente, para um cão
das profundidades, tomas demasiado alimento da superfície.
Olho-te em suma,
como o ventríloquo da terra, e sempre que ouvi falar a demônios de erupções e
estragos, sempre me pareceram semelhantes a ti, com o teu sal, as tuas mentiras
e as tuas trivialidades.
Sabes mugir e
obscurecer com cinzas! Tens as maiores bocarras, e aprendestes bastante a arte
de fazer ferver lodo.
Por onde quer que
andes sempre há de haver perto de ti lodo e coisas esponjosas, cavernosas e
comprimidas: tudo isso quer liberdade.
“Liberdade!” é o
teu grito predileto, mas eu perdi a fé nos “grande acontecimentos” desde que em
torno deles haja muitos uivos e muita fumarada.
Creia em mim, ruído
do inferno! Os acontecimentos maiores não são os mais ruidosos, mas as nossas
horas mais silenciosas.
O mundo gira, não
em redor dos inventores de estrondos novos, mas à roda dos inventores de
valores novos: gira sem ruído.
E confessa-o!
Quando o teu ruído e o teu fumo se dissipavam, sempre sucedia ter-se passado
coisa pouco importante. Que importa que uma cidade se torne múmia, e que caia
no lodo uma coluna!
E acrescentarei
mais estas palavras para os destruidores de colunas: “É rematada loucura deitar
sal no mar e colunas no lodo”.
A coluna jazia no
lodo do desprezo; mas a sua lei quer que surja do desprezo com nova vida e
beleza. “Ergue-se agora com mais divina aparência e sedutor sofrimento, e ainda
dará graças, destruidores, por a terdes derrubado.”
É este, porém, o
conselho que dou aos reis e às igrejas, e a quanto fraqueja pela idade e pela
virtude: “deixai-vos derrubar para volverdes à vida e de vós se assenhoreie a
virtude!”
Assim falei diante
do cão do fogo; mas ele interrompeu-me rosnando e perguntou-me: “Igreja? Isso
que é?”
Igreja — respondi —
é uma espécie de Estado, e a espécie mais enganosa. Galante, porém, cão
hipócrita: tu conheces a tua raça melhor que ninguém!
O Estado é um cão
hipócrita como tu; como a ti, agrada-lhe falar fumegando e uivando, para fazer
crer, como tu, que fala saindo das entranhas das coisas.
Que o Estado
empenha-se em ser o animal mais importante da terra. E julga sê-lo.
Quando disse isto,
o cão do fogo pareceu louco de ciúme “Que! — exclamou. — O animal mais
importante da terra?
E julga sê-lo?” E
do seu gasnete saíram vozes tão terríveis que eu supus o asfixiaria a cólera e
a inveja.
Por fim foi-se
calando, diminuindo os seus uivos; mas quando ele se calou, disse-lhe eu rindo:
“Encolerizas-te,
cão do fogo”! Por conseguinte, tenho razão.
E para eu conservar
a razão, deixa-me falar-te doutro cão do fogo; este fala realmente do coração
da terra.
O seu hálito é de
ouro e uma chuva de ouro: assim o quer o seu coração. As cinzas, o fumo e a
espuma quente, para ele que são?
Do seu seio voa um
riso como uma nuvem colorida: é inimigo dos teus murmúrios, das tuas erupções,
e da raiva das tuas entranhas.
O seu ouro e o seu
riso, porém, tira-os do coração da terras porque, não sei se sabes que o coração
da terra é de ouro!”
Ao ouvir isto o cão
do fogo não pôde escutar-me mais. Envergonhado meteu o rabo entre as pernas, e
arrastando-se para a sua casota, ia dizendo, confuso: “Guão! guão!”
Assim contava
Zaratustra; mas os discípulos quase o não ouviam, tanta era a sua vontade de
lhes falar dos marinheiros, dos coelhos e do homem voador.
“Que hei de eu
pensar disso”? — disse Zaratustra. — Acaso serei um fantasma?
Isso deve ter sido
a minha sombra.
Já ouvistes falar
do viajante e da sua sombra?
O certo é que devo
prendê-la mais, ou tornará a prejudicar-me a reputação.
E Zaratustra tornou
a menear a cabeça com admiração: “Que devo pensar disso? — repetiu.
Por que gritaria o
fantasma? “Já é tempo! Não há um instante a perder!”
Mas, para que é
que já é tempo?”
Assim falava
Zaratustra.
O
ADIVINHO
“... e vi os homens
sumirem-se numa grande tristeza. Os melhores cansaram-se das suas obras.
Proclamou-se uma
doutrina e com ela circulou uma crença: Tudo é oco, tudo é igual, tudo passou!”
“É verdade que
temos colhido; mas porque apodreceram e enegreceram os nossos frutos”? Que foi
que na última noite caiu da má lua?
O nosso trabalho
foi inútil; o nosso vinho tornou-se veneno; o mau olhado amareleceu-nos os
campos e os corações.
Secamos de todo, e
se caísse fogo em cima de nós, as nossas cinzas voariam em pó. Sim; cansámos o
próprio fogo.
Todas as fontes
secaram para nós, e o mar retirou-se. Todos os solos se querem abrir, mas os
abismos não nos querem tragar!
“Ó! Aonde haverá
ainda um mar em que uma pessoa se possa afogar?” Assim a nossa queixa ressoa
através dos pântanos.
Na verdade, já nos
fatigamos demais para morrer; agora continuamos a viver acordados em abóbadas
funerárias!”
Assim ouviu
Zaratustra falar um adivinho; e a sua predição chegou-lhe diretamente à alma e
transformou-o. Vagueou triste e fatigado,
e tornou-se
semelhante àqueles de que falara o adivinho.
“Na verdade — disse
ele aos discípulos — pouco falta para chegar esse grande crepúsculo. Ai! Como
hei de haver para o atravessar salvando a minha luz?
Como farei para a
minha luz se não afogar nessa tristeza? Deve ser ainda a luz de mundos
longínquos a iluminar as noites mais longínquas!”
Fundamente
preocupado, Zaratustra começou a vaguear de uma para outra parte, e durante
três dias não comeu nem bebeu, nem descansou e perdeu a palavra. Por fim caiu
num profundo sono.
Entretanto, os
discípulos passavam grande vigílias, sentados à roda dele, e aguardavam
desassossegados que ele despertasse e se curasse da sua tristeza.
Eis, porém, o
discurso que lhes dirigiu Zaratustra ao despertar, ainda que sua voz parecesse
vir de longe.
— “Ouvi o sonho que
tive, amigos, e ajudai-me a adivinhar a sua significação!
Para mim este sonho
é um enigma; o seu sentido permanece ainda oculto nele e vela; ainda não paira
livremente sobre ele.
Sonhei que
renunciara à vida. Convertera-me em vigilante noturno e guardião dos túmulos,
na montanha solitária do palácio da Morte.
Lá guardava eu os
seus ataúdes: as abóbadas sombrias estavam cheias desses troféus das suas
vitórias.
Através dos
féretros de cristal olhavam-me as vidas vencidas.
Eu respirava a
atmosfera de eternidades reduzidas a pó: a minha alma jazia sufocada e
pulverulenta. E quem poderia arejar ali a alma?
Rodeava-me a
claridade da noite, e ao seu lado acaçapava-se a solidão; sobre isto um
sepulcral silêncio de agonia, o pior dos meus amigos.
Eu levava as minhas
chaves, o mais ferrugentas que podiam ser; e sabia abrir com elas as portas
mais perras.
Com gritos roucos
de cólera corriam os sons por largas galerias, quando se abriam os batentes da
porta: uma ave soltava gritos sinistros: não queria ser acordada.
O mais espantoso,
porém, e quando mais se me oprimia o coração era quando tudo outra vez se
calava, e eu tornava a ver-me só no meio daquele silêncio traiçoeiro.
Assim passou o
tempo lentamente, se é que ainda se podia falar de tempo; mas afinal sucedeu o
que me despertou.
Soaram três
pancadas à porta, as abóbadas tremeram e ressoaram três vezes seguidas:
aproximei-me da porta.
— Alpa — exclamei.
— Quem leva a sua cinza para a montanha? Alpa! Alpa! Quem leva a sua cinza para
a montanha?
E apertava a chave,
e empurrava a porta, e forcejava; mas a porta não cedia.
Nisto o furacão
separou-lhe, violento, os batentes; e por entre silvos e gritos agudos, que
cortavam o ar, atirou-me com um negro ataúde.
E, silvando e
rugindo, o ataúde despedaçou-se e despediu mil gargalhadas.
Mil visagens de
crianças, de anjos, de corujas, de loucos e de borboletas do tamanho de
crianças se riam e zombavam de mim.
Eu tinha um medo
horrível: cai no chão e gritei de pavor como nunca gritara.
“O meu grito
despertou-me, porém, e tornei a mim”.
Assim contou
Zaratustra o seu sonho, depois calou-se, porque ainda lhe não conhecia a
significação; mas o seu discípulo mais dileto levantou-se imediatamente,
pegou-lhe na mão e disse:
“A tua própria vida
nos explica esse sonho, Zaratustra”!
Não serás tu o
vento de silvos agudos que arranca as portas do palácio da Morte?
Não serás tu o
ataúde cheio de malignidades e de angélicas visagens da vida?
Na verdade, com mil
gargalhadas infantis chega Zaratustra a todas as câmaras mortuárias, rindo-se
de todos esses vigias noturnos e de todos esses guardiães dos sepulcros que
agitam as suas chaves com sinistro som.
Tu os espantarás e
derribarás com o teu riso; o desmaio e o despertar provaram o teu poder sobre
eles.
E mesmo quando
chegar o longo crepúsculo e a mortal lassidão, tu não desaparecerás do nosso
céu, patrocinador da vida!
Mostraste-nos novas
estrelas e novos esplendores noturnos; estendeste sobre nós o próprio riso com
um toldo ricamente matizado.
Agora, dos túmulos
brotarão sempre risos infantis; agora virá, sempre vitorioso de todos os
desfalecimentos mortais, um vento enérgico, do qual tu és o fiador e o
adivinho.
Em verdade sonhaste
com eles — com os teus inimigos; — foi esse o teu sonho mais doloroso.
Mas assim como
despertaste deles e tornaste a ti, assim eles devem despertar-se a si
próprios... e tornar para ti”.
Deste modo falou o
discípulo; e todos os outros se apinhavam à roda de Zaratustra, pegavam-lhe as
mãos e queriam induzi-lo a largar o leito e a tristeza para tornar para eles.
Zaratustra, porém, continuava no leito, com um olhar estranho.
Como se regressasse
de longa ausência contemplou os discípulos e observou-lhes os semblantes; e
ainda assim os não reconheceu; mas quando o ergueram e puseram de pé, os olhos
transformaram-se-lhe de repente; compreendeu tudo quanto sucedera, e cofiando a
barba, disse com voz firme: “Ora! tudo isso virá a seu tempo; mas, agora,
discípulos meus, ide arranjar bom alimento, e já. Quero penitenciar-me assim
dos meus maus sonhos! O adivinho, porém, deve comer e beber a meu lado; e eu
lhe indicarei um mar onde se possa afogar”.
Assim falou
Zaratustra; mas depois olhou largo tempo o discípulo que lhe explicara o sonho,
e meneou a cabeça.
DA
REDENÇÃO
Um dia, passando
Zaratustra pela ponte grande, viu-se rodeado de aleijados e de mendigos, e um
corcunda disse-lhe assim:
“Olha Zaratustra”!
Também o povo aprende de ti, e começa a crer na tua doutrina; mas para te
acreditarem de todo ainda falta uma coisa: tens que nos convencer também a nós,
aleijados. Tens por onde escolher! Podes curar cegos, fazer andar coxos e
aliviar um tanto o que leva às costas uma carga pesada. “Será este, a meu ver,
o melhor modo de fazer que os aleijados creiam em Zaratustra”.
Zaratustra
respondeu assim ao que falara: “Se ao corcunda se lhe tira a corcova tira-se-lhe
ao mesmo tempo o espirito — assim diz o povo”. — Se ao cego se restitui a
vista, vê na terra demasiadas coisas más; de forma que maldiz daquele que o
curou. — O que faz correr o coxo faz-lhe o maior dos males: porque apenas se
apanha a correr desenvolvem-se-lhe os vícios. Eis o que diz o povo quanto aos
aleijados.
E por que razão não
aprenderia Zaratustra do povo o que o povo aprendeu de Zaratustra?
Desde que vivo
entre os homens, porém, o que menos me importa é ver que a este falta um olho,
àquele um ouvido, a um terceiro a perna, ou que haja outros que perderam a
língua, o nariz ou a cabeça.
Vejo e já vi coisas
piores: e as há tão espantosas, que não quereria falar de todas elas nem também
calar-me sobre alguma, a saber: há homens que carecem de tudo, conquanto tenham
qualquer coisa em excesso — homens que são unicamente um grande olho, ou uma
grande boca, ou um grande ventre, ou qualquer outra coisa grande. — A esses
chamo eu aleijados às avessas.
Quando, ao sair da
minha soledade, atravessava pela primeira vez esta ponte, não dei crédito aos
meus olhos, não cessei de olhar e acabei por dizer: “Isto é uma orelha! Uma
orelha do tamanho de um homem!” Acercava-me mais, e por trás da orelha movia-se
algo tão pequeno, mesquinho e débil que fazia compaixão. E efetivamente: a
monstruosa orelha descansava num tênue cabelo — esse cabelo era um homem! —
Olhando através de uma lente ainda se podia reconhecer uma cara invejosa, e
também uma alma vã que se agitava no remate do cabelo. O povo, contudo,
dizia-me que a orelha grande era não só um homem mas um grande homem, um gênio.
“Eu, porém, nunca acreditei no povo quando ele me falava de grandes homens, e
sustento a minha idéia de que era um aleijado às avessas que tinha pouquíssimo
de tudo e uma coisa em demasia”.
Assim que
Zaratustra disse isto ao corcovado e àqueles de quem era intérprete e
representante, voltou-se para os discípulos com profundo descontentamento e
disse:
“Meus amigos, ando
entre os homens como entre fragmentos e membros de homens.
Para os meus olhos
o mais horrível é vê-los destroçados e divididos como em campo de batalha e de
morticínio.
E se os meus olhos
fogem do presente para o passado, sempre encontram o mesmo: fragmentos,
membros, e casos espantosos... mas homens, não!
O presente e o passado
sobre a terra... ai, meus amigos! eis para mim o mais insuportável; e eu
não viveria se não fosse um visionário do que deve vir.
Um vidente, um
voluntário, um criador, um futuro e uma ponte para o futuro — e também, ai! até
certo ponto, um aleijado no meio dessa ponte: — tudo isto é Zaratustra.
E vós também vos
interrogastes amiúde: “Para nós quem é Zaratustra? Como lhe poderemos chamar?”
E à minha imitação destes as vossas perguntas como respostas.
É o que promete ou
o que cumpre? Um conquistador ou um herdeiro? O outono ou a relha do arado? Um
médico, ou um convalescente?
É poeta ou diz a
verdade? É libertador ou dominador? Bom ou mau?
Eu ando entre os
homens como entre os fragmentos do futuro: desse futuro que os meus olhares
aprofundam.
E todos os meus
pensamentos e esforços tendem a condenar e a unir numa só coisa o que é
fragmento e enigma e espantoso azar.
E como havia eu de
surportar ser homem, se o homem não fosse também poeta adivinho de enigmas e
redentor do azar?!
Redimir os passados
e transformar tudo, “foi” num “assim o quis”: só isto é redenção para mim.
Vontade! — assim se
chama o libertador e o mensageiro da alegria: — eis o que vos ensino, meus
amigos; mas aprendei também isto: a própria vontade é ainda escrava.
O querer liberta;
mas, como se chama o que aprisiona o libertador?
“Assim foi”: eis
como se chama o ranger de dentes e a mais solitária aflição da vontade.
Impotente contra o fato, a vontade é para todo o passado um malévolo
espectador.
A vontade não pode
querer para trás: não pode aniquilar o tempo e o desejo do tempo é a sua mais
solitária aflição. O querer liberta: que há de imaginar o próprio querer para
se livrar da sua aflição e zombar do seu cárcere?
Ai! Todo o preso
enlouquece! Também loucamente se liberta a vontade cativa.
A sua raiva
concentrada é o tempo não retrocer; “o que foi”: assim se chama a pedra que a
vontade não pode remover.
E por isso, por
despeito e raiva, remove pedras e vinga-se do que não sente como ela raiva e
despeito.
Assim a vontade, a
libertadora, tornou-se maléfica; e vinga-se em tudo que é capaz de sofrer, de
não poder voltar para trás.
Isto, e só isto, é
a vingança em si mesma, a repulsão da vontade contra o tempo e o seu
“foi”.
Realmente vive uma
grande loucura na nossa vontade; e a maldição de todo o humano é essa loucura
haver aprendido a ter espírito.
O espírito de
vingança: meus amigos, tal foi até hoje a melhor reflexão dos homens; e onde-quer-que
houvesse dor, deve sempre ter havido castigo.
“Castigo”: assim se
chama a si mesma a vingança: com uma palavra enganadora finge uma consciência
limpa.
E como naquele que
quer há sofrimento, posto que não é permitido querer para trás, a própria
vontade e toda a vida deviam ser castigo.
E assim se acumulou
no espírito uma nuvem após outra, até que a loucura proclamou: “Tudo passa; por
conseguinte, tudo merece passar!”
“E aquela lei que
diz que o tempo deve devorar os seus próprias filhos, é a mesma justiça”. Assim
se proclamou a loucura. “A ordem moral das coisas repousa no direito e no
castigo”. Ai! Como livrarmo-nos da corrente das coisas e do castigo da
‘existência’?
Assim se proclamou
a loucura.
“Como pode haver
redenção, se há um direito eterno? Ai! Não se pode remover a pedra do passado:
é mister que todos os castigos sejam também eternos!” Assim se proclamou a
loucura.
Nenhum fato pode
ser destruído; como poderia ser desfeito pelo castigo?” Eis o que há de eterno
no castigo da existência: a existência deve ser uma vez e outra, eternamente,
ação e dívida. “A não ser que a vontade acabe por se libertar a si mesma, e que
o querer se mude em não querer.” Mas, irmãos, vós conheceis estas canções da
loucura!
Eu vos afastei
delas quando vos disse: “A vontade é um criador”.
Todo o “foi” é
fragmento e enigma e espantoso azar, até que a vontade criadora acrescente:
“Mas eu assim o quero! Assim o hei de querer”.
Já falou, porém,
assim? E quando sucederá isso? Acaso a vontade se livrou da sua própria
loucura?
Porventura se
tornou a vontade para si mesma redentora e mensageira de alegria? Acaso
esqueceu o espírito de vingança e todo o ranger de dentes?
Então quem lhe
ensinou a reconciliação com o tempo e qualquer coisa mais alta que a
reconciliação?
É preciso que a
vontade, que é vontade de Jerônimo, queira qualquer coisa mais alta que a
reconciliação; mas, como? Quem a ensinará também a retroceder?”
Neste ponto do seu
discurso, Zaratustra deteve-se, como de súbito assaltado pelo terror.
Contemplou os discípulos com olhos espantados: o seu olhar penetrava como setas
nos seus pensamentos. Passado um momento, porém, tornou-se a rir e disse com
serenidade:
“É difícil viver
entre os homens porque é tão difícil uma pessoa calar-se”. Sobretudo para um
falador!
Assim disse
Zaratustra. O corcunda, entretanto, escutara a conversa ocultando a cara:
quando ouviu rir Zaratustra ergueu os olhos com curiosidade e disse lentamente:
“Porque é que
Zaratustra nos fala de uma maneira e doutra diferente aos seus discípulos?”
Zaratustra
respondeu: “Que há de estranhar? Com seres disformes pode-se muito bem falar de
uma maneira disforme!” “Sim, disse o corcunda”. — E com estudantes bem se pode
fazer de professor.
Mas, porque é que
Zaratustra fala de um modo aos seus discípulos, e doutro a si próprio?
DA CIRCUNSPECÇÃO HUMANA
“Não é a altura que
aterroriza; o que aterroriza é o declive”!
O declive donde o
olhar se precipita para o fundo, e a mão se estende para o cume.
É aqui que se apodera do coração a vertigem da sua dupla vontade.
Ai, meus amigos!
Adivinhais a dupla vontade do meu coração?
Vede, vede, qual é
o meu declive e o meu perigo; o meu olhar precipita-se para o cume,
enquanto a minha mão quereria fincar-se e amparar-se... no abismo!
Ao homem se me
aferra a vontade, ao homem me prendo com cadeias, enquanto do alto me atrai o
Super-homem: porque para lá quer ir a minha outra vontade.
E por isso vivo
cego entre os homens, como se os não conhecesse: para a minha mão não
perder inteiramente a sua fé nas coisas sólidas.
Não vos conheço a
vós, homens; é essa a obscuridade e o consolo que amiúde me envolve.
Sinto-me perto de
todos os pérfidos, e pergunto: Quem me quer enganar?
A minha primeira
circunspecção humana é deixar-me enganar para me não ver obrigado a estar em
guarda contra os enganadores.
Ai! Se eu me
pusesse em guarda contra o homem, como poderia ser o homem uma âncora para o
meu barco? Facilmente me veria arrastado para o largo.
Não me precaver:
tal é a providência que preside ao meu destino.
E aquele que não
quiser morrer de sede entre os homens deve aprender a beber em todos os vasos,
e o que quiser permanecer puro entre os homens deve aprender a lavar-se em água
suja.
Eis o que a mim
mesmo tinha dito muitas vezes à guisa de consolação: “Não te importes, velho
coração! Feriu-te um infortúnio: gloria-te disso como de uma ventura!”
Eis aqui, porém, a
minha outra circunspecção humana: trato com mais considerações os vaidosos que
os orgulhosos.
Não é a vaidade
ferida mãe de todas as tragédias? Mas, onde é o orgulho que se fere, cresce
qualquer coisa melhor do que ele.
Para o espetáculo
da vida recrear é mister que seja bem representado; mas para isso necessitam-se
bons atores.
Todos os vaidosos
me têm parecido bons atores; representam e querem que a gente se divirta em os
ver: todo o seu espírito está nesse desejo.
Põem-se em cena, e
fingem; ao seu lado gozo eu na contemplação da vida: assim se cura a
melancolia.
Por isso sou
diferente para os vaidosos: porque são os médicos da minha melancolia e me
apegam ao homem como a um espetáculo.
Quem medirá, em
toda a sua profundidade, a modéstia do vaidoso? Eu gosto dele e lastimo-o pela
sua modéstia.
De vós outros quer
aprender a fé em si mesmo; de vossos olhares se alimenta, de vossas mãos come o
elogio.
Até acredito nas
vossas mentiras, se mentís bem acerca dele, porque no fundo do coração suspira:
“Quem sou eu?”
E se a verdadeira
virtude é a que nada sabe de si mesma, o vaidoso nada sabe da sua modéstia!
Eis aqui, porém, a
minha terceira sisudez humana; não quero privar-me da vista dos maus por uma
timidez igual à vossa.
Desfruto vendo os
portentos que faz brotar o sol ardente: tigres e palmeiras e cobra cascavel.
Também se vêm entre
os homens lindas crias do ardente sol, e muitas coisas maravilhosas entre os
maus.
Verdade é que assim
como os mais sensatos de vós me não parecem tais completamente, assim também a
maldade dos homens me pareceu inferior à sua reputação.
E muitas vezes
perguntei a mim mesmo, meneando a cabeça: Porque sonhas ainda, cobra cascavel?
Até para o mal há
um futuro. E ainda: para o homem se não descobriu o Meio-dia mais ardente.
Quantas coisas se
chamam já hoje as piores das maldades e que, todavia, não têm mais de doze pés
de largura.
Um dia, porém,
virão ao mundo dragões maiores.
Que para o
Super-homem ter o seu dragão, o super-dragão digno dele, serão precisos muitos
sóis ardentes que caldeiem as úmidas selvas virgens!
É preciso que os
vossos gatos monteses se transformem em tigres, e os vossos sapos venenosos em
crocodilos: porque ao bom caçador convém boa caça!
É a verdade, justos
e bons! Há em vós outros muitas coisas que se prestam ao riso, especialmente o
vosso temor pelo que hoje se tem chamado demônio!
E a vossa alma está
tão longe do que é grande, que o Super-homem vos espantaria com a sua
bondade!
E vós outros,
sábios e ilustrados, fugiríeis ante a ardência solar da sabedoria em que,
prazenteiro, banha o Super-Homem a sua nudez!
Homens superiores
em que tem tropeçado o meu olhar! É esta a minha dúvida sobre vós outros e o
meu secreto riso! Adivinho que chamaríeis... demônio ao meu Super-Homem!
Ai! Enfastiei-me
desses superiores e melhores: desejo subir e afastar-me cada vez mais da sua
altura, com rumo ao Super-homem.
Deu-me um calafrio
quando vi nus os melhores deles, então me nasceram asas para me transportarem a
longínquos futuros.
A futuros mais
remotos, a meios-dias mais meridionais que os que jamais pôde sonhar a
fantasia, além onde os deuses se envergonham de todo o vestuário.
Mas a vós outros,
irmãos e próximos meus, quero-vos ver disfarçados e bem adornados, e vaidosos, e
dignos, com os “bons e os justos”.
“E disfarçado quero
eu estar também entre vós para vos desconhecer e desconhecer-me a mim mesmo:
porque é esta a minha última circunspecção humana”.
Assim
falava Zaratustra.
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